quarta-feira, agosto 31, 2011

Fernando Pessoa (?)

[Foto: JMG]

Um dia a maioria de nós irá separar-se. Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que partilhámos. Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das vésperas dos finais de semana, dos finais de ano, enfim… do companheirismo vivido.

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje, não tenho tanta certeza disso.

Em breve, cada um vai para o seu lado, seja pelo destino ou por algum desentendimento, segue a sua vida. Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe, nas cartas que trocaremos. Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices… Aí, os dias vão passar, meses…anos… até esse contacto se tornar cada vez mais raro. Vamos perder-nos no tempo… Um dia, os nossos filhos verão as nossas fotografias e perguntarão: “Quem são aquelas pessoas?” Diremos… que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto! “Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!” A saudade vai apertar dentro do peito. Vai dar vontade de ligar, de ouvir aquelas vozes novamente. Quando o nosso grupo estiver incompleto, havemos de reunir-nos para um último adeus a um amigo. E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos. Então faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes daquele dia em diante. Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vida, isolada do passado.

E perder-nos-emos no tempo…..

Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades… Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos.

terça-feira, agosto 30, 2011

Friends with benefits by Will Gluck



Melhor que Red Bull.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Rock

domingo, agosto 28, 2011

sexta-feira, agosto 26, 2011

Logic tutorial


Se não doer, se não houver a violenta probabilidade de doer, o medo de doer, o pânico de doer, de perder, de morrer, não vale a pena, não conta. É esse o critério. O único.  

quinta-feira, agosto 25, 2011

Big sleep


Um dia acordamos (para a vida?) e descobrimos que as pessoas que conhecemos não são todas incríveis. Que lhes demos coração e elas retribuíram com mentira continuada. Que lhes abrimos a porta de casa e elas fecharam a porta da dignidade que lhes supunhamos. Que as elevávamos em público enquanto elas nos diminuíam às escondidas. Que lhes daríamos um rim se isso lhes salvasse a vida enquanto elas só não nos mataram porque não calhou. Que o que de nós era peito aberto, delas era punho cerrado. Que o que de nós era nudez e ternura, delas era capa e espada. A maldade rima com ignorância, faz sangue, dói, mas tem de ser, devia ser, infinitamente mais triste para quem faz dela modo de vida.

Nós dizíamos alto porque acreditávamos mesmo que éramos brutalmente privilegiados por nunca termos conhecido ninguém mau. Quando todos contavam histórias de traições e deslealdades, nós ficávamos emudecidos, sem história para contar. E não, não nos parecia estranho, ingénuo; parecia-nos só a justa compensação pela forma que escolhemos para estar na vida. Quanto tempo teremos andado a dormir? E descobrir isto só depois dos 30 é perigoso ou a parte boa da notícia má?

quarta-feira, agosto 24, 2011

Borges faria hoje 112 anos...


Funes, o Memorioso


(...) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Facto pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.

(...) Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Os meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; A minha memória, senhor, é como depósito de lixo. (...) Não sei quantas estrelas via no céu.

(...) Funes não recordava apenas cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não teria acabado ainda de classificar todas as lembranças da infância.

(...) Funes discernia continuamente os avanços tranquilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da unidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. (...) Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo.

(...) Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

(...) Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

Jorge Luis Borges: Prosa Completa

domingo, agosto 21, 2011

You & Me




If you love a soul more than fame and gold, and that soul feels the same about you, it’s a natural fact, there’s no turning back, and here’s some advice to you: you’ve got to say it.

sábado, agosto 20, 2011

Para se ser feliz...



... é preciso ser-se um bocado parvo. Eu, por exemplo, sou. A felicidade é inversamente proporcional a uma série de coisas de boa fama, como a sabedoria, a verdade e o amor. Quando se sabe muito, não se pode ser muito feliz. A verdade é quase sempre triste.
Miguel Esteves Cardoso, Os meus problemas

sexta-feira, agosto 19, 2011

Ivan Turguéniev: Fumo


Estava só no vagão; ninguém o incomodava. "Fumo, fumo", repetiu ele algumas vezes: e, de súbito, pareceu-lhe que tudo era fumo, tudo, a sua própria vida, a vida russa - tudo o que era dos homens, e especialmente tudo o que era russo. "Tudo fumo e vapor", pensou, "tudo parece mudar continuamente, em toda a parte novas formas, acontecimentos, mas no fundo é tudo o mesmo; tudo corre, tudo se apressa para qualquer parte - e tudo desaparece sem um rasto, nada atingindo; o vento muda - e tudo se lança na direcção oposta, e de novo começa o mesmo jogo incessante, ansioso e fútil." Lembrou-se de muita coisa que tivera lugar com clamor e comoção em frente dos seus olhos nos últimos anos... "Fumo", pensou ele, "fumo!" Lembrou-se das controvérsias acesas, das discussões, dos gritos no quarto de Gubarióv e em casa de outras pessoas, grandes e humildes, avançadas e reaccionárias, velhas e novas... "Fumo", repetiu, "fumo e vapor". 

