(Gonçalo Villaverde)
A sua demissão do secretariado nacional do PS depois das eleições legislativas foi considerada precipitada. A esta distância, admite que foi excesso de voluntarismo?
Não. Admito que não me senti confortável com a solução encontrada. Ao contrário da coligação de direita, do BE e do PCP, o PS saiu profundamente derrotado das eleições. Acho questionável que se tenha constituído uma solução política no vértice da qual está o PS.
Antes das eleições, defendeu que a vitória da direita seria "um atestado da nulidade política da esquerda socialista". Que consequência tirou desse atestado?
Não me mascarei de vencedor, embora sinta que me roubaram uma derrota honrada. Mas realmente a vitória da direita foi alcançada contra todas as probabilidades. Como é possível ter vencido ao fim de quatro anos de crueldade social?
Também antes das eleições, disse que era preciso "acabar com a ideia de que a impossibilidade de uma acordo os partidos de esquerda é responsabilidade do PS". Por que razão mudou de opinião?
Não mudei. O PS perdeu as eleições e foi desafiado pela extrema-esquerda, que já tinha derrubado governos do PS, a colaborar numa estratégia que arredasse do poder o partido que ganhou as eleições. Não é exatamente a mesma coisa. Quando no PS se estabeleceu a doutrina de que não há nenhuma razão para que o PS não mantenha um diálogo construtivo à esquerda, o que sempre se pretendeu dizer é que se o PS falhasse a maioria absoluta deveria conversar com os outros parceiros da esquerda. O que nunca se discutiu foi a possibilidade de o PS falhar a própria maioria relativa e formar um governo com o apoio dos partidos de esquerda, numa situação de enorme precariedade e de débil legitimidade.
O apoio dessa esquerda não lhe merece o benefício da dúvida?
Não só merece, como espero que este governo seja bem sucedido. É essencial para o país e para o PS. Mas as minhas reservas não perderam a justificação. O líder do partido mais votado deve ser primeiro-ministro.
Seria diferente se o PCP e o BE aceitassem integrar o Governo?
Sim, porque a situação seria mais clara e o governo era mais forte.
A reserva prende-se com o facto de o processo ter começado mal?
Começou mal, como é evidente. A solução encontrada assenta na ideia de que as diferentes forças de esquerda têm o suficiente em comum para proporcionar ao país uma estratégia nacional coerente. Tenho as maiores dúvidas a esse respeito, mas isso não me impede de dar uma contribuição para que as coisas corram o melhor possível. O país não pode correr o risco de os próximos anos serem de regressão ou de impasse histórico.
Que avaliação faz do desempenho do PCP e BE nestes seis meses?
O PCP tem adotado posições muito patrióticas ao lado do governo, designadamente neste Orçamento do Estado. O BE faz um sacrifício muito mais pequeno, porque é mais pragmático e desenvolto na sua atuação política. Não vai descansar enquanto não ocupar o lugar do PS no sistema partidário.
Há alguma proposta de alteração ao orçamento por parte dos partidos de esquerda em que não se reveja?
As medidas do PCP e o BE não são deles - são acordadas com o PS. O preço do acordo é esse: eles apresentam propostas e o PS apoia.
Isso deixa o PS em que posição?
O PS parece um partido condenado a gerir as suas duras realidades enquanto os outros partidos das esquerdas vão arrancando admiráveis propostas políticas que permitem ao país avançar na senda progressista. É uma grande rábula, porque estamos condicionados pelas condições de sobrevivência do governo que temos. A manutenção deste governo depende de proporcionar aos nossos amigos condições para apresentarem propostas que nós apoiamos e que eles rentabilizam politicamente como grandes avanços, de que eles próprios são os protagonistas. E assim se constitui uma solução política em que todos sentem que têm alguma coisa a ganhar com ela. Eu, que sou um político de esquerda, tenho aversão à demagogia, aos vendedores de banha da cobra, à retórica balofa, ao aventureirismo.
Está a classificar o atual governo?
Não. Estou a dizer que não aceito que certas soluções políticas alternativas ao PS, só porque se dizem à esquerda do PS, estejam forçosamente à esquerda do PS. Não acho que no histrionismo, por vezes pouco ponderado e pouco refletido, haja mais esquerda. O grande partido liderante da esquerda portuguesa chama-se PS.
António Costa é, do ponto de vista da solução governativa encontrada, uma desilusão?
Não vou fazer esse tipo de consideração desprimorosa.
Até onde pode resistir o governo nesta negociação simultânea com Bruxelas e os parceiros de esquerda?
