domingo, outubro 31, 2010

Hilda Hilst à procura de Deus. E tão poucos à procura dela.

Comprar Hilda Hilst [1930-2004] em Portugal é sempre uma odisseia. Infeliz, porque raras vezes é possível encontrar um livro que seja da autora brasileira - e ela publicou dezenas. Mais triste ainda porque a obra não está propriamente esgotada, simplesmente não é procurada, logo, não está à venda. É a lei da oferta e da demanda. Não é lida porque não é procurada; não é procurada porque não é compreendida. E não é só aqui. É aqui e lá. Como a própria disse uma vez, numa entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (CLB), em Outubro de 1999, já na altura para explicar o muro entre a sua obra e o público, "quando você faz uma revolução, demora; a aceitação chega a demorar meio século ou até mais." A revolução dela é espantosa - parecendo obscena, é unicamente a busca de Deus, do sagrado, do absoluto, do incondicional - e esperar 50 anos para a descobrir é um desperdício. Uma mulher que aos oito anos queria ser santa e aos 18 escreveu: "Somos iguais à morte, ignorados e puros e bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos, à procura de um Deus" merece ser lida inteira e cedo.

Descobri-a em 2002, quando a Campo das Letras, entretanto falida, editou "Cartas de um Sedutor". Desde aí, nunca mais cessei de a procurar, de a encomendar, de a esperar. Sempre a custo, sempre com paciência, muitas vezes para ouvir um não. "Não há, não conseguimos." Da última vez, quando fui levantar parte da sua tetralogia pornográfica, a parte possível, que é notável, aconteceu uma coisa curiosa, perguntaram-me:
- É para si?
- É para oferecer, eu já li.
- Já leu?! Com essa idade?!
Sorri. Não sei que idade aparento, suponho que seja aquela que tenho.
- Sim, já li.
- Desculpe ter perguntado, mas nunca ninguém procura Hilda Hilst. Sei porque somos os únicos distribuidores dela em Portugal. É uma escritora maldita. Posso perguntar-lhe o que leu?
E ali começou uma conversa incrível sobre a autora, mais incrível porque a maioria das pessoas que está à frente dos balcões das livrarias, fnacs e bertrands incluídas, se faz ideia do que está ali a fazer disfarça muito bem. Não escrevo isto para me arvorar em carapau-de-corrida, escrevo só na esperança de que mais pessoas possam descobri-la. Como escreveu Leo Gilbson Ribeiro, um dos primeiros críticos literários a dar-lhe o devido valor, escrevo "com o vivo desespero de que a grandeza múltipla da Hilda se espalhe pelo Brasil e pelo mundo afora, como uma das raras grandes escritoras desta segunda metade de um milénio que finda." 

De Hilst, a maioria só conhece a poesia. Belíssima, quase toda. Muita espalhada pela internet e disponível no site da autora (http://www.hildahilst.com.br/). E esta tetralogia [Cartas de um sedutor, 1982; O caderno rosa de Lory Lamby, 1990; Contos d'escárnio/ Textos grotescos, 1990; e Bufólicas, 1992], mas só por ser pornográfica. De resto, foi por isso que ela a escreveu, na derradeira tentativa de cativar leitores. "Eu queria fazer uma coisa que, de repente, eles gostassem de ler. Não adiantou. Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica. Tentei vender meus livros, mas não consegui. Pensei: Vou fazer umas coisas porcas. Mas também não consegui." Conseguiu escrever; não conseguiu foi vender. Pelo menos, da forma que esperava. Conseguiu chamar a atenção do editor da Gallimard, editora francesa, que lhe terá dito: "Hilda, não compreendo porque eles acham tão difícil lê-la." Publicou-a em França. Mas o Libération, a propósito da resenha sobre "A obscena senhora D" (1982), livro que marcou o início da fase pornográfica, chamou-lhe "La cochonne hystérique" (A porca histérica). Ela chorou. E pouco depois decidiu que não voltaria a escrever. "Não vou escrever mais. Depois de eu ter escrito mais de 30 livros, e ninguém ter lido, vocês ainda ficam chateados de eu não escrever mais?", desabafou em 1999 aos CLB.