[Clássicos Relógio D´Água: uma edição com uma quantidade de erros de ortografia absolutamente escandalosa.]

quinta-feira, agosto 18, 2011

quarta-feira, agosto 17, 2011

19ª edição Paredes de Coura

Enorme João Bonifácio, na sexta-feira passada, no Ípsilon:

Porque se trata de Jarvis Cocker e seus muchachos podemos dar-nos a exageros, subjectividades avulsas, afirmações grandiloquentes da treta. Por isso, é com muita alegria que se afirma que: o regresso dos Pulp aos palcos - este 18 de Agosto estão em Paredes de Coura - mesmo sem novas canções, foi a melhor notícia que os melómanos formados nos anos 1990 receberam na última década.

Há uma certa justiça poética nisto: é que em 1994, antes de editarem "His'n'Hers", ninguém dava um pataco furado pelos Pulp. Mesmo durante a febre da britpop, ali em meados dos anos 90, quando Cocker e comparsas debitavam single perfeito atrás de single perfeito nunca foram eles a estar no centro das atenções, divididas que estavam as ondas hertzianas entre os Blur (herdeiros dos Kinks) e os Oasis (herdeiros de um monte de entulho).

Por isso é engraçado que dez anos após fecharem oficialmente as portas, os Pulp sejam olhados com uma reverência que não se atribui aos restantes dos idos de 90. Em parte porque quem com eles cresceu ficou órfão do único tipo que lhes tinha dito: "Não faz mal tropeçar nos atacadores, não faz mal usar as camisas rosa choque da irmã, não faz mal entrar em casa da vizinha para roubar os soutiens do cesto da roupa suja, levá-los para casa e cheirá-los". O tipo que lhes tinha dito: não faz mal ser anormal - mesmo que no fundo queiras ser normal. É nisto que reside a ascendência de Jarvis Cocker sobre todos os outros: muitos tinham canções, mas só ele tinha grandes canções que legitimavam o desconforto, o não saber como abordar uma rapariga, a falta de gosto a vestir, os complexos de inferioridade.

São dez anos de orfandade, dez anos em que a geração que idolatrou o senhor C. cresceu, não arranjou emprego fixo - o que é muito Pulp -, se calhar aprendeu a vestir-se um pouco melhor e com sorte sacou uma garota e teve filhos. Dez anos, mas só oficialmente. Porque quando os Pulp editaram o último disco, "We Love Life", já tinham desaparecido das massas. É muito reveladora a forma como se deu a queda mediática dos Pulp. Em Novembro de 1996, apenas um ano e picos depois da edição do seminal "Different Class", ainda eram um magno cometa pop de dimensão mundial. Nesse mês, e após dois anos de intensas gravações e digressões, Jarvis Cocker, pressionado pela editora para começar a preparar o disco seguinte, entrou em estúdio para gravar um par de canções e teve um colapso nervoso. Pelo que fugiu para Nova Iorque, onde teve mais um colapso nervoso. Voltou para casa, com saudades de chá, scones e pantufas e, segundo ele conta, perdeu o nervo e - citamos - "os tomates".

Devem lembrar-se do que se tinha passado nos dois anos anteriores: em 1994 os Pulp lançaram "His'n'Hers" e tornaram-se estrelas, muito à conta de dois singles que aparentavam ser super-sexuais mas eram no fundo sobre a fragilidade, "Babies" e "Do you remember the first time". Em 1995 editaram "Different Class" e do dia para a noite tornaram-se mega-libra-esterlina-estrelas.

Uma boa parte do sucesso dos Pulp assentava na capacidade de unirem as guitarras indie herdadas de gente como Aztec Camera com tudo o que era considerado mau gosto, como o disco-sound, sintetizadores farsolas dos anos 1980 e laivos de música de dança dos anos 1990. O mais curioso é que os fãs dos Pulp nunca antes tinham gostado de disco-sound, de sintetizadores farsolas dos anos 1980 e de música de dança dos anos 1990. Essa repescagem de géneros, digamos, menos nobres tinha o seu quê de irónico, mas era uma ironia sincera: se Cocker não viveu os anos 1970 como desejara, viveu-os mais tarde em canção. E se os fãs não eram os tipos cool que iam às melhores festas aprenderam a dançar através do filtro dos Pulp.

Tudo parecia encaminhar-se para que os Pulp continuassem a capitalizar. Mas não. Não que o disco seguinte, "This Is Hardcore", fosse mau - até é um óptimo disco. Mas era um disco ferido, já sem ingenuidade, próprio de quem sabia que o seu lugar não era aquele, que ser estrela pop fora um acaso. Como disse o próprio Jarvis: "Tínhamos tido o nosso Momento Pop e esta era a nossa evocação da ressaca". E pronto: assim se evaporavam os tremendos dois anos dos Pulp enquanto profetas da tusa que rompe com a pequenez dos dias.

Nasceu para ficar de fora

Escutando agora com atenção os últimos dois discos dos Pulp (a que ninguém ligou nenhuma, diga-se) a persona de Jarvis enquanto não-vencedor - algo que o aproxima dos fãs - é ainda mais notória. Quase se fica com a impressão que Cocker não conseguiu viver com o seu êxito e quis sabotar-se. Um bom punhado das canções que ficaram fora de "This Is Hardcore" são bem mais imediatas que as que entraram no disco e certamente sairia delas um par de singles esmagadores. É por isso que tem tanta graça que Cocker se tenha tornado uma espécie de Rei alternativo das coisas pop, reverado por todos, quase - argh - acarinhado.

