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quarta-feira, julho 15, 2015

Lello vs Shakespeare


Tudo bem, a Lello é uma das livrarias mais bonitas do mundo. Nunca tem quase nada do que se procura (o que torna, no mínimo, curioso o desconto do preço do bilhete nos livros adquiridos), mas tudo bem, é mesmo muito, muito bonita. E os donos podem legitimamente fazer dela o que quiserem, cobrar três, dez, trinta ou trezentos euros. E podem, para isso, alegar o que quiserem. E nós podemos concordar ou discordar. Por princípio, a limitação no acesso a uma casa com livros parece-me sempre errada. E depois ocorre-me logo a Shakespeare and Company, em Paris, que pode não ser uma das livrarias mais bonitas do mundo, mas é seguramente das mais românticas. É possível entrar, fotografar, ler livros, vasculhar livros, pegar, pousar, tocar piano, descansar numa cama, numa poltrona, escrever bilhetes numa antiquíssima máquina de escrever... e tudo sem pagar um tostão. Será que a Shakespeare tem menos de 4000 visitantes por dia? Duvido.

domingo, setembro 07, 2014

Feira do livro



Desde que Passos Coelho me ensinou a não viver acima das minhas possibilidades, fui aprendendo a controlar a fúria de estar sempre a comprar livros novos e passei a ler os que já tinha. Foi assim que me decidi a ler o tempo perdido de Proust, um daqueles livros que achamos que podemos adiar a vida inteira sem perceber o erro terrível que é adiá-lo. Maravilhoso, maravilhoso livro! Obrigada Passos Coelho.

Mas por estes dias abriu a feira do livro no Porto, ou como bem classificou Paulo Cunha e Silva, o festival literário do Porto, e lá voltei a perder a cabeça outra vez, coisa que era cada vez mais difícil perder naquelas feiras da APEL (que cobrava 75 mil euros por feira à autarquia), em que nem novidades nem raridades nem preços do outro mundo. Esta edição da feira do livro, a primeira organizada pela câmara, está cheia de preciosidades (o que só é possível porque as editoras já não têm de pagar dois mil euros para estarem presentes), tem um programa paralelo notável e, ainda por cima, é nos jardins do palácio de cristal. É tão bom viver numa cidade que num domingo à tarde inunda um jardim para vasculhar livros.

sexta-feira, agosto 08, 2014

Terrivelmente nosso e indiscutivelmente bom*



O Porto é o companheiro de uma vida. É charmoso, elegante, delicado e tem a base das relações para a vida: é profundamente acolhedor. Gostar de alguém deposita-nos o peso da incondicionalidade: não dá para admitir o desdém do que, na alma, é terrivelmente nosso e indiscutivelmente bom. Quem é do Porto defende a cidade com unhas e dentes porque nascer tripeiro significa ter orgulho num sotaque que não se quer perder, e isso é só um pedaço visível de tantos sentimentos menos óbvios. Defender o Porto significa levantar a bandeira da simpatia que não há noutros sítios e gostar de chamar as coisas pelos nomes: um fino nunca foi uma imperial, não há cruzeta que venha a ser cabide, nem há estrugido que possa ser tratado por refogado.

O Porto tem a melancolia dos amores que são para sempre: parece desenhado, melancólico e projecta sombras incríveis que — tenho a convicção — o sol só lhe dá a ele.
O amor traz destas cegueiras que nos permitem apreciar defeitos. É por isso que o mar pode vir gelado e ser um puzzle de rochas difíceis de desencaixar, o vento até pode vir de Norte e ser preciso travá-lo, mas não há cheiro a sargaço como aquele.

Ser do Porto e não viver no Porto converge na simbiose que é encontrar alguém que tem a mesma base. Bastam minutos de conversa para saber que o código geográfico é comum e que o ADN não se vinca só no sotaque, já que o mais bonito transborda na maneira de estar.

A saudade é uma palavra tão repetida que até já soa vulgar, por isso, enquanto me contorço de dores por não lhe encontrar sinónimo, a verdade é que a falta que as pessoas nos fazem pode ser traduzida em lugares, se eles nos encherem de sensações.

Ser do Porto é sentir a cidade como uma tatuagem que nunca precisou de estar desenhada. Confesso que não encontro esta necessidade de proteger este pintainho debaixo da asa (sem nunca ninguém nos pedir para isso) nas pessoas que nascem noutros lugares. Confesso que amigos de cidades tão diferentes não as defendem com metade da convicção que carrega esta pronúncia do Norte a que os “tontos chamam de torpe”.

Vão e vêm: são assim os estudos com dados estatísticos sobre a vida, como se ela pudesse ser tratada em gráficos. Esta semana, surgiu mais um: o Porto é a cidade mais amada pelos seus habitantes. Fica no topo da lista, adianta-se a Hamburgo, passa Colónia, finta Munique e ganha a Barcelona. Qualquer sentimento semelhante a este é mais bonito em imagens do que em todas estas palavras. E não é preciso nenhum gráfico para medir.

* Marta Couto, hoje, no P3

sábado, setembro 15, 2012

quinta-feira, abril 19, 2012

Es.col.a


O Executivo de Rui Rio no seu melhor estilo. Eu até já me tinha esquecido de como era, mas de repente lembrei-me de tudo. Doze anos sem aprender nada.

segunda-feira, outubro 24, 2011

O dia em que fizemos as pazes com o André



"Os verdadeiros paraísos são os paraísos que perdemos. A bilheteira das Antas, o barulho dos torniquetes, a arquibancada... todos de pé, confetis azuis e brancos no ar e entra em campo o F. C. Porto... Cor... Cores vivas que cativam e prendem o olhar e sons... de música, de causas, de princípios e de um sentimento. Primeiras e eternas memórias de paixão e amor ao clube, mas não de qualquer clube... Porto, palavra exacta, nunca ilude. O portista vive, subsiste, é eterno; o portista sente, sofre, luta; o portista quer, pede e exige; o portista junta, acumula e ganha; numa simbiose perfeita com a personalidade de cada um o portista é educado, aprende, é formado e torna-se melhor. Como pessoa, como homem e como mulher.

