segunda-feira, março 14, 2016

Rentes de Carvalho: “Somos um país de medricas, de gente subserviente” *

O Meças, psicopata, prisioneiro dos traumas da infância e de uma violência milenar para a qual não há palavras, cobarde com os fortes, prepotente com os fracos, é menos uma personagem do que um retrato de todos nós. Nós os portugueses, “tão original mistura de trafulhice e ingenuidade”, uma raça de gente que obceca o escritor José Rentes de Carvalho. Porque, apesar de ter saído de cá há mais de seis décadas, nunca deixou de se sentir profundamente português. Quase a fazer 86 anos, sobreviveu a um cancro que lhe dava apenas 10% de hipótese de continuar vivo, descobriu Deus, encontrou a paz de espírito que é aquilo a que chama felicidade e afirma: “Não me sinto velho. Sinto-me sem idade.” Além do novo romance, daqui a duas semanas vamos poder lê-lo semanalmente num jornal diário português.

Hoje é um autor cujo reconhecimento passa também pelas vendas. No entanto, há dez anos a maioria dos portugueses não o conhecia e o meio literário fazia questão de ignorar os seus romances e o seu sucesso na Holanda…

Acho que chegar aos 86 anos assim é uma sorte. Sou um homem de sorte. Tenho que ficar feliz com isso. Mas também é uma questão de trabalho…

Não se sente ressentido com o ostracismo a que foi votado em Portugal durante várias décadas? Afinal o seu primeiro livro, Montedor, saiu em 1968 e depois teve vários livros bestseller na Holanda, mas cá ninguém o publicava.

Não, ressentido não. É normal, eu não vivo cá e o meio é pequeno e para poucos. Mas custou-me quando me deparei com uma certa maldade, como no ano em que estive na feira do livro de Frankfurt. Tinha publicado na Holanda o Portugal, Um Guia para Amigos, que vendeu mais de 200 mil livros, esgotou dez edições. Então o meu editor holandês decidiu ir a Frankfurt levando apenas o meu livro. O stand da editora (a segunda mais importante da Holanda) estava coberto com fotos da minha cara e eu estava lá. Passaram ali escritores, editores e jornalistas portugueses que eu conhecia e nenhum deles me cumprimentou. Baixaram a cabeça ao passar. Isso magoou-me muito.

Na Holanda sempre recebi provas de apreço e tenho tido excelentes, para não dizer extraordinárias, tiragens, mas nunca recebi prémios. Em Portugal recebi três. Em 1940 um quando tinha dez anos, na primária, por ser o melhor da Escola Diogo de Macedo: um livro da Condessa de Ségur e uma caderneta da Caixa com 50 escudos. Em 2012 recebi o Prémio Associação Portuguesa de Escritores (APE) para a Escrita Biográfica, e em 2013 o Prémio APE para a Crónica. Como vê não tenho razão de queixa.

Num tempo em que se diz de qualquer livro que é uma “obra prima”, em que se usa o superlativo com total leviandade, como é que vamos falar de um escritor como o José Rentes de Carvalho sem usar palavras gastas?

Olhe, diga que não pisco o olho a mim próprio. Não me permito isso. Que não escrevo livros apressados como fazem os jovens escritores. Que trabalho muito porque escrever bem dá muito trabalho.

A cada novo livro a sua escrita está mais depurada, mais no osso. Sem palavras a mais, sem palha…

Não gosto de ludibriar o leitor com romances de 500 páginas das quais metade deveria ir para o lixo. Este livro agora, O Meças, na primeira versão tinha quase trezentas páginas. Mas no final só saíram 180. Mas isso dá muito trabalho. Encontrar a palavra certa. Aquela que não pode ser substituída. Escrever a frase do tamanho certo, sem coisas a mais nem a menos. Tirar os ditongos. Odeio ditongos, são a desgraça da língua portuguesa. Mas sobretudo encontrar a melodia interna do texto.

Este seu novo livro começa precisamente por dizer: “Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las.” Passamos a vida a arrastar sentimentos para os quais não temos palavras?

A maioria das pessoas vive com um vocabulário tão limitado. Mesmo que elas queiram ir mais ao fundo não têm palavras para se pensar e então não podem sair da superfície. Vivem de slogans. Isso é trágico. Porque depois resta-nos imitar, querer imitar os outros. Achamos que eles vivem noutro mundo. Mas não. Aquilo que separa as pessoas é o facto de umas terem palavras e outras não as terem.

É esse poder das palavras que faz a verdadeira comunicação e comunhão humana?