Até ao fim da legislatura. Ninguém quer arcar com a responsabilidade de entregar o país à direita, porque teria um preço elevado nas urnas.
A renegociação da dívida é o que mais o afasta dessa esquerda?
A moeda única tem um impacto assimétrico nas diferentes economias, engendra vencedores e perdedores. Nós somos perdedores sistémicos. A crise do euro conduziu às crises das dívidas soberanas e a que países como Portugal estejam sobre-endividados. Temos poder para resolver esta situação? Não temos. Queremos uma experiência de tipo Syriza desafiando as instituições europeias? Eu não quero. Há sempre uns histriões que consideram que a alternativa é pôr em cima da mesa o debate da renegociação da dívida, como se isso dependesse de uma resolução nossa de reunirmos num sábio conclave e decidirmos que não pagamos a dívida. É um debate que conduz à desgraça nacional. Existe zero de abertura para esse debate. O que existe, nesse quadro, é comprometer a confiança que o país ainda tem no exterior, travar um combate suicidário em que vamos perder, pagar a dívida na mesma, mas com a desconfiança total dos nossos parceiros. Claro que também pode haver um incumprimento unilateral, se decidirmos que não pagamos a dívida. Em termos financeiros, seríamos uma espécie de estado pária e não sei que futuro teria Portugal.
Se sem renegociação da dívida não há possibilidade de crescimento, qual é então a alternativa?
Não existe abertura para tratar o problema da renegociação da dívida, o que não significa que o problema não seja uma questão da maior importância. Como é evidente, a dívida e os juros absorvem recursos que nos fazem muita falta para o investimento. Só que, neste momento, não existe no Conselho Europeu, abertura para isso. Queremos forçá-la? Para quê? Para repetirmos a obra do Syriza na Grécia, que hoje é um disciplinado aplicador das mais violentas deliberações da troika que acompanha o ajustamento grego?
O que falta testar na Europa para resolver o problema dos países do Sul, incluindo Portugal?
Portugal tem que reorientar a sua política europeia no sentido de contribuir para que a Europa dê passos em frente que permitam que se dote de um orçamento capaz de compensar os países que são vítimas do funcionamento da moeda única. Uma coisa semelhante ao que foram os fundos estruturais quando aderimos ao mercado comum. Só será possível num quadro de maior integração política, económica, orçamental. Mas o país também deve acompanhar, com capacidade crítica, no sentido da sua autonomia nacional e do seu interesse próprio, as diferentes iniciativas europeias de forma muito mais aguda e cautelosa do que no passado. Temos o dever de incorporar a aprendizagem da nossa experiência nos últimos anos, em que a solidariedade europeia em larga medida nos faltou.
Até onde é possível continuar a fingir que é possível resolver o problema da banca sem resgate?
Não diria que se anda a fingir. Existe a expectativa de que a situação da banca não continue a degradar-se. Se acontecer, e se se demonstrar que são necessárias medidas penosas para garantir que os compromissos europeus são cumpridos, essas medidas serão tomadas. Mesmo sendo um governo que se constituiu com a sua base política de apoio em torno de uma ideia vaga de rejeição e superação da austeridade. Não me admiraria nada que os impostos indiretos viessem a subir.
Esboroando as diferenças entre este Governo e o anterior?
Este governo não é igual ao anterior, já tomou medidas altamente diferenciadoras do anterior. Mas é verdade: quanto mais as diferenças são microscópicas, maior é a gritaria politico parlamentar. A regra costuma ser essa.
Que reflexão defende que se impõe no congresso do PS de junho?
O congresso deve servir para o PS lembrar ao país, e a si próprio, que tem sido com todas as suas dificuldades, insuficiências e desgraças a grande força de transformação e progresso em Portugal desde o 25 de Abril. A grande preocupação do PS, neste momento, deve ser preservar a sua identidade e reafirmar a sua força política liderante como grande partido da esquerda democrática. Um partido que não assenta nem aceita que está posicionado à direita dos outros partidos que se reclamam da esquerda. Mas que entende que o seu caminho, com uma componente muito forte liberal, para não dizer libertário, é o o único que verdadeiramente serve os grandes ideais que a esquerda historicamente prossegue. Há muitos aspetos no capitalismo que nos repugnam, mas nós não temos nada para contrapor e para substituir o modelo capitalista. Temos essa humildade perante a História. Não queremos substituir o capitalismo por qualquer experiência, porque todas as experiências já foram tentadas. Há muita esquerda que quer escaqueirar o capitalismo à pedrada e a canelada. Não sei o que fariam com isso e gostaria de não estar cá para ver. O capitalismo corrigido pela experiência social-democrata - sim, por nós, socialistas - é o modelo económico que permite criar riqueza e arrancar pessoas da pobreza. O resto são caminhos que não conduzem a lado nenhum, como a história se encarregou de demonstrar.