É que carinho é coisa que Cocker nunca teve, pelo menos até chegar ao êxito. Abandonado pelo pai aos seis anos, criado com escassez de dinheiro num bairro semi-deprimente de Sheffield, é daqueles tipos que nasceu para ficar de fora. Se acham que aqueles óculos gigantescos de massa que ele usa são "moda" e fazem dele um "hipster" é porque nunca viram imagens (ou filmagens) de quando ele era miúdo de 10, 12 anos, nos anos 70: já então usava os mesmos óculos e já então era alto, esgrouviado, desengonçado - o sonho de um rufia de liceu.

Num documentário para a BBC, Cocker contava que era um "nightmare kid", demasiado auto-consciente da sua aparência, em parte porque não raras vezes os rufias davam-lhe cargas de pancada devido ao seu aspecto estranho. "Era muito tímido e só queria desaparecer e ser como todos os outros". No mesmo documentário uma velhota aponta para duas raparigas na fila para um concerto dos Pulp e diz "Estas duas foram agredidas a caminho da escola - por isso identificam-se". Uma boa parte da sua existência era dedicada a tentar arranjar namorada. A outra a livrar-se de levar porrada. E são esses os dois temas que obsessivamente retratou nas suas melhores canções.

Olhe-se para a letra de "Babies", de "His'n'Hers". Quando chega o refrão Jarvis canta: "I wanna take you home". Esta frase podia ser dita a qualquer garota por milhentos galifões, cheios de falsa confiança em si. Mas depois Cocker atira "I wanna give you babies". Porque é que isto seduzia o tipo de melómano que, por exemplo, não era fanático dos Motorhead? Tal como numa canção de Lemmy o protagonista da canção quer, em termos prosaicos, foder. E até o demonstra à macho no "I wanna take you home". Mas depois vem uma doçura que subverte a primeira frase: ele quer foder; mas quer foder para dar bebés a uma rapariga que mal conhece. Ou, mais ambíguo ainda: está disposto a arcar com bebés só para coiso - tal é o desespero. Não se pode não adorar um tipo assim.

O sexo está presente, de todas as formas e feitio, em 91,35 por cento das canções dos Pulp. Mas por mais perverso que Cocker por vezes seja aqui e ali, o que tornava aquelas canções extraordinárias era o seu carácter moral. Sim, é moralista. Há bons e maus moralistas. Os maus cumprem o que dizem, não por opção racional mas porque têm medo de imaginar um mundo diferente. Os bons já quebraram os mandamentos.

O mais óbvio exemplo da moral pop de Cocker é "Common People". Na canção uma estudante grega rica diz que quer viver como as pessoas normais, quer dormir com pessoas normais (como Jarvis). Jarvis atira: "You'll never live like common people (..) you can call your dad and he'll stop it all". Na realidade a rapariga não queria dormir com Jarvis (ele é que queria dormir com ela) e só disse que gostava de viver em Hackney para saber como vivem as pessoas normais. A volta que ele deu à história transformou um simples aparte de uma rapariga tonta num hino à classe média que só pode "drink and dance and screw, because there's nothing else to do". A mesma classe média que, note-se, dava cargas de lenha no rapaz porque ele era esquisito.

O que aqui acontece é velho como o mundo: o marginal que quer pertencer à normalidade recria-se enquanto personagem e através dessa personagem consegue retratar a (suposta) normalidade (a "common people"). E esta é a sua vingança: ser amado. Como ele cantava em "Mis-shapes", canção sobre a vingança dos "outsiders", "We won't use bombs (...) we'll use the one thing we can borrow, and that's our minds". Muito do apelo dos Pulp vem dessa personagem-Jarvis, mesmo em termos físicos. Alto, tosco e míope, dança de forma exagerada, com movimentos saídos do disco dos anos 70. Essa falta de "coolness" encontrou lugar no coração de todos os rapazes e raparigas que nos 90 não sabiam dançar decentemente. Com as roupas passava-se o mesmo: enquanto o resto da britpop andava de t-shirts às riscas os Pulp vestiam camisas femininas, garridas, saídas (novamente) dos anos 70, como se tivessem assaltado o armário da avó. Eram anacrónicos e nostálgicos, ou seja, estavam desligados do seu tempo - da mesma forma que os fãs estavam desligados do que era certo ou não vestir. (A nostalgia era um factor importante nos Pulp: as pessoas reviam as suas famílias naquelas fotos parolas de casamentos que ocupavam os libretos dos discos.)

Jarvis é uma espécie de herdeiro "straight" de Morrissey - com menos tragédia e mais corpo, é certo, mas com o mesmo pendor para a escrita wit-mas-com-dor britânica, escola que vem desde Wilde e passa por Noel Coward. Tal como Morrissey a sua vitória veio da acentuação dos defeitos - que de tão espampanantes se tornaram primeiro cómicos e depois familiares.