Quando me permiti a reflectir sobre o que nos poderia ter levado ao sucesso da época passada, cheguei à conclusão de que o portismo esteve presente a cada passo e em cada um de nós desde o princípio. Emoção, revolta, desejo, ambição. Sentido comum, conceito de união, empatia e reconhecimento. Não há derrotas quando é firme o passo, ninguém fala em perder, ninguém recua. Ninguém recuava, sonhávamos... acreditávamos sempre mais e depois seguimos convictos. Dúvida? Não...! Mas luz, realidade e sonho que na luta amadurece.

Apoiados no talento e na sabedoria de cada um, avançámos. No dilúvio, na neve, no inferno e na catedral triunfámos. Deram tudo por nós esses atletas, transpirados mas sempre inspirados, criativos e livres, encontraram sempre o caminho certo. E ganhámos... Muito! dirão alguns; pouco! dirão outros; o suficiente e o esperado! dizemos todos nós... porque se há algo que nos orgulha como portistas é querermos sempre mais e por isso ganhamos mais vezes e por isso somos recordistas! Na perseverança de um presidente temos um exemplo de vida. A nossa relação não foi enciclopédica, foi muito mais do que isso. Foi a emoção transmitida pelo gesto e pelo olhar, pela confiança e pela gratidão.

E fora do olhar comum, a estrutura Porto, qual baluarte, unido e formado para a vitória. Liderado exemplarmente, só tem um objectivo: garantir as máximas condições de sucesso para quem aqui trabalha. Sem ela, nada funciona, com ela tudo se mescla, todos se interrelacionam porque sabem que todos dependem de todos. O esforço de um, contagia todos os outros.

É uma honra e um orgulho estar presente entre vocês e receber um prémio desta envergadura. Qualquer prémio atribuído a um indivíduo num desporto colectivo é e sempre será algo ingrato e injusto e por isso mesmo partilho convosco. Assim fomos educados, todos decisivos na obtenção do nosso sucesso, todos decisivos no nosso compromisso com a vitórias.

E azul e branca essa bandeira avança, azul, branca, indomável, imortal. Como não pôr no Porto uma esperança se daqui houve nome Portugal?"

[Discurso de André Villas-Boas,  no dia em que recebeu o Dragão de Ouro para o treinador do ano]

quinta-feira, maio 19, 2011

Improvável santuário portista

[Foto: Ricardo Júnior/Global Imagens]

Não deixa de ser irónico: o edifício dos Paços do Concelho do Porto, onde o FCP não é recebido há pelo menos dez anos, nem na alegria nem na tristeza, foi ontem altar portista, santuário sem deus, que o deus verdadeiro, Pinto da Costa, estava em Dublin, onde os devotos sorriam ao profano – “SLB! SLB! FDP! SLB!” – enquanto seguiam aquela homilia em ecrã gigante com a crença inabalável de que André, Andrézinho, o primeiro treinador portista em tantos anos, o único que sabe exactamente o que sentem quando pisam o chão dos Aliados e gritam “Porto és a nossa fé!”, não os iria desiludir. A eles que em dias assim respeitam sempre o dress code – qualquer peça, desde que azul e branca (e ontem nem cães nem bonecas insufláveis escaparam) – e sabem de cor, à força de tantas vezes o executarem, o guião: ao apito final, erguer cachecóis em histeria colectiva para depois abrandar e solemente cantar o hino.

Foi assim ontem outra vez. Muitos de lágrimas nos olhos, todos a cantar, carros a fazer fila para o habitual desfile de abanões, a praça pequena para tantos. Fernando Lopes da Silva tinha a taça de “Mónaco 2004” (3-0) na mão direita, pantufas de dragão compradas na feira da vandôma por dez euros na esquerda, Jorge Costa cravado nas costas, pendurado no coração um só clube – o Porto. Cortou a relva do Dragão durante três anos, ainda Domingos era lá jogador, foi com o treinador do Braga à pesca muitas vezes, deseja-lhe “sorte como a um filho”, mas ontem foi André, o novo herói da cidade, o mais jovem de sempre a ganhar a Liga Europa, a fazer dele “um homem feliz”. Em troca, só lhe pede uma coisa: “que não vá embora. Não já, pelo menos.” 

quinta-feira, março 31, 2011

Gente que toda a gente devia conhecer (I)


O empobrecimento das famílias entristece-o.
A desgovernação do país tira-o do sério.

Manuel Sobrinho Simões, médico, investigador e professor universitário, diz que Portugal continua a ser vítima do conflito de interesses que grassa entre as conveniências dos partidos e dos políticos e as necessidades do país e dos portugueses. Uma análise interessada para ajudar a sair da crise e a permanecer no euro. Nem que tenhamos de fazer o pino.

