sábado, outubro 16, 2010

Fada Oriana vive com 250 euros por mês

[Foto: Alfredo Cunha]

Pense nisto antes de ler o texto que se segue: o que conseguiria fazer com 250 euros por mês? Numa época em que o acto de contrição da década é: "Andámos todos a viver acima das nossas possibilidades"; num país em que um deputado cujo salário ultrapassa os três mil euros mensais (cinco vezes o salário mínimo nacional) se permite dizer que as medidas de austeridade impostas pelo governo prejudicam sobretudo a sua classe, a dos políticos; o mesmo país cuja poupança das famílias é cada vez menor (a descer desde 2002) porque os rendimentos não só não esticam como ameaçam encolher; e num tempo em que se banalizou a ideia de que os 30 anos são os novos 20, e que por isso mesmo - por isso e porque não há emprego e o que há é precário - os filhos saem cada vez mais tarde de casa dos pais (a média aponta para os 29 anos), neste tempo e neste país com esta cultura, pense: o que faria com 250 euros?

Com 250 euros, Ana Sofia Rebelo, 20 anos, estudante universitária, consegue fazer milagres. Encontrámo-la em Braga, ao lado da Universidade do Minho, onde frequenta o segundo ano de Psicologia, olhos muito verdes, cabelo de ouro, pequenina como o vestido lilás que a enfeita, pouco mais de metro e meio, piercing quase invisível no nariz, um sorriso inteiro. Feliz?!

Aos seis anos perdeu o pai e, com ele, o imaginário das histórias contadas para adormecer. Foi viver com os avós. A mãe, com mais dois filhos ainda bebés, não podia sustentar três. Os avós talvez não lhe embalassem o sono com contos, mas no mês em que a acolheram, conscientes de que a neta haveria de ser a psicóloga que sempre quis ser, abriram-lhe uma conta poupança. Durante 11 anos foi ali, em depósitos esforçados, que lhe prepararam o futuro.

Aos 17 anos, sem surpresa, Sofia entrou na faculdade. Não se lembra da média, sabe só, e di-lo com total naturalidade, que teve "20 a Matemática". A partir dali sabia que era do dinheiro poupado pelos avós, ambos com 70 anos, ambos reformados, que teria de viver. "Mas, claro, sabia que não dava para muitos meses, tinha de saber gerir aquele montinho".

Alugou um quarto por 75 euros numa casa onde vivem oito; em água, luz, gás e internet cada um gasta 15 euros. Nesse ano de caloira foi-lhe atribuída uma bolsa de 350 euros; as propinas levam-lhe 987 euros por ano. Equilibrou a bolsa com a poupança. E continuou a poupar. "Ponho sempre uma parte de lado. Nas férias não tenho bolsa e há sempre alguma coisa que pode falhar", explica. O plafond que estabeleceu para si própria é de 250 euros. "Poupo em tudo, nas saídas à noite, nos jantares, na roupa. Só posso gerir o que tenho." Não perde a cabeça com nada? "Com concertos. Poupo mais no mês anterior para poder ir. Se não fosse psicóloga, seria crítica de música".

O primeiro ano lectivo correu bem, boa gestão financeira, melhores notas, "dezassetes e assim". Mas em vez do merecido Verão ao sol, Sofia perde a mãe para um cancro. Os irmãos vão viver com os tios. Ela continuou dividida entre o quarto da universidade, em Braga, e a casa dos avós, em Famalicão. "Não tenho tempo para ficar triste, tenho demasiadas coisas para tratar, mas também não sou de ferro".

Inaugura o segundo ano da faculdade a plissar, procura emprego, que o montinho da poupança estava a descer e ela não pode ser apanhada desprevenida. Por três euros à hora, consegue adicionar 140 euros ao rendimento mensal. "Não compensou. Perdi muitas aulas. E perdi o ano." É uma Sofia triste que o lamenta. Só não lamenta ter amealhado verba para a carta de condução. "Inscrevi-me em Agosto, já passei no exame de código, só falta o da condução".

Este ano tinha decidido não trabalhar, tem urgência em acabar o curso, mas a crise trocou-lhe as voltas. "Tenho medo que me reduzam a bolsa. Se acontecer, lá terei de trabalhar". É fácil? "No McDonalds é". Mais difícil, diz, "será depois conseguir emprego na área". Se não conseguir, "trabalharei noutra qualquer, porque preciso de dinheiro para poder vir a tomar conta dos meus irmãos, e usarei a psicologia para fazer voluntariado".

Há alguém que, com esta idade, conseguisse fazer esta gestão do dinheiro e dos afectos? Há. Chama-se Oriana, uma fada baptizada por Sophia de Mello Breyner. Mas tinha duas asas e uma varinha de condão.

1 comentário:

  1. Pois esta Sofia é uma pessoa grande! Não é fácil ficar sem pai em criança e depois ficar sem mãe. Ainda assim, não perdeu, pelos vistos, a ligação aos irmãos, de quem teve que se separar pelas dificuldades da vida e com quem se preocupa.
    Gostei de ler. Espero que a Sofia continue com essa força mas também que a sorte lhe sorria um pouco, porque a sorte faz toda a diferença também na vida duma pessoa.
    Desejo à Sofia toda a felicidade e força do mundo!

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