E foi o único, desde Morrissey, a dar beleza à solidão e torná-la pop. Tão pop que milhões se reviram nela. Justiça pop-ética, dizemos nós.

terça-feira, agosto 16, 2011

O museu dos corações quebrados

Abriu ontem em Londres a exposição Museu das Relações Quebradas. Mostra objectos que simbolizam casos, da vida real, de amor acabado. Cada relíquia tem uma explicação curta. A exposição está até Setembro no Tristan Bates Theatre, em Convent Garden, e tem origem croata. Olinka Vistica e Drazen Grubisic quiseram potenciar nas artes o que já tinha desfalecido na sua relação amorosa. Depois de se separarem, apresentaram uma exposição numa bienal em Zagreb com objectos seus e de amigos também separados. Pela origem dos organizadores - de uma região, os Balcãs, que também se partiu como corações desavindos - julguei que o museu se ocupasse também de outras relações que não só entre amantes: a de alguém com o seu país, com as ideias políticas que já não se tem, com amigos que deixaram de o ser...

Mas este itinerante Museu das Relações Quebradas (já esteve em cidades asiáticas e americanas) mantém-se exclusivamente fiel ao fim de casais. E mostra como um símbolo de amor quebrado pode ser tão violento como um sniper em Vukovar. Há lá um telemóvel com esta explicação da repudiada: "Ao separarmo-nos, ele deu-me o seu telemóvel para ter a certeza de eu não mais poder telefonar-lhe." Com o contributo dos países por onde passa, o museu também ajuda a traçar as causas nacionais das separações. Quando vier a Portugal, veremos como tanta partida de jovens para o estrangeiro deixou corações partidos e relíquias dignas de museu.

Ferreira Fernandes, hoje, no DN

Matt, we love you!



Uma vez que não fomos ao Sudoeste, e sabíamos que não iríamos, tentámos esquecer-nos que o Sudoeste existiu. Não por causa do Sudoeste, onde deixámos de ir há alguns anos (desde que o Alive e o Meco mataram o que de bom lá havia), mas por causa de Matt Berninger. Mas hoje tivemos a curiosidade de ir ver como foi. E tivemos aquela amarga sensação de déjà vu. No ano passado, Wayne Coyne dos Flaming Lips voltou ao Sudoeste, onde tinha estado - e nós também - em 2001. Foi dar pérolas a porcos. Não houve, consta, o mais pequeno sinal de receptividade a um concerto que é a mais absoluta explosão de magia - e que, em 2000, em Coura, nos proporcionou um dos dias mais felizes da nossa vida. E agora, com os National, a mesma coisa. Matt, que desfilou pelo público com total indiferença do público, terá dito, na antecâmara do encore: "Este foi o aplauso mais fraco que alguma vez tivemos." Às vezes, parece que a música é um entrave ao que as pessoas vão lá fazer, seja lá o que for. Nesse caso, podiam não sujeitar algumas pessoas àquelas pessoas. 

segunda-feira, agosto 15, 2011

Crime and punishment


Quis entrar pela vida dela adentro demasiado depressa. Ou talvez não quisesse, nem depressa nem  entrar, talvez quisesse só ficar ali à distância, em silêncio, mais um whisky, mais um cigarro, a olhá-la, a testá-la, a ficcioná-la. A desafiá-la. Mas ela, que apesar da curiosidade, do instinto de vampiro, nunca, nunca lanças tranças, sentiu-se desconfortável, vigiada, sufocada. Assustada. Não foi um eclipse, uma fuga, não foi abandono, foi o que sempre disse que seria: não havia espaço para mais ninguém. Não há. Nem na ficção. Mesmo se usavam as mesmas palavras, os mesmos truques de linguagem, a mesma esgrima, a mesma luta, mesmo se tinham porventura evidentes universos comuns e disso retiravam o inevitável prazer da comunhão, nada era, nada é suficiente para a retirar do trilho de sempre e fazer fazer as coisas de outra forma. Já não há vício que a vicie. Ou vício novo que possa adicionar aos que já tem. E os olhos tristes que também tem, que quase todos dizem que tem, e onde tantos encontram um rastillho de pólvora para uma explosão de romantismo melancólico e cinematográfico, são os mesmos que, pousados em casa, estouram numa alegria infantil, numa histeria descontrolada na vivência daquilo que só pode ser felicidade. Espectáculo de um só espectador.

As palavras, ela avisou e os dois sabiam, não podiam ser mais perigosas. Para quem as acaricia, para quem lhes passa a mão pelo pêlo numa sedução permanente, para quem delas espera constantes viagens de montanha russa sem diminuição da adrenalina, as palavras depressa perdem a razão como a droga perde o efeito, entregam-se nas mãos de cenários, de personagens, de intervalos de vida. Deixam de ser vida. Mas continuam a ser lisonjeiras, porventura demasiado. E talvez seja esse o pecado. O pecado de uma secreta vaidade. Ela gostava do que ele escrevia. Gostava do que ele escrevia sobre ela, mesmo quando não acertava. Surpreendia-se quando a adivinhava. Gostava de ler-se ao lê-lo. Gostava de ficar ali a assistir aos insondáveis caminhos da ficção. Mas ao não o travar não queria feri-lo. Muito menos alimentar janelas fora dessa ficção. O receio foi obviamente interpretado como presunção. Que presunção alguém achar que tem o poder de magoar alguém! Faz sentido, mas não aniquila o medo de um criminoso. Ela já não joga, não joga há tantas eternidades que se esqueceu da última vez que jogou, mas continua perita em xadrez, em dardos, mesmo em esgrima, já matou demasiados jogadores para ignorar que o seu veneno pode matar mais um, qualquer um. E não estava disposta a voltar a fazê-lo, mesmo sem querer, mesmo só por negligência. Nem sequer na ficção. E a ficção é uma coisa, a vida é outra. 