Hilda Hilst tornou-se escritora por causa do pai, o poeta Apolonio Hilst, que ela amava acima de todas as outras pessoas, apesar de só o ter conhecido na adolescência. E apesar de o nascimento dela ter ditado o divórcio dos pais, logo eles que haviam tido "uma paixão de perder o senso". Quando soube da gravidez e que seria uma menina, esse pai protestou com uma palavra única: "Azar". E foi embora. Ficaria em liberdade pouco tempo. Esquizofrénico, foi internado num manicómio aos 35 anos, quase tantos quantos viveu encarcerado, o que acabaria por lhe interromper a obra. Hilda queria provar-lhe que o nascimento dela tinha valido a pena, queria que ele sentisse orgulho nela. "Tentei fazer uma obra muito boa para que ele tivesse orgulho em mim. O meu pai foi a razão de ter-me tornado escritora." Anos mais tarde, a mãe acabaria por ter o mesmo destino: esquizofrenia, internamento. E essa repetição condicionou a vida toda da autora, que optou inclusivamente por não ter filhos, aterrorizada com a ideia de vir, também ela, a ficar louca. "Na minha vida, o meu grande temor sempre foi esse." E foi por causa disso que se tornou devota de Wittgenstein e de outros que ela considerava "os loucos deslumbrantes".


Licenciada em Direito, viveu em S. Paulo até tropeçar em "Carta a El Greco", livro de memórias do escritor grego Nikos Kazantzakis, que perdeu o Nobel para Albert Camus, outra das perdições de Hilst. "Resolvi mudar de vida. Eu tinha uma casa gostosíssima, todo o mundo ia lá comer, namorar, dançar. A vida que eu tinha era muito fácil, uma vida só de alegrias, de amantes. Tinha que ser só para compreender tudo, para desaprender e compreender tudo outra vez." Em 1966 isola-se na Casa do Sol, no interior. Ouve Mahler e Mozart, pinta, os amigos esboroam-se quase todos, alimenta 90 cães. E é lá, isolada, que vive até morrer. E morrer era, a par com a loucura, o seu medo maior. "Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas não tenho essa esperança. Continuo vivendo, porque tenho de continuar vivedo. Tenho medo de morrer, medo do desconhecido, medo da solidão, do sepulcro. Tenho medo de dar um tiro na cabeça."

Incompreendida desde sempre, de cada vez que publicava um livro era acusada de ser alcoólica, drogada, louca, lixo, ou mesmo bruxa depois de ter confessado que via e falava com mortos. "Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Com raríssimas excepções, não tenho nada a ver com este mundo." Na recta final da vida, angustiada, taciturna, cansada da luta para ser aceite, amada, desistiu. "Não tenho mais vontade de escrever, já disse tudo. Não tenho mais vontade de alegrar ninguém, nem de fazer sofrer, nada. Não estou nem aí para quem não me lê. Eu escrvi o amor em quase todos os meus livros. Não entenderam? Então, não adianta falar mais."

Na entrevista aos CLB, Hilda Hilst, no que considerou ser uma despedida - morreria menos de cinco anos depois sem qualquer evolução na sua relação com os leitores -, garantiu que não era uma saída amargurada. "Fiz o que pude. Tem pouca gente que pensa e escreve como eu. Eu sempre digo isso e aí sou considerada megalómana. Mas eu sei quem sou. Sempre senti uma certa alegria sabendo que escrevia muito bem, mesmo não sendo lida". Mas lê-se aquilo, lê-se o resto, liga-se tudo, e custa digerir aquela tristeza. Eu só percebi isso quando percebi que não era só em Portugal que a não procuravam.

Hilda Hilst, volto a Leo Gilson Ribeiro, aborda "Deus, a solidariedade entre os seres humanos, o nojo, a humildade, a volúpia, a miséria dos marginalizados por uma sociedade cruel, materialista e vulgar, o martírio, o mistério, o terror (...), um desmesurado êxtase pela possibilidade do amor, uma tristeza que não faz alarde de si mas que, sem o saber, ecoa os poemas idealistas e belíssimos de Antero de Quental. (...) Na escritora brasileira, a celebração do amor é a perda de quem recorda apenas de ter amado algum dia."


Hilst procurava Deus. A maior revolução, dizia, não era o erotismo, era a santidade. É pecado não a ler.

2 comentários:

  1. o nome não me é estranho...bem, fiquei com vontade, vou ser mais uma a procurar :) **

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  2. Por qualquer acaso, que de ocaso não tem nada, talvez tenhas conseguido mais dois leitores

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