Em três semanas tivemos quatro dias de descanso extra. Ele foi a tolerância de ponto para Lisboa, a greve geral, um feriado civil e na próxima quarta-feira teremos um religioso. Como é que avalia a nossa relação com o trabalho?
No nosso país, uma pessoa que trabalhe todos os dias e que tenha de assinar ponto é visto como um falhado. Quando me tornei professor catedrático até os meus amigos de Arouca ficaram decepcionados quando perceberam que a minha vida ia continuar a fazer-se das mesmas rotinas. E mais recentemente, no Hospital de São João (Porto), a maior parte dos professores da Faculdade de Medicina foram contra a fiscalização do horário de trabalho dos médicos através da leitura da impressão digital - o dedómetro - mas eu fui a favor. É humilhante? É. Sobretudo para quem tem funções de direcção. Mas tem de ser assim, porque infelizmente muitos de nós não cumprimos. Caricaturando a coisa, pode dizer-se que em Portugal só quem não sabe fazer mais nada é que trabalha, isto é, tem uma rotina, cumpre horários, produz e presta contas.

Esses traços são distintivos só dos portugueses?
Não, este problema não é só nosso. A Europa conseguiu garantir boas condições de vida aos seus cidadãos à custa da exploração dos povos e dos países da Ásia, da América Latina e de África. Uma boa parte do Estado Providência assentou na exploração das matérias-primas e do trabalho daqueles países. Com o aparecimento de economias emergentes muito competitivas e a deslocalização das fábricas, a Europa começou a criar menos riqueza e as dificuldades em conseguir manter o chamado estado social começaram a aparecer. Não é por acaso que a França tem de mudar a idade da reforma. É um sintoma.

Prenúncio do fim do Estado social?
Com o crescimento da Índia, da China e do Brasil, a Europa ressentiu-se e as pessoas começaram a perceber que vão ter de mudar de vida, que o tempo das mordomias já passou.

Mas para nós, portugueses, esse tempo mal começou...
Pois é, mas para nós vai ser ainda pior. Os portugueses, além de europeus, são culturalmente mediterrânicos, o que não nos afasta muito dos gregos, dos italianos e dos espanhóis do Sul, com todas as influências que são ditadas pela geografia, pelo clima e pela religião. Sermos judaico-cristãos é muito diferente de sermos calvinistas e protestantes. Além disso nunca corremos o risco de morrer de frio e estamos na periferia, não tivemos guerras e ninguém nos chateou. Na verdade, somos muito individualistas e estamos mais próximos dos norte-africanos do que dos povos do Norte da Europa. Somos um país mais mediterrânico do que atlântico, com todas as implicações que isso tem até na nossa produtividade.

Então a diferença entre nós e o resto da Europa, sobretudo os nórdicos, não está nos genes?
Claro que não. A diferença entre nós e os nórdicos não está nos genes, é fruto da cultura e da educação, da geografia, do clima e da religião. Eles tinham frio, era-lhes difícil cultivar cereais e não tinham vinho. Para sobreviverem tiveram de estimular a inovação e a cooperação. Ao contrário de nós, que tínhamos um bom clima, uma agricultura fértil e peixe com fartura. E depois tivemos África, a seguir o Brasil e logo os emigrantes. Não precisámos de nos organizar e não precisámos de nos esforçar. Não era preciso. Não planeávamos, desenrascávamos. Continuamos assim, gostamos de resolver catástrofes.

É sindicalizado?
Não.
Fez greve?
Sim, eu e a maioria dos professores de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina. Fizemos greve e estamos furiosos mas assegurámos o serviço no hospital e demos aulas na Faculdade, onde também não faltámos por causa dos alunos. É uma questão de respeito.

Estão furiosos com quê?
Com a desgovernação. Não é só com a desgovernação do actual governo, é com o desnorte dos últimos vinte e tal anos. O que nos está a acontecer não resulta apenas da desorientação dos últimos dois anos, já há muito que gastamos acima do que podíamos e devíamos. E o mais grave é que demos sinais errados às pessoas. Agora, vamos ter de evoluir de novo para uma sociedade com capacidade de produção real, com agricultura e pesca.

Mas todos temos na memória os subsídios que foram concedidos aos agricultores para não produzirem.
Foi terrível. E para piorar as coisas, muitos ficaram deprimidíssimos e frequentemente alcoólicos. Destruíram as vinhas, a sua âncora, que lhes dava prestígio e dignidade pessoal nas suas comunidades, e começaram a passar os dias na taberna. Isto aconteceu em todo o Minho. E no Alentejo também.

Podemos dizer que o nosso super-Estado tem descurado as necessidades reais dos cidadãos e da sociedade?
Desde o tempo do Dr. Salazar que o Estado faz questão de proteger os seus e nós temos aprovado esse amparo. Mas os nossos cidadãos não têm grandes conhecimentos e perguntam pouco, até temos aquela afirmação extraordinária que é «se não sabes porque perguntas?». Ora quando temos dúvidas é que devemos perguntar. Por estas e por outras, nas últimas décadas, dominado por ciclos eleitorais curtos, o Estado passou a viver acima das suas possibilidades e a substituir-se à realidade. E, de repente, a realidade caiu em cima do povo.

Os portugueses têm razões para se sentirem enganados ou não quiseram ver a realidade?
As duas são verdade. Podemos ofuscar o real durante algum tempo, mas não para sempre. As imagens da Grécia, com reformas aos 55 anos ou até mais cedo para as chamadas profissões de desgaste rápido, permitiram-nos perceber que se eles tinham entrado em colapso também nós corríamos o risco de vir a acontecer-nos o mesmo. Até essa altura, creio que muitas pessoas acreditavam, lá no seu íntimo, que nem os países, nem a segurança social, nem o Serviço Nacional de Saúde (SNS), nem as câmaras municipais podiam entrar em bancarrota. Agora já perceberam que isto pode mesmo entrar em ruptura. Para já reduziram até dez por cento o ordenado dos funcionários públicos, mas no ano que vem pode vir a ser necessário chegar aos vinte por cento. E que é que adianta andar a papaguear que é inconstitucional e que mexe com os direitos adquiridos? Se não há dinheiro o que é que se faz? Esta questão é que tem de ser respondida.