As palavras têm o poder de um toque, expressam o mais fundo de nós. Nenhuma imagem consegue isto. Mesmo quando era apaixonado por cinema nunca duvidei que a imagem fosse secundária porque só na palavra acontece a verdadeira comunicação entre duas pessoas. Triste daquele que nunca experimenta essa verdadeira comunicação, porque nunca se dá e nunca recebe.

Somos um povo sem palavras, por tantos séculos de miséria e analfabetismo?

Somos, e por isso queremos ter coisas. De preferência coisas caras que preencham esse vazio, que deem um sentido aparente ao caos interior. Por exemplo, na Holanda não há carros de luxo. Quem tem carros de luxo são os traficantes de droga e as prostitutas e os parolos. As pessoas normais têm um utilitário. Aqui essa necessidade de mostrar, de exibir, esse parolismo começa logo nos políticos. Ser político à portuguesa implica logo ter um carro de luxo. É uma coisa triste mas que depois só me dá vontade de rir.

Mas nas anotações finais do seu livro também reflete sobre as elites que continuam a querer o povo analfabeto…

Isto foi dito por um politico há uns tempos. Fiquei com tanta raiva. É a típica mentalidade das elites, sejam elas de direita ou de esquerda, que querem manter o povo estúpido. Houve um momento depois do 25 de abril em que pareceu possível que isso fosse mudar. Mas hoje as pessoas mais pobres não têm outra vez dinheiro para mandar educar os filhos. Porque isso não foi uma ideologia que criou raízes. Foi apenas uma consequência dos anos de caridade europeia para connosco. Porque o país não funciona em função das necessidades dos seus cidadãos. Permite a riqueza a uns quantos e os outros são descartáveis. E, infelizmente, os cidadãos não se revoltam, apenas resmungam…

Não sabemos conviver com a nossa maldade natural, a nossa perversidade, achamos sempre que somos os bons da fita?

Somos um país de medricas, de gente subserviente, assustada. Porque somos carinhosos e julgamos sempre que os outros sabem mais, têm mais. Um português abertamente arrogante é um sujeito que sai fora da norma. Talvez seja um medo psicanalítico do pai…

Olhe o José Socrates: é carismático, é mau, é estúpido. Como personagem romanesco é uma mina de ouro. Mas nenhum escritor pegou ainda nele. Nem os mais jovens. Eu faria dele um Rastignac como o de Balzac.

N’ O Meças, a psicopatia, a loucura, o medo são omnipresentes. O José Rentes mostra-se exímio na arte de nos fazer sentir assustados como se estivéssemos nós próprios a ser vítimas de um predador. É uma técnica dos anos em que trabalhou no cinema?

Não tanto. O que faço é escrever como predador e depois escrever como vítima. Ser os dois ao mesmo tempo. De resto o cinema já não me interessa. É como um amor acabado. Acho que não vou ao cinema há uns 20 anos. Aquilo é tudo feito por quem tem dinheiro e já não tem nada que ver com arte. São histórias da carochinha com muitas explosões e efeitos especiais.

Mas o cinema foi uma das suas grandes paixões. Nos anos 50, em Paris, conheceu François Truffaut, Claude Chabrol, viveu por dentro a Nouvelle Vague, conheceu belas atrizes, e mesmo o Gabriel Garcia Marquez, que descreve como uma pessoa “muito irritante”…

Eram os anos 50, ainda sem o folclore existencialista. Vivia-se o clima eufórico do fim da 2ª Guerra, a vertigem do prazer sem pílula anticoncecional, que causou muitas trapalhadas. Na verdade interessava-me mais observar do que participar. Eu era uma esponja. Queria aprender tudo. Sobretudo com as raparigas. Eu era pobre, baixo, feio, português, sem allure, mas ficava sempre com as raparigas mais bonitas. Esses encontros foram mais determinantes do que o convívio com as “estrelas”. Se escrever as minhas memórias ninguém acredita… Mas vivo fora de mim e tenho apenas a alegria de dar e um interesse verdadeiro em conhecer as outras pessoas.

No entanto escreve: “Certo é que me prefiro anónimo, e quando posso escolho a solidão, avesso que sou a exibir e a partilhar, sofrer dependências, prestar contas.” O José Rentes é como a personagem deste narrador?

Sim, sim, além da minha mulher não tenho intimidades que permitam a alguém ver-me por dentro

No final do livro reflete sobre a fragilidade das relações de amizade. Porque é que as relações de amizade, que nos parecem tão fortes, são afinal tão volúveis?