Ernesto Sabato: O Túnel


"Em todo o caso havia apenas um túnel, obscuro e solitário, o meu, o túnel em que decorrera a minha infância, a minha juventude, toda a minha vida. E num desses pedaços transparentes do muro de pedra tinha avistado essa rapariga e tinha, ingenuamente, acreditado que vinha por outro túnel paralelo ao meu, quando na verdade pertencia ao largo mundo, ao mundo sem limites dos que vivem em túneis e talvez se tivesse aproximado, por curiosidade, de uma das minhas estranhas janelas e entrevisto o espectáculo da minha insolúvel solidão, ou a tinha intrigado a linguagem muda, a chave do meu quadro. E então, enquanto eu avançava sempre pelo mesmo corredor, ela vivia lá fora a sua vida normal, a agitada vida de pessoas que vivem de fora, essa vida curiosa e absurda em que há bailes e festas, alegria e frivolidade. E acontecia às vezes que, quando eu passava diante de uma das minhas janelas, ela me esperava muda e ansiosa (porquê esperando-me? porquê muda e ansiosa?). mas acontecia às vezes que ela não chegava a tempo ou se esquecia deste pobre ser fechado e então eu, com o rosto apertado contra o muro de vidro, via-a ao longe a sorrir e bailar despreocupadamente ou, o que era pior, absolutamente não a via e imaginava-a em lugares inacessíveis e lascivos. Sentia então que o meu destino era infinitamente mais solitário do que tinha imaginado."

domingo, agosto 14, 2011

Soliloquy about wonderlnd by Vortice dance

This is the first thing


This is the first thing
I have understood:
Time is the echo of an axe
Within a wood.
Philip Larkin

sábado, agosto 13, 2011

Win win by Tom McCarthy





I was drifting, crying, i was looking for another and I was slipping under. I pulled the devil down with me one way or another. I'm out of my mind, think you can wait? I'm way off the line, think you can wait? We've been running a sleepless run, been away from the baby way too long, we've been holding a good night gone, we've been losing our exits one by one, I'm out of my mind, think you can wait? I'm way off the line, think you can wait? All I have is all. Think you can wait? What I'm thinking is simple, i'll sell apples and ice water at the temple and I won't make trouble. I'll pull the devil down with me one way or another. I'll try, but I couldn't be better.

sexta-feira, agosto 12, 2011

quinta-feira, agosto 11, 2011

José Manuel Osório 1947-2011


Um jornalista é como um padre, um médico, um coveiro. Não chora, não ri, não é permeável, não se afeiçoa. Não se arrepia. É profissionalmente frio para ser profissionalmente inatacável. Não sou assim. Nunca fui. Para o bem e para o mal. Salvo algumas excepções, nunca soube não ficar encantada, intrigada, às vezes mesmo em êxtase, com os entrevistados, quase nunca consegui não prolongar uma conversa por várias horas, nunca levei secas ao contrário das secas que seguramente dei. Nunca soube fazer de outra forma. Marcava uma hora de entrevista, roubava a tarde inteira; às vezes, mesmo quando telefonava só a pedir uma opinião qualquer sobre qualquer coisa, estendia-me por ali fora. Gosto genuinamente das pessoas que entrevistava quando entrevistava pessoas, interessava-me verdadeiramente pelo que diziam, pelo que pensavam, pelo que as movia, por saber quem eram, pelas histórias, queria saber tudo, ouvir tudo. Gosto do que as pessoas têm para dizer, da forma que escolhem para dizer, da maneira como se escondem e revelam. Da forma como olham. Gosto da generosidade que entregam a um estranho. Ouvi tantas vezes "Mas isto ainda é para a entrevista?" Não era, era para mim. Para eu saber. Para eu aprender.

Conheci o José Manuel Osório em 2004. Eu tinha 25 anos, a confiança e a candura toda no peito, ele tinha 57. Encontrámo-nos na esplanada do Hotel Chiado, o meu pouso obrigatório na capitalita, e depois ele levou-me ao pouso dele, uma esplanada de que eu saberia o nome se vivesse em Lisboa e como não vivo não sei. Mas é uma dessas conhecidas. Ficámos ali até à hora do meu comboio, ele a fazer-me companhia depois de ter percebido que eu não queria ir embora dali. Começámos pelo livro que o Luís Osório acabara de publicar sobre a relação entre os dois, passámos para o acervo discográfico de fado que ele tinha descoberto em Londres, acabámos na doença. Em on. Depois, fomos por ali fora, pela vida, pela música, a tagarelar. Eu fartei-me de chorar. Ele tratou-me por menina e fartou-se de rir. Por eu chorar. José Manuel Osório comovia-me. Por tanto e por razões que as palavras não saberiam explicar. Era saudável no lugar mais importante de nós, o coração, incrivelmente inteligente, de uma vivacidade de ir às lágrimas. Aprendi tanto, mas tanto naquela tarde.