Não há dinheiro para o Estado social mas tem havido para obras e infra-estruturas. O que pensa disto?
Eu não sei o suficiente para perceber quando é que é necessário um novo aeroporto em Lisboa ou em Beja. Mas como sou um prático, penso que se não é preciso no imediato e temos falta de dinheiro, então temos de investir na criação de riqueza e de emprego e não em obras que têm um retorno mais longínquo.

Não quer um TGV para o Porto?
Eu não. O que quero é que a TAP faça voos mais baratos. Um bilhete Porto-Lisboa-Porto custa 283 euros, o mesmo que gasto para ir a Oslo. O comboio que temos, o Alfa e o Intercidades, já é muito cómodo mas para ir a Lisboa não é prático, ou nos levantamos de madrugada ou perdemos metade de um dia. O que também necessitamos é de nos ligar à Galiza com mais eficiência porque o aeroporto do Porto tem condições para ser o grande aeroporto do Noroeste peninsular.

Se fosse governante imagina-se a discutir tantas vezes os mesmos assuntos?
Não. Falta-me experiência política, não tenho treino de negociação. Mas assusta-me saber que há tantas dúvidas sobre investimentos monstruosos. Não consigo perceber porque se continua a discutir a ligação de Lisboa a Madrid por TGV quando aquilo não tem hipótese nenhuma de ser sustentável.

Os impactes da crise económico-financeira foram durante muito tempo menosprezados pelos governantes. O que pensa disso?
O que senti e sinto é que se não fosse este governo, se fosse outro, teria sido exactamente a mesma coisa. Temos uma crise económico-financeira, mas também temos uma crise de líderes - os políticos portugueses gritam muito contra o estado das coisas e, depois, para ganharem eleições adoptam um discurso demasiado optimista. A primeira coisa que todos os que venceram eleições nos últimos anos fizeram foi, uma vez eleitos, dizer que isto estava uma tragédia. E toda a gente sabe que a maquilhagem do défice foi feita à custa de receitas extraordinárias quer por governos do PS quer do PSD.

Somos ingovernáveis?
Os nossos líderes e os seus partidos vivem mais para ganhar eleições do que para servir o país e os interesses da nação. Na administração pública até os directores-gerais cessam funções quando há mudança de governo. Ora é óbvio que, assim, qualquer um quer que o seu partido continue no governo, se não corre o risco de ir para a rua. O nosso individualismo militante e a fragilidade organizativa contribuem também para a ingovernabilidade.

O Estado é refém da administração pública?
O Estado deixou desenvolver, no seu seio, várias corporações, cada uma mais egoísta do que a outra - juízes, médicos, professores, militares, etc. Além disto, partidarizou a administração pública e passou a fazer concessões despudoradas aos chamados novos poderes, aos construtores, à banca, à comunicação social. Isto já não é culpa do Dr. Salazar.

O FMI vem aí?
Todos os tipos em quem eu confio dizem que sim, por isso acredito que sim, que está no vir. Ainda há dias estive numa reunião com João Cravinho, António Barreto e Rui Rio e esse foi um dos temas da conversa. A conclusão foi de que a vinda do FMI será provavelmente inevitável.

Sente o orgulho beliscado por ter de ser o FMI a pôr ordem na nossa casa?
Não, de todo. Mas não sei o suficiente de economia para perceber o que é que a intervenção do FMI vai implicar. Vão mudar o sistema das reformas, as pensões, os impostos? Nós já temos uma carga fiscal enorme, tenho assistido com muita tristeza ao empobrecimento da classe média portuguesa. Se a intervenção do FMI empobrecer ainda mais a nossa classe média e as famílias mais desfavorecidos ficarei muito triste.

Pensa que esta crise vai ser pior do que as outras?
Penso, infelizmente sim. E quando ouço os economistas falarem ainda fico espantado. Como é que eles não se aperceberam de que aumentando progressivamente o défice tínhamos uma receita para o desastre? Sei que vamos ter de mudar de vida. Se tivermos de o fazer num contexto de protecção da Europa e do euro prefiro a solução FMI a ter de saltar do euro e ir para soluções do domínio da magia, com a desvalorização da moeda, altivos e sós.

Afirmou várias vezes que o que de melhor nos aconteceu foi a entrada no euro. Foi uma oportunidade perdida?
Foi uma oportunidade muito mal aproveitada, mas teria sido muito pior para o país e para os portugueses se não tivéssemos entrado. Desbaratámos as vantagens da entrada no euro sem que os cidadãos tenham sido alertados para as fragilidades que vieram com a moeda única. Limitámo-nos a ser os recipientes líquidos de uma quantidade enorme de dinheiro em vez de aproveitar esses fundos para desenvolver e inovar. Não é por acaso que temos automóveis de luxo, iates e terceiras casas numa quantidade que é obscena relativamente ao nível de vida da população. Ainda assim, defendo que, se for preciso, devemos fazer o pino para nos mantermos no euro. Prefiro ficar sob o domínio da Europa do que ficar apenas entregue aos jogos políticos portugueses. Estamos na pontinha da Europa, se isso acontecesse, connosco sozinhos e em roda livre, seria mortal.

