domingo, fevereiro 19, 2006

Memória

(Fotografia: José Miguel Gaspar)


Nem vale a pena disfarçar, os dias de chuva são melancólicos, taciturnos, preguiçosos. É impossível ouvir qualquer música que não seja triste, que não esfaqueie o coração. É impossível não abrir a janela para deixar entrar o frio e o cheiro da terra molhada. E o odor do sopro que entra é como o jogo imprevisível de uma roleta que nos obriga sempre a estacionar num capítulo qualquer armazenado na memória. Essa memória que nos ressuscita e dilacera ao mesmo tempo.
O sopro desta chuva estacionou em ti. Se calhar porque costumavas dizer que eras feliz mesmo que chovesse, sobretudo se chovesse. E ficavas feliz quando chovia. Abrigavas-me dentro do teu casaco e guiavas-me no meio de uma gargalhada. Bebíamos como doidos, dançávamos até ser dia. Contigo os dias de chuva nunca eram tristes. Uma vez disseste que quando nos conhecemos pensaste imediatamente em todas as pessoas que me fariam sorrir ao longo da vida. Talvez por isso, de cada vez que alguém me faz sorrir, penso invariavelmente em ti. Por isso, e porque deixamos de sorrir juntos. Perdemo-nos de vista. Habituámo-nos ao silêncio.
Dizias que éramos diferentes porque temos sardas. Inventavas provérbios sobre isso. "Se uma pessoa tiver sardas nunca vai separar-se de outra que também as tenha". Dizias que éramos como o Robin e a Marion, apesar de não vivermos na floresta. E que dali a 400 anos ainda seríamos recordados. Acabamos os dois a acreditar. Selamos a crença com um cachecol. Tanto quanto me lembro é um ritual de eternidade usado na Índia. Pelo menos, foi o que me disseste. Acabamos os dois a não cumprir. E a música que sempre me cantaste - "You never close your eyes anymore when i kiss your lips/And there's no tenderness like before in your finger tips/ You're trying hard not to show it/ But, baby, i know that" -, passou a ter um significado que nunca lhe tínhamos dado.
Éramos sobretudo amigos. De verdade e de coração. Eu dizia que eras a minha melhor amiga, porque não sabia fazer nada sem ti e tudo o que fazia contigo era perfeito. Nunca tinha medo. E nunca se agradece sufucientemente a alguém que nos faz deixar de ter medo. Tu dizias que eu era o teu James Dean por causa de um documentário: "Se ele entrasse na sua vida, ela nunca mais seria a mesma". A memória devia ser uma sala fechada onde nunca é possível ir. Mesmo em dias de chuva. Sobretudo em dias de chuva.

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