Quando gostamos muito de alguém, julgamos que gostamos mais do que os outros todos, que nos preocupamos mais, que sabemos mais daquele interior e que isso nos dá direito a sentir mais a falta. O termómetro do nosso gostar é sempre meio presunçoso. "Quando voltar a Lisboa, venha ver-me", disse-me, entregando-me a morada e o telefone fixo de casa. Diziam-me isto algumas vezes no fim das entrevistas, "venha ver-me para acabarmos a conversa". Agradecia, dizia sempre que sim, mas nunca fui. E nunca por não querer, mas por achar que não devia, por achar que os convites eram só uma cortesia. E nunca mais voltei a ver José Manuel Osório. Seguia-o à distância, secretamente feliz com cada ano que passava. De vez em quando, procurava por ele na internet, só para ter a certeza de que estava vivo e bem. O meu idiota e presunçoso gostar dele fazia-me acreditar que um dia ele poderia desaparecer sem que ninguém o assinalasse devidamente, sem que eu desse por isso. E sobretudo que poderia desaparecer antes que eu ganhasse coragem para voltar a vê-lo.

Aconteceu hoje. Levei um murro. Mas também a sensação doce do meu engano: todos deram conta, todos acusam a falta. Quando gostamos muito de alguém, queremos que toda a gente goste muito dessa pessoa também. Obrigada, José Manuel Osório, por uma tarde que nunca poderei esquecer.
 

And then...

... that's what happens. You let people in, and they destroy you.

Lenha para queimar obsessões (XI)


O hino que verdadeiramente define a(s) crise(s)

Tira a mão do queixo não penses mais nisso, o que lá vai já deu o que tinha a dar. Quem ganhou ganhou e usou-se disso; quem perdeu há-de ter mais cartas para dar. E enquanto alguns fazem figura, outros sucumbem à batota. Chega onde tu quiseres, mas goza bem a tua rota. Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Enquanto houver estrada para andar, enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar. Enquanto houver ventos e mar...
Todos nós pagamos por tudo o que usamos, o sistema é antigo e não poupa ninguém, somos todos escravos do que precisamos. Reduz as necessidades se queres passar bem, que a dependência é uma besta que dá cabo do desejo. A liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo.

quarta-feira, agosto 10, 2011

The curve of forgotten things


Elle Fanning: Rodarte's Muse on Nowness.com.

Diálogos Pueris XXXV

Ela: Se eu fosse embora de nós, ao olhares para trás, sentirias que fomos felizes?
Ele: Demasiado felizes. Se tu fosses embora de nós, eu mudava de vida.
Ela: É fácil mudar de vida quando alguém vai embora.
Ele: Claro! Por isso é que às vezes pareces precisar que eu vá embora...
Ela: Não comeces. Mudavas o quê?
Ele: Desfazia-me de tudo, despedia-me, ia embora daqui.
Ela: Para onde?
Ele: Passaria a vida a fugir de mim para não me lembrar de ti. E tu?
Ela: Eu?
Ele: Sim. Se eu fosse embora, refazias a vida?
Ela: Achas que conseguia?
Ele: Acho que não viverias o suficiente para saberes.

terça-feira, agosto 09, 2011

Quantas cenas finais são necessárias para um início?

Brinde mudo ao vício




"Uneasiness rules between them, unslaked curiosity, a hysterical desire to give rein to their suppressed impulse to recognize and address each other; even, actually, a sort of strained but mutual regard. For one human being instinctively feels respect and love for another human being so long as he does not know him well enough to judge him; and that he does not, the craving he feels is evidence."
Thomas Mann, Death in Venice

Born yesterday


Tightly-folded bud,
I have wished you something
None of the others would:
Not the usual stuff
About being beautiful,
Or running off a spring
Of innocence and love -
They will all wish you that,
And should it prove possible,
Well, you're a lucky girl.

But if it shouldn't, then
May you be ordinary;
Have, like other women,
An average of talents:
Not ugly, not good-looking,
Nothing uncustomary
To pull you off your balance,
That, unworkable itself,
Stops all the rest from working.
In fact, may you be dull -
If that is what a skilled,
Vigilant, flexible,
Unemphasised, enthralled
Catching of happiness is called.

Philip Larkin

Para a mesa com fumo

The Fountainhead by King Vidor



Prescrição: ver pelo pelo menos uma vez por ano.

segunda-feira, agosto 08, 2011

domingo, agosto 07, 2011

sábado, agosto 06, 2011

sexta-feira, agosto 05, 2011

Super 8 by J.J. Abrams



Perdidamente apaixonada por Elle Fanning, a menina do Somewhere. E por este filme.