Acha que os países europeus mais fortes, nomeadamente a Alemanha, vão continuar a tolerar os nossos esquemas?
Não. Vão ser implacáveis porque é a Europa e o projecto União Europeia que estão em causa. Este ano, só a Índia vai pôr no mercado mais engenheiros do que todos os 27 países da Europa. O que é que a França ou a Alemanha representam na competição com a Índia? As pessoas não têm consciência da nossa dimensão. Eu dou aulas na China, em Chengchow, uma cidade que ninguém conhece a sul do rio Amarelo, na província de Henan, onde fica o templo de Shaolin. Só esta província tem cem milhões de habitantes e a cidade de Chengchow tem sete milhões. É outra escala. O campus universitário de Chengchow, onde estão sempre uns guardas de metralhadora em riste, é simplesmente enorme. Os hospitais não são apenas maiores, são melhores do que o São João, aqui no Porto, ou o Santa Maria, em Lisboa. Não estamos a falar de Xangai, de Hong Kong ou de Pequim, essas são cidades extraordinárias. Estamos a falar de uma cidade de que não se ouve falar mas que tem uma universidade que é uma coisa de um mundo que já não é o nosso. Isto para dizer que a Europa ou se enxerga ou desaparece.

O estado a que isto chegou era evitável?
Fomos sempre muito bons a avaliar meios, mas nunca quisemos avaliar os resultados. Nos hospitais vejo muita gente preocupada em discutir o número dos médicos, enfermeiros, consultas e exames realizados. E não se discute o mais importante que é a frequência das complicações e da mortalidade dos doentes, os reinternamentos, a sobrevida dos doentes com cancro aos 5 anos, etc. O que precisamos de conhecer é a quantidade e a qualidade de vida dos doentes que são tratados em cada um dos nossos hospitais, mais do que avaliar os meios. O mesmo sobre os blindados da PSP. Não quero saber se comprámos dois ou seis. O que precisamos de saber é como e quanto é que a eficiência da PSP aumenta com os ditos blindados. Nós fugimos aos «finalmente». Não temos cultura de avaliação.

Entretanto as universidades formaram muitos jovens. Eles não têm lugar em Portugal?
Pois não. Nesta altura não há espaço para os jovens. Os muito bons vão logo para fora e os outros também vão, ou como bolseiros ou já como profissionais. E eu acho que é uma boa solução para o país - por exemplo, entre enfermeiros, médicos e médicos dentistas temos uma leva de emigrantes diferenciados em Inglaterra de que nos devemos orgulhar.

Precisamos dos povos do Sul ou temos de rumar para sul?
África oferece imensas oportunidades mas ainda tem problemas com a segurança, a política, a organização. Há muitas oportunidades de negócio no retalho, na construção, nas energias, até na saúde, um sector que não tem um retorno tão imediato mas que também é rendível e socialmente muito importante. A América do Sul também é um destino a equacionar, embora os estados do Sul do Brasil sejam muito desenvolvidos e também tenham jovens com muito boa formação universitária.

Se fosse governante o que é que mudava?
Melhorava a educação, mas fazia-o com seriedade. Temos os miúdos na escola, e bem, mas não acautelámos a qualidade do ensino. Vejam-se os resultados dos estudos PISA, onde os nossos alunos, comparados com outros da mesma idade e de outros países da OCDE, revelam competências muito baixas nos conhecimentos da língua materna, da matemática e das ciências, três instrumentos básicos. Isto é um problema gravíssimo.

Defraudámos as expectativas das famílias?
Completamente. Há muitas famílias cujos pais fizeram sacrifícios enormes para custear os estudos dos filhos, inscritos em universidades privadas e em cursos que não têm saída. As pessoas não entendem. Disseram-lhes que o diploma era importante. Por outro lado, não faz sentido que tenhamos 28 cursos de arquitectura em Portugal. E outros tantos de tecnologias da saúde. Aqui no Porto, em instituições privadas, os enfermeiros estão a ganhar cerca de quatro euros por hora.

Já os seus alunos têm boas perspectivas, pois faltam médicos.
Os alunos de medicina também estão assustados com o futuro. Já não sabem se vão poder fazer a especialidade que gostariam, ou se serão forçados a adaptar-se às vagas que existirem e às condições de trabalho e de remuneração que lhes forem impostas.

O SNS está ameaçado?
Em termos de sustentabilidade, está. Mas o último relatório do Tribunal de Contas vem dizer que as soluções de gestão que foram introduzidas nos hospitais-empresa, muitas vezes à revelia dos profissionais, não funcionaram. A saúde é um bem imaterial, não é um bem que se venda a retalho. Como a educação. Os serviços assistenciais também vivem da manutenção do respeito pelos pares, e as hierarquias não são apenas funcionais, são também de competência.

Ainda defende a regionalização?
Sim.
E não teme que sirva sobretudo para criar mais uma casta de burocratas?
Defendo-a mas confesso que tenho muito medo, precisamente por causa disso.

E defende a criação de mais estruturas, para além das que existem?
Não, isso não. Para já defendo que se avance com as regiões que temos e à experiência, com líderes e profissionais que já deram provas e sem cargos de confiança política. As regiões precisam de autonomia e não podem ser extensões de outros poderes. Sou a favor da regionalização dos serviços de saúde e de ensino, incluindo as universidades.

Com a crise corremos o risco de nos tornar um país mais desigual?
Em relação à Europa já somos dos piores e agora a desigualdade vai agravar-se. Quer o número de pobres, quer a diferença entre eles e os muito ricos, não cessam de aumentar. Vamos ter de criar alguns mecanismos de suporte para ajudar as pessoas que estão aflitas e eu tendo a valorizar os mecanismos da sociedade civil, por exemplo o papel das misericórdias. A filantropia social está desaproveitada - há muito boa gente com competências, vontade e redes sociais a funcionarem bem. Não podemos deixar pessoas morrer à fome e ao frio e não podemos deixar de dar leite às crianças.