Nunca houve uma amizade que não me traísse. Damos aos outros a confiança de penetrar no mais fundo de nós. Temos a ilusão de que a relação está bem assente e depois vem qualquer coisa, tantas vezes uma coisa ridícula, um raio de luz que aponta para qualquer coisa que estava obscurecida e vem o desencanto, o desapontamento. E depois é o final. Sou incapaz de retroceder. Quando alguém me desaponta é o fim. Nos amores e nas amizades, quem me trai acabou.

Por ausência de lealdade?

Eu sou leal até ao sacrifício pessoal. Mas ai de quem eu descubra a falsidade, perco a cabeça. Acho que se fosse menos civilizado, como Meças, seria capaz de matar as pessoas que me traem… sou capaz de grandes fúrias.

Mas essa postura não é sobranceria? Porque afinal todos nós somos falíveis?

Sim, somos falíveis, mas não temos que ser manhosos, baixos, tão capazes de usar as amizades em proveito próprio.

Como aconteceu na sua relação com o historiador António José Saraiva, que acabou em tribunal…

Fui aluno do António José Saraiva no liceu de Viana do Castelo. Era o único a quem ele dava “ótimo” nos textos. Reencontrei-o em Paris uns vinte anos depois, já nos anos 60. Eu já vivia na Holanda e ele tinha-se exilado em Paris e vivia numa situação muito precária. Então eu, que já estava a lecionar na Universidade de Amesterdão, achei que o Saraiva era um bom candidato à cátedra de Língua Portuguesa que entretanto tinha ficado vaga. O catedrático espanhol insistia que o Saraiva era um pulha mas eu e o meu colega holandês não lhe demos ouvidos. Ele chegou e logo na aula inaugural, em vez de fazer um trabalho original, limitou-se a ler uma coisa de uma conferência que já tinha feito em França. A partir daí foi rodeado de uma corte de maoistas fanáticos como ele e como a Teresa Rita Lopes [com quem António José Saraiva vivia] e começámos a entrar em choque. Tudo começou no dia em que íamos pela rua de Amesterdão e a Teresa Rita Lopes parou na montra de uma loja de casacos de peles e perguntou ao Saraiva se não lhe comprava um. Aí eu não me contive e gritei-lhe: “Casaco de peles uma grandessíssima merda. Então você não é comunista?” A partir daí ele começou a tentar que eu fosse expulso da Universidade. No dia depois do 25 de Abril um jornal holandês escreveu que eu tinha sido preso em Lisboa porque era da PIDE. Quando voltei para Amesterdão percebi que tinha sido o Saraiva que tinha inventado aquela história. Movi-lhe um processo em tribunal e ele foi condenado por difamação. A Universidade decidiu demiti-lo, mas uns dias antes ele já tinha vindo para Lisboa onde tinha arranjado um lugar de professor na Universidade Nova. Mas este foi apenas uma das vezes em que quis ajudar, em que fui sincero e leal e levei um pontapé. [A história, em pormenor, pode ser lida no blogue de José Rentes de Carvalho O Tempo Contado.]

Diz que com as mulheres é-lhe mais fácil relacionar-se…

As mulheres são mais carinhosas. Nos homens há sempre uma barreira animal que não consigo ultrapassar.

Isaura, a personagem feminina deste romance, é uma mulher fraca e fútil. Escreve: “Também a ela lhe faltam as palavras que a ajudem a ver claro, ter ideia das razões do seu destino, do que a magoa, torna insegura e fraca, impotente para se libertar da sua condição de fêmea.” Acha que as mulheres portuguesas são assim?

Sim, são tendencialmente submissas, obedientes. Só dentro de si mesmas têm um bocadinho de rebeldia, que raramente deixam escapar. Há muitas que até gostam de se gabar disso dizendo “este é o meu homem” ou “este é o meu patrão”. Isaura é assim, de uma submissão e de uma futilidade assustadora. O Correio da Manhã está sempre cheio de história de mulheres assim.

Depois dos anos de galã parisiense, foi para a Holanda e casou-se com duas irmãs…

O meu primeiro casamento foi um erro crasso do qual rapidamente me apercebi, mas entretanto já tinham nascido três filhas. A Loekie também era casada com um brasileiro e vivia no Brasil. Quando ela se separou do marido e regressou a Amesterdão fomos jantar e percebemos que tínhamos sido feitos um para o outro. Desde essa noite nunca mais nos separámos. O difícil foi comunicar isto à família. Mas no final todos acabaram por aceitar. Só aquela senhoras velhinhas lá em Estevais é que às vezes ainda me perguntam: “Então e como é que vai a outra?” Sem a Loekie, a minha mulher, eu não funcionava na sociedade. Ela tem a capacidade de evitar que eu ceda ao meu temperamento. Ela guia-me. É a única pessoa no mundo de quem eu aceito a opinião. Mas temos quase 60 anos de vida em comum.