"Problema dos refugiados mostra o fracasso da Europa na sua dimensão de caricatura"
Apoiou Maria de Belém nas presidenciais, que teve um resultado pobre. Foi um erro o PS ter criado um candidato para correr contra Sampaio da Nóvoa?
Uma correção: não fui consultado, não concordei e não apoiei Maria de Belém. Anunciei, a dois dias das eleições, que ia votar nela. E expliquei porquê. A candidatura dela foi um erro, e a de Nóvoa também. Erros por deficiente condução do PS.
O PS deveria ter tido candidato?
Um candidato forte, que disputasse a vitória. Mas não quero reabrir isso e remexer nas feridas do PS.
Venceu Marcelo Rebelo de Sousa e disse que fez um discurso na tomada de posse em que "todos portugueses podem rever-se". Foi o seu caso?
Gostei do discurso. Sou um dos tais portugueses que correspondeu à expectativa do primeiro-ministro.
Não poderia ter votado nele pelo facto de, juntamente com António Guterres, ter boicotado, em 1998, a sua proposta de despenalização do aborto?
A derrota da minha proposta foi mais responsabilidade do Eng. Guterres do que de Marcelo. O então líder do PS deu indicação de que o partido não tinha posição e iria votar contra. Fez uma avaliação profundamente errada de Portugal e do estado em que a sociedade se encontrava.
No plano simbólico, reconciliou-se com Guterres quando foi eleito para o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados?
Não tenho uma visão novelesca da política. Tenho grande estima pessoal pelo Eng. Guterres, que é um homem fora do comum. Sempre me considerei reconciliado.
O episódio da ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque, contratada pela empresa de gestão de dívida que lucrou com a venda de créditos do Banif, é um exemplo do que diz ser "imitações plastificadas" das grandes figuras?
Esse assunto deve ser e vai ser escrutinado na comissão de ética. Mas, independentemente do que será o ponto de vista estritamente jurídico, esse episodio é de total falta de juízo.
Descredibiliza a classe política?
O desprestígio resulta de fatores complexos. Um deles é a impotência da classe política, que já foi poderosa e hoje está condicionada, sendo incapaz de corresponder à expectativas que as pessoas legitimamente depositam nela. O enfraquecimento desse poder é o tema central do nosso tempo - e é a razão principal para o desprestígio. Depois, haverá outras razões menores, mas muito amplificadas, de políticos que dão maus exemplos, afetando os partidos todos.
A que distância está a Europa do projeto ideal inicial?
Vivi com perplexidade, angústia e profunda tristeza a alteração de natureza da construção europeia, em que a sua dimensão política, integracionista, federalista e idealista foi suplantada pela afirmação egoísta e contraditória dos interesses dos estados. Embora estejamos dentro da União Europeia, sentimos que voltou a prevalecer a velha lógica das relações de poder. Pensámos que essa etapa histórica estava largamente ultrapassada, e que o projeto europeu - essa ideia de uma construção política orientada para uma união cada vez mais estreita dos povos, essa ideia da Europa como comunidade de destino, e todos esses grandes princípios orientadores, que historicamente só são compreensíveis depois dos horrores das duas guerras mundiais - estavam aqui para ficar. E que a Comissão Europeia faria vingar o princípio da igualdade dos estados e faria com que prevalecesse sempre o interesse comum. De repente, tudo isso ruiu. Para quem acreditava no projeto europeu - e ainda acredita, mas com uma atitude mais crítica -, foi um grande desapontamento.
É autor da iniciativa parlamentar que repudiou a lei dinamarquesa de confisco dos bens a refugiados. O problema dos refugiados é a prova da falência desse ideal?
É já o fracasso na sua dimensão de caricatura. Como é possível que alguns dos países mais prósperos do mundo sejam tão avaros no acolhimento dos mais desesperados entre os desesperados, que são os refugiados de guerra? Como é que há países com PIB per capita extraordinários a permitirem-se espoliar os refugiados dos seus haveres para comparticiparem nos custos do seu próprio salvamento da guerra? É uma mercantilização de direitos fundamentais. Em Portugal, pela sua profundíssima cultura cristã e católica, semelhante indignidade nunca poderia ocorrer, mas diz muito do estado em que a está a Europa. Se decidir constituir-se como uma comunidade de interesses não vai ter um futuro tão duradouro nem tão interessante como poderia ter enquanto comunidade de valores.
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