Taxar mais a riqueza pode fazer parte da solução?
Taxar mais a riqueza não resolve nada, primeiro porque calculo que os poucos milhares de muito ricos que temos em Portugal não têm cá a massa e, se tiverem, não serão facilmente taxáveis. Mais impostos também não. Para aumentar a produtividade temos de ser mais competitivos e receio que, a curto prazo, com ou sem FMI, tenhamos de baixar ainda mais os salários. Uma coisa é certa: temos de pagar as nossas dívidas porque se não o fizermos ninguém nos empresta dinheiro.

Contacta com muitos cientistas e investigadores estrangeiros. Como é que eles nos vêem?
Na ciência não há grandes diferenças entre nós e eles. Em algumas especialidades médicas também não. Por exemplo, os patologistas que conheço têm vidas muito parecidas com a minha, não há grandes diferenças sociais. Já um reumatologista ou um cirurgião português que tenha actividade privada ganha bastante mais do que um colega do centro da Europa.

E na sociedade?
Na sociedade há bastantes diferenças. Nós não fomos eficientes em criar riqueza, nem conseguimos deixar de gastar mais do que produzimos. Há mais de trinta anos que vou com frequência à Noruega e lembro-me de eles serem relativamente pobres quando nós éramos razoavelmente ricos. Um médico norueguês vivia pior do que um médico português, um advogado também. Nunca conheci um casal norueguês da classe média que tivesse dois carros e muito menos uma empregada de limpeza. Eles agora vivem com algum conforto mas nunca gastaram mais do que aquilo que produzem. As receitas das reservas de petróleo e de gás estão aplicadas num Fundo, não estão a ser gastas e muito menos ao desbarato.

Enquanto nós desperdiçamos o que pedimos emprestado...
Nós somos mal governados em parte por culpa própria, em parte pela escassez de líderes exemplares. Gosto muito dos países nórdicos, aprendi imenso lá, toda a minha família aprendeu. Na Noruega, na Suécia, na Finlândia, não corremos o risco de ser atropelados quando atravessamos a rua. Eles quando bebem não conduzem, vão para casa de táxi. E um ou outro que o faça é alvo de medidas sérias de repreensão económica e social e vai para a prisão. Nos países nórdicos, o exemplo conta e quem não é exemplar é punido socialmente.

Os portugueses são condescendentes?
Pior, nós admiramos o sucesso do aldrabão. Em Portugal não há censura social para a esperteza saloia nem para a corrupção a que passámos a chamar informalidade. Pelo contrário, admiramos os esquemas, os expedientes. Vivemos deles.

Mas depois queixamo-nos.
A nossa tragédia é que somos um povo pré-moderno. Não perguntamos, não responsabilizamos, não exigimos nem prestamos contas. Não temos a literacia nem a numeracia necessárias. Outro problema é a falta de transparência, a opacidade. Olhe o que se passou com o BPP e com o BPN, histórias tão mal contadas.

A evasão e a fraude fiscal são duas das grandes marcas nacionais. A corrupção é outro crime sem castigo.
Não metemos ninguém na cadeia, deixamos os problemas eternizarem-se sem punições, mas também não recompensamos ninguém. O Estado é burocrático, não nos deixa avançar, mas dá-nos segurança. A nossa tradição é empurrar os problemas com a barriga esperando que se resolvam por si. Quando as coisas dão para o torto somos injustos ou por excesso ou por defeito. Quem tem muito poder económico pode recorrer a expedientes e a mecanismos dilatórios que são usados de maneira desproporcionada. Quem não tem esse poder é totalmente vulnerável. Somos demasiado tolerantes, somos condescendentes, no mau sentido, aderimos mais ao tipo que viola a lei do que ao polícia. Temos afecto pelo fulano que faz umas pequenas aldrabices, admiramos secretamente os grandes aldrabões, não punimos os prevaricadores. Na verdade somos contra a autoridade.

Tem 63 anos e é funcionário público. Já meteu os papéis para a reforma?
Não, não sei fazer mais nada além de trabalhar. E fui sempre funcionário público, não me imagino a trabalhar numa actividade privada. O meu pavor é pensar que um dia talvez não possa trabalhar. Às vezes sinto-me um pouco desconfortável por ter de responder a tantas solicitações burocráticas no dia-a-dia, mas pior será quando deixar de trabalhar.

Continua a ser leitor compulsivo de jornais?
Fico nervoso se não tiver jornais. Leio muitos, sobretudo semanários e estrangeiros. Infelizmente gasto cada vez mais horas diárias a ler revistas científicas. Não tenho tempo para ler literatura de novo isto é, quase só releio. A falta de tempo é o meu maior problema.

O que é que o faz perder a paciência?
A irresponsabilidade e a incompetência, não sei o que é pior. Sou um exaltado mas já não tenho idade para fazer fitas. Disfarço melhor, mas se sou apanhado de surpresa é tramado.

E o que é que o faz dar uma boa gargalhada?
Sorrio mais do que rio e acho uma graça especial aos meus netos.

BI
Médico, investigador, professor, contador de histórias. O Norte e o Porto são o seu território, o Hospital de São João e a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto a sua casa, o Ipatimup (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular) a sua ilha. Uma ilha que está ligada aos cinco continentes através da ciência e do ensino. Manuel Sobrinho Simões, 63 anos, prémio Pessoa em 2002, recebeu muitas outras distinções nacionais e internacionais e é um dos mais consagrados peritos do mundo em oncologia, sobretudo em cancro da tiróide. Sobrinho Simões é um português ao serviço da humanidade.