Depois da vertigem de mundanidade em Paris foi-lhe fácil passar a ser um homem casado e quotidiano?

Ah, isso nunca fui! Às vezes sou de uma infantilidade sem cabimento… O que vale é que a minha mulher tem muita compreensão com o meu lado de miúdo.

Outro dos seus temas recorrentes é a impossibilidade de escaparmos às cadeias geracionais, ao atavismo e às consequências de uma miséria milenar. Neste novo livro esse é um tema central.

É um automatismo que é mais forte do que nós. Em Trás-os-Montes os camponeses pedem um subsídio e vão logo comprar o maior trator que houver. Maior que as terras que têm, que acarreta custos que eles depois não podem comportar. Mas compram-no e depois usam-no para ir ao café. O trator não é afinal uma libertação é só mais um mecanismo do atavismo. Quando envelhecem voltam à pá e à enxada e vão todos os dias para a terra plantar batatas que não precisam e couves que ninguém quer…

Outro dos nossos atavismos com o qual embirra é essa instituição nacional chamada “almoço”.

Um vez li num jornal um ministro português a reclamar que tinha muito trabalho e exclamava: nem almocei! Palavra de honra que até cortei essa notícia e a colei num caderno. Na Holanda só se faz uma refeição de faca e garfo por dia. Há uma paragem a meio do trabalho para comer duas fatias de pão e um copo de leite e já estão as bicicletas velozmente a pedalar de um lado para o outro. Em Portugal as pessoas têm que parar para almoçar porque acham que não aguentam… já viu a calma com que os portugueses almoçam? Mesmo quando emigram para países que não têm a tradição do almoço os portugueses insistem em almoçar…

Depois de viver em Portugal, nos Estados Unidos, no Brasil, em França, foi na Holanda que encontrou uma sociedade coincidente com aquilo em que acredita?

Sim. Se tivesse ficado no Brasil tinha morrido aos 40 anos. A estratificação social, as injustiças, a crueldade é muito pior do que aqui em Portugal. Na Holanda encontrei uma sociedade e uma liberdade próxima do meu ideal.

Perdeu aquilo que no seu livro chama “o grande medo”?

Sim, já perdi esse medo de existir. Esse medo é como uma sujidade da qual não nos libertamos senão com muito esforço. Há cerca de 10 anos tive um cancro nas glândulas salivares que já estava espalhado quando foi descoberto. O médico avisou-me de que tinha apenas 10% de chances de sobreviver e o mais provável era ficar inválido. A operação durou 14 horas. Acordei da anestesia a sorrir. Há dois anos fiz outra operação, desta vez às vértebras, que me dava também fortes probabilidades de ficar paraplégico. Não fiquei. Tive sorte. Tenho tido muita sorte.

Foi nessa altura que descobriu Deus?

Sempre fui agnóstico, direi agnóstico à portuguesa, oscilando entre o desinteresse e a suspeita da existência da divindade, mas o ver a morte de tão perto talvez tenha contribuído para me interrogar sobre as minhas certezas e incertezas. Não vá agora julgar que essa mudança foi causada por uma qualquer forma de gratidão devido a ter escapado a perigos, o que seria absurdo. Foi, sim, um processo muito íntimo, demorado, resultando na perceção de algo que me transcende. Sem lhe dar nome ou catalogar numa crença, vem-me daí uma paz que desconhecia e uma inesperada alegria de viver.

A dada altura n’ O Meças, o narrador reflete sobre o romance de Graham Greene, England Made Me. O José Rentes de Carvalho pode dizer “Portugal made me”?

Oh, sim, claro. Sem dúvida, “Portugal made me”. Posso gostar muito da Holanda, mas é nesta paisagem, nestes cheiros, na asfixia das montanhas transmontanas que encontro o meu Eu mais profundo. Mas também é por isso que me entristeço e enraiveço tantas vezes com Portugal. Houve uma altura da minha vida em que deixei de escrever em português e um dia queria encontrar uma palavra e não me lembrava. Apanhei um susto. Senti-me amputado. A partir daí, tudo o que escrevo é em português.

* Joana Emídio Marques, no Observador

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