Reencontro com Thomas Mann (via Rob Riemen)

A felicidade humana é uma questão metafísica e religiosa, não um problema social: a ética é mais importante do que as instituições sociais. [Mann] vê esse legado ameaçado pelos Zivilisationsliteraten com a sua 'politização do espírito'. Os Zivilisationsliteraten proclamam que toda a felicidade é devida a uma ideologia política e a instituições sociais. Desse modo, a felicidade não é uma questão metafísica ou religiosa, mas um problema político. Acreditam na sociedade perfeita e no indivíduo perfeito. É esta ideia que mais repugna a Mann, porque significa a negação do que considera a essência da existência: morte, limitações humanas, o ser humano como criatura com questões para as quais não há respostas imediatas. É por essa razão que Mann adora Parsifal, porque mesmo que todos sejamos tão inocentes como esse tolo, não devíamos todos honrar a nossa existência procurando, duvidando? A existência humana não pode ser construída; as políticas não nos deviam prometer felicidade. O pensamento político não está em posição de resolver as questões da vida. Para Mann, somente a educação liberal, a ética, a religião e a arte nos podem guiar nessa demanda.

Mas, precisa o escritor, os 'novos tempos' propagandeados pelos Zivilisationsliteraten só conduzirão a mais nivelamento, vulgarização e estupidificação. Não haverá lugar, nem mesmo interesse, para o crescimento interior, para a educação liberal que, na perspectiva de Goethe, conduz ao respeito - respeito pelo divino, pela terra, pelos seres humanos nossos semelhantes, e portanto pela nossa própria dignidade. 

A religião é afastada pela racionalidade total. A moralidade substituída por uma doutrina de virtude. Mas a verdadeira moralidade admite a dúvida, sim, admite mesmo o pecado, admite uma consciência do reino demoníaco em que a humanidade pode persistir. (...) Citando mais uma vez Goethe: "Uma boa obra de arte pode ter e terá consequências morais, mas exigir finalidades morais do artista é destruir a obra de arte." A arte é uma força irracional que demonstra, muitas vezes, que a nova doutrina da Razão, Virtude, Felicidade, não proporciona a humanidade a sabedoria da vida. A arte tem um valor ético, na opinião de Mann. Mas a ética não é o mesmo que virtude, decência burguesa, ou qualquer outra moral politicamente desejada. A arte retira o seu valor ético exclusivamente do seu valor estético, do seu estatuto como arte - a arte pela arte -, da sua independência, que está ligada ao seu único objectivo: exprimir a beleza e a verdade. É precisamente porque a arte não ignora o demoníaco que conhece as profundezas da alma humana, que pode fornecer aos indivíduos revelações sobre eles mesmos que não se obtêm de qualquer outra maneira. Todavia, quem a reduz a uma utilidade moral, destrói a arte.

A verdade sofrerá um destino diferente do da moral ou da arte? Não, porque os 'indivíduos perfeitos' que não têm defeitos - a conformidade com a ideologia política dominante é suficiente - julgam que podem possuir a verdade tal como possuem a virtude. A dúvida é desnecessária, mesmo indesejável. Mas Thomas Mann aprendera que ninguém pode ser dono da verdade e que, além disso, a humanidade é mais bem servida pela demanda da verdade do que pela sua posse absoluta.

Rob Riemen, Nobreza de espírito, um ideal esquecido

Diálogos Pueris XXXIV

Ele: Tens que aprender a lidar com meninas...
Ela: Eu?! Mas eu não lhes faço nada! Elas é que nunca gostam de mim...
Ele: Porque tu és bonita. Sabes como é...
Ela: Não, não sei como é...
Ele: Mas já tiveste tempo para aprender. As mulheres só conseguem lidar com uma mulher bonita se ela for uma vaca. Se não, não.
Ela: Ó!
Ele: A sério! Bonita e bom coração não há quem te aguente! Nem os gajos!
Ela: Então, porque é que tu me aguentas?
Ele: Porque te amo, não há nada a fazer.

quinta-feira, agosto 04, 2011

Escolhas


Toda a gente parece cultivar ódios de estimação; nós estimamos os amores que cultivamos. Ninguém questiona os ódios, mas todos estranham os amores. Como se o amor, mesmo quando não tem fundamento, precisasse de ser justificado, e o ódio, em iguais circunstâncias, não. É só um palpite: talvez nós sejamos mais felizes.

quarta-feira, agosto 03, 2011

Glauber Rocha*

“A única opção do intelectual do mundo subdesenvolvido, entre ser um "esteta do absurdo" ou um "nacionalista romântico", é a cultura revolucionária. Como poderá o intelectual do mundo subdesenvolvido superar as suas alienações e as suas contradições e atingir uma lucidez revolucionária?”
* cineasta brasileiro

E.