[Entrevista de Célia Rosa, Notícias Magazine, 5 de Dezembro de 2010]

domingo, fevereiro 20, 2011

"Ciclo de teatro do Porto?", em Lisboa

[João Pedro Vaz, em Breve Sumário da história de Deus]

Escreve Inês Nadais, no Ípsilon: "Quase cinco anos depois do fim do Rivoli tal como o conhecíamos, o teatro do Porto volta a entrar num teatro municipal - mas num teatro municipal de Lisboa. É bem possível que seja o sítio certo para um teatro desesperadamente à procura de palco: no sentido literal, porque a falta de espaços de apresentação é um dos mais desmoralizadores impedimentos com que se debate a produção teatral independente da cidade, mas sobretudo no sentido figurado, porque a esmagadora maioria do teatro que se faz no Porto (o teatro que se faz fora do circuito Teatro Nacional São João - Teatro Carlos Alberto) faz-se no limiar da invisibilidade."

Serve a introdução para apresentar o ciclo "Ciclo de Teatro do Porto?", em Lisboa. Até ao dia 27 de Março (Dia Internacional do Teatro), 16 companhias do Porto (Ensemble, Visões Úteis, Circolando, Boas Raparigas, Assédio...) vão estar em cena no Teatro Municipal S. Luiz, agora dirigido pelo portuense José Luís Ferreira. O programa, no entanto, ainda pertence ao anterior director, Jorge Salavisa. O ciclo é comissariado por João Pedro Vaz, um dos melhores actores do Porto, que explicou ao Ípsilon: "É óbvio que ter de montar uma operação para que o teatro do Porto se veja em Lisboa levanta questões acerca da difusão de espectáculos em Portugal." Carlos Costa, da Visões Úteis, acrescenta: "Sinto-me um bocadinho animal tipo exótico. Como se o teatro do Porto fosse uma coisa vinda das Ilhas Galápagos. Este ciclo é sintoma de uma patologia profunda da circulação dentro do país: são só 300 quilómetros, há aviões, comboios e auto-estradas, e no entanto não se circula." Sobretudo não se circula nos dois sentidos. "Não passaria pela cabeça de ninguém organizar um ciclo de teatro de Lisboa no Porto, até porque os espectáculos de Lisboa ainda vão sendo vistos no Porto."

O trabalho de Inês Nadais sobre o tecido teatral independente na cidade é absolutamente notável. Mas demasiado extenso para o transcrever aqui na íntegra e, infelizmente, não está disponível on-line. Como ela diz, e bem, "nas próximas semana, o teatro do Porto terá um palco, e capas de jornais, e cinco minutos de fama na televisão - e claro, dirá que para ter tudo isto teve de ir a Lisboa."

Rodrigo Affreixo: Que bem se está no Porto!*

[Becas, no Passos manuel, o indestronável melhor bar do Porto]

Viver no Porto é um luxo. É por isso que muitas pessoas de bom senso nunca deixaram de morar aqui. Tem a dimensão ideal: é uma cidade suficientemente grande para nos garantir algum anonimato e suficientemente pequena para nos permitir calcorrear o seu centro a pé. Às vezes é irritante por ser tão pequena, por as pessoas serem sempre as mesmas, circulando pelos sítios tal como nós, por tudo se saber sobre toda a gente... Mas, por outro lado, é tão bom sair sozinho e saber de antemão que se vai encontrar sempre alguém conhecido quando se chega a qualquer lado... Porém, essa sensação de aldeia desaparece quando reparamos, por exemplo, no cosmopolitismo da nossa programação cultural. Estabelecendo uma relação de escala com o número de habitantes, quem dera a cidades de maiores dimensões que o Porto, por essa Europa fora, terem uma tão variada oferta, e de tanta qualidade. Vive-se bem no Porto, do ponto de vista de consumo cultural.

Tive a sorte de ter 20 anos no início dos anos 80, e assisti a tudo desde o início. Aí terá começado uma movida que ainda perdura, mas entretanto as coisas evoluíram mesmo muito. As galerias de arte e os clubes nocturnos, por exemplo, contavam-se pelos dedos. Se queríamos ver filmes fora do circuito comercial, tínhamos de ser sócios de um cineclube. Era tudo muito pouco, mas já a tentar ser muito bom. E era muito criativo e estimulante também: se queríamos ter acesso a algo tínhamos de trabalhar para isso. Alguns bares não eram apenas bares, como o Anikibobó, que foi um autêntico pólo da cultura alternativa da cidade, anos a fio. Nos anos 90, as coisas evoluíram e começaram a crescer. Primeiro com a Fundação de Serralves, depois com o Teatro Nacional São João (TNSJ), depois com o Rivoli - Teatro Municipal (período Isabel Alves Costa), a culminar no Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Da formação de público às obras de requalificação na cidade, há definitivamente um Porto anterior e um Porto posterior a 2001. A iniciativa deixou-nos, de sobremesa, a Casa da Música (CdM).

Se compararmos o que temos hoje no Porto com o que há em Lisboa, com 300 e tal quilómetros de distância entre as duas cidades, não nos podemos queixar muito, até porque contamos com o trio Serralves/TNSJ/CdM, cuja fasquia de qualidade é única em Portugal. O que é que falta mais? A Cinemateca Portuguesa. É uma das melhores do mundo e está sediada em Lisboa. Paciência, também tem de ficar alguma coisa na capital... Proclama-se muito a criação de uma cinemateca autónoma no Porto. Mas não sei se iria ter público, sinceramente. Hoje em dia, os portuenses não parecem muito interessados em descobrir os clássicos do cinema. Avalie-se o número de espectadores que acorrem a uma sessão de cinema em Serralves, ou no renascido Cineclube do Porto no Passos Manuel, ou na sala-estúdio do Teatro do Campo Alegre, para sondar o potencial da coisa. Mas, se for criada, obviamente será bem vinda.

O que é que o Porto tem mais que Lisboa não tem? Lojas únicas, com coisas importadas que não chegam lá. E uma dinâmica nocturna que não tem comparação. Lisboa tem o Bairro Alto, onde toda a gente está praticamente na rua, à volta de bares improvisados em todo o tipo de pequenos espaços devolutos; e depois tem o superlativo Lux, um excelente clube em qualquer ponto do planeta. E pouco mais. A Norte, o investimento na noite sempre foi maior e mais cuidado. Só agora é que começam a aparecer barzitos sem grande investimento, sobretudo dedicados a vender bebidas em copos de plástico para o lado da rua, aproveitando a onda "botellón" que tomou de assalto a zona Leões/Clérigos. De resto, não faltam pólos dignos de atenção.

Além do renovado Hard Club, que apesar de uma programação um pouco "démodée" é um excelente novo ponto de encontro para os apreciadores do rock, o espaço multifunções Passos Manuel também tem sido um laboratório permanente para várias áreas e camadas sucessivas de novas gerações, do rock mais alternativo à electrónica, do cinema ao teatro, com o Becas a prosseguir a aventura programática iniciada no Anikibobó. Neste registo multifunções, outros sítios têm aberto no Porto nos últimos anos, como o Maus Hábitos, o Plano B, o Armazém do Chá ou o Café au Lait. Neste momento, o Porto tem quatro bons clubes nocturnos, com uma fervilhante programação a nível de DJ's: o Gare, o Pitch, o Trintaeum e o renovado Indústria. Noutros sítios, como o Café Lusitano e o Zoom, libertaram a noite gay dos seus locais semi-clandestinos para lhe dar dignidade e sofisticação, a par de mais espaço, em ambientes abertos a outro tipo de clientes.

O regresso à Baixa como centro de lazer foi a melhor coisa que podia ter acontecido à cidade, tornando-a mais cosmopolita e habitada. É bom andar a pé na Baixa à noite e cruzarmo-nos com outras pessoas, e ver sítios abertos, e jovens alegres, pela noite fora. E de dia também. Novas lojas, novos conceitos, esplanadas com gente, bares cheios ao fim da tarde.

Neste momento, é bom viver no Porto. Está uma cidade gira e animada. Os Erasmus e os voos low-cost estrangeiraram-na e rejuvenesceram-na. Convém é não esquecer que toda esta animação se deve sobretudo à iniciativa privada, por parte da cidadania que não baixa os braços e arrisca. Vendo bem a coisa, não houve assim tanta diferença no processo, desde os anos 80: ainda há quem se organize e se mexa para que as coisas apareçam feitas. De resto, há fundações e organismos estatais que fazem o melhor que podem, e bem, enquanto uma das poucas iniciativas de Rui Rio como autarca, na área da cultura, foi ceder de mão beijada o Rivoli a Filipe La Féria para que este aí montasse os seus musicais da Broadway, anos a fio. Curiosamente, o encenador desapareceu do Porto há já uns meses e ainda ninguém apurou bem porquê. É que nem isto funcionou! E lá continua o Teatro Municipal vazio. Muito mais vazio do que quando lá tinha a lotação esgotada para as prestações de algumas das maiores companhias de dança do mundo. Na tal época em que, segundo as palavras do esclarecido presidente da câmara, "não tinham público porque os espectáculos eram maus". Mas não faz mal: hoje em dia, felizmente, vive-se bem no Porto, e do ponto de vista de consumo cultural talvez já nem precisemos assim tanto do Rivoli.

* Rodrigo Affreixo, jornalista e editor da secção "Palco" da Time Out Porto, no Ípsilon de 18 de Fevereiro.

quarta-feira, dezembro 30, 2009

"A velha tinha um gato"




Chama-se "Uma velha tinha um gato", mora na Rua dos Canastreiros, na Ribeira do Porto e abriu há um mês. E dificilmente aquele bar poderia ser mais charmoso. Logo à entrada, um sofá vermelho anuncia o bom augúrio. Mas antes (ou depois) disso, vale a pena conhecer a proprietária, mulher de teatro, dos tempos de uma cidade que se perdeu, uma mulher extraordinariamente bonita, actriz capaz de nos fazer perder as horas (e as cheias) na conversa. Depois, lá dentro, ouve-se muito boa música, lê-se o I e fuma-se alegremente. Calorosamente. De repente, faz lembrar um pub (e já ninguém diz pub) dos anos 80, mas com um update que lhe dá mais luz, mais glamour. No fim da noite, estamos em casa.

Super Bock a mais dá nisto...

Cobre a fachada do Mercado Ferreira Borges, no Porto. E mente: Aqui bebe-se cultura. Poderia haver algum slogan mais irónico?

quinta-feira, março 05, 2009

Casa de Ló


O Porto está repleto de espaços alternativos, trendy, cosmopolitas, espaços todos inaugurados nos últimos tempos e imediatamente catapultados para o roteiro fashion da cidade. Mas nenhum, absolutamente nenhum, é tão perfeito quanto a Casa de Ló, na Travessa de Cedofeita (a Travessa é uma espécie de Galerias de Paris - o mini Bairro Alto do Porto-, mas na versão freak, logo, incomparavelmente melhor).

Não é só a música que, ao contrário dos outros sítios, é boa; não são só os empregados; não são só os doces caseiros ou o fabuloso chá dos Açores; nem é só aquele maravilhoso terraço ou só aquelas magníficas mesas de lousa onde é possível desenhar enquanto se toma café. É isso tudo, mas é também a colecção de livros. A preço de chuva.

Encontrei lá o "Diário de K. Maurício", de Raul Brandão. Habitualmente, essa preciosidade constitui a primeira parte de "A morte do palhaço". Para o caso é indiferente. Quem venera Raul Brandão sabe bem como um e outro livro são difícieis de encontrar. Por cinco euros é puro milagre.