Andávamos sempre de mãos dadas, aos beijinhos, aos abracinhos, aos saltinhos no meio da rua. Espalhávamos magia, mesmo quando estávamos tristes. Escrevíamos longas cartas de amor um ao outro, que entregávamos em mão, e faltávamos às aulas para ficarmos a debater a vida, que haveria de ser obviamente bela. Porque nós, claro, íamos mudar o mundo. Lembras-te? Tínhamos tudo planeado: erradicar os maus, salvar os pobres, enaltecer os bons. Íamos ganhar muito dinheiro para construirmos a Aldeia dos Cogumelos, esse lugar mágico onde os velhinhos sem família rejuvenesceriam ao lado de crianças órfãs que nós iríamos adoptar. Íamos ser muito importantes, mas só o suficiente para podermos ser ouvidos. Parecíamos mais felizes que os outros só porque tínhamos um sonho e acreditávamos mesmo nele. Bebíamos até ser dia, dançávamos como tresloucados (em cima das colunas!!!), arruinávamos a véspera dos exames a jogar matrecos e dardos. E quando o bar fechava, íamos para casa ler um livro qualquer que tínhamos acabado de descobrir e que não podia, não podia mesmo esperar para o dia seguinte. O exame que nos perdoasse. Porque o essencial do que nós queríamos ser e fazer não estava nos apontamentos nem nas aulas nem nas pautas. Em tudo colocávamos diminutivos: lindinha, lindinho, saudadinhas... À sexta-feira, abraçávamo-nos como se a despedida fosse para sempre e não só até domingo. Ao domingo, a festa exagerada do reencontro. Tu mimavas-me tanto! Um exagero! Não éramos namorados, nunca fomos, nunca quisemos sequer ser, nunca foi assunto. Éramos só amigos, amigos de verdade inteira. E os amigos assim como nós sabem que têm de se abraçar, de escrever cartas de amor, de partilhar a vida, de ser capazes de dar a vida. E nós éramos. Tanto! Tínhamos 20 anos, 21, 22, parecíamos miúdos. E talvez os miúdos saibam mais da verdade e da entrega do que nós quando crescemos.

E depois separámo-nos. Crescemos, acho eu. Ou não, não sei. Fomos engolidos pela profissão, por cidades diferentes, pelos namorados, pela distância. Pela ausência. Os primeiros anos foram os mais difíceis. Sobretudo para mim, que tenho um problema crónico de inadaptação. Tu limitaste-te a regressar a casa, aos amigos de infância, à família, ao teu porto seguro. Eu comecei do zero no meio de ninguém, de pessoas que do sonho não sabiam nada, da vontade de mudar o mundo, menos ainda. Não havia uma conversa que me prendesse, uma única. Emudeci, deixei de partilhar o que quer que fosse, quer pela falta de comparência de interlocutores à altura, quer pelo medo de parecer ridícula, quer pela absoluta falta de vontade de deixar entrar quem quer que fosse na minha vida. Tão mimada, tão mal habituada. Chegava a casa e respirava de alívio, de cansaço dos outros. Esqueci-me de mim, acho. E depois, depois de alguns anos a ver-te só uma vez por ano, esqueci-me de nós também. Não deixei de gostar de ti, deixei só de contar contigo.

E um dia arrumei tudo. Cartas, postais, lembranças, bilhetes do cinema, do teatro, dos concertos (inesquecível Coura em 1999), tudo o que me fizesse chorar, tudo o que me prendesse ao passado e me impedisse de viver agora. Arrumei tudo o que me fizesse continuar doentiamente a desejar aquele mundo cheio de pessoas boas, amigos de sangue, família quase, família mesmo, pessoas saudáveis, sonhadoras, sem medo de dizer a um amigo: amo-te, sem medo de serem mal interpretadas, sem falta de tempo para fazer o bem, esses amigos todos que eu tinha tido, e onde te incluis, esses amigos que me fizeram brutalmente feliz durante cinco anos, mas esses amigos que eu já não tinha a não ser no coração. Esses amigos espalhados por todos os cantos do mundo, menos no raio do canto onde tinha acontecido eu ficar a viver. Senti, senti tantas vezes, se tu soubesses, senti que toda a gente tinha crescido menos eu. Que toda a gente sabia como era, menos eu. Passou. Adaptei-me, acho, até para surpresa minha. Sim, fiquei diferente. Como não ficar? O privilégio da bondade dos outros na nossa vida pode ser muito traiçoeiro quando desaparece. O amor não devia ter fronteiras. Não devia haver mais do que uma cidade, mais do que uma aldeia, para as pessoas que gostam verdadeiramente umas das outras. Não devia ser possível perder pessoas de quem se gosta tanto. Ou então, devia haver descontos nos transportes, nos telemóveis... Mudaria alguma coisa? Não sei.

Encontraste cartas minhas com 12 anos, dizes-me agora. E que te confortaram, que te recordaram o que é realmente importante na vida, agora que estás confrontado com uma fase em que não sabes se é a vida que não muda, se és tu. Bem vindo ao clube. Perguntas-me o que falhou. Não sei. Não sei mesmo. Dizes que choraste um bocadinho e que te surpreendeste com o sentido que aquelas palavras ainda fazem. Que te fizeram bem. Se eu tivesse aqui as tuas cartas, ia a correr buscá-las. Mas não tenho e talvez seja melhor assim. Não é no passado que quero reencontrar-te; é no presente. 

terça-feira, agosto 02, 2011

valter hugo mãe

"A minha utopia é a mais estapafúrdia: que o mundo ainda vai ser composto de boa gente e isto ainda vai levar aqui umas hecatombes, mas mais cedo ou mais tarde a humanidade ainda vai ascender a uma condição muito benigna, e vai ser exactamente aquilo que se espera que um bicho que pensa e sente seja: progredir até ao equilíbrio das suas energias e ao alcance da benignidade."

valter hugo mãe, entrevista de Vanessa Rodrigues, NS de 30 de Julho de 2011

segunda-feira, agosto 01, 2011