quinta-feira, agosto 11, 2011

José Manuel Osório 1947-2011


Um jornalista é como um padre, um médico, um coveiro. Não chora, não ri, não é permeável, não se afeiçoa. Não se arrepia. É profissionalmente frio para ser profissionalmente inatacável. Não sou assim. Nunca fui. Para o bem e para o mal. Salvo algumas excepções, nunca soube não ficar encantada, intrigada, às vezes mesmo em êxtase, com os entrevistados, quase nunca consegui não prolongar uma conversa por várias horas, nunca levei secas ao contrário das secas que seguramente dei. Nunca soube fazer de outra forma. Marcava uma hora de entrevista, roubava a tarde inteira; às vezes, mesmo quando telefonava só a pedir uma opinião qualquer sobre qualquer coisa, estendia-me por ali fora. Gosto genuinamente das pessoas que entrevistava quando entrevistava pessoas, interessava-me verdadeiramente pelo que diziam, pelo que pensavam, pelo que as movia, por saber quem eram, pelas histórias, queria saber tudo, ouvir tudo. Gosto do que as pessoas têm para dizer, da forma que escolhem para dizer, da maneira como se escondem e revelam. Da forma como olham. Gosto da generosidade que entregam a um estranho. Ouvi tantas vezes "Mas isto ainda é para a entrevista?" Não era, era para mim. Para eu saber. Para eu aprender.

Conheci o José Manuel Osório em 2004. Eu tinha 25 anos, a confiança e a candura toda no peito, ele tinha 57. Encontrámo-nos na esplanada do Hotel Chiado, o meu pouso obrigatório na capitalita, e depois ele levou-me ao pouso dele, uma esplanada de que eu saberia o nome se vivesse em Lisboa e como não vivo não sei. Mas é uma dessas conhecidas. Ficámos ali até à hora do meu comboio, ele a fazer-me companhia depois de ter percebido que eu não queria ir embora dali. Começámos pelo livro que o Luís Osório acabara de publicar sobre a relação entre os dois, passámos para o acervo discográfico de fado que ele tinha descoberto em Londres, acabámos na doença. Em on. Depois, fomos por ali fora, pela vida, pela música, a tagarelar. Eu fartei-me de chorar. Ele tratou-me por menina e fartou-se de rir. Por eu chorar. José Manuel Osório comovia-me. Por tanto e por razões que as palavras não saberiam explicar. Era saudável no lugar mais importante de nós, o coração, incrivelmente inteligente, de uma vivacidade de ir às lágrimas. Aprendi tanto, mas tanto naquela tarde.

Quando gostamos muito de alguém, julgamos que gostamos mais do que os outros todos, que nos preocupamos mais, que sabemos mais daquele interior e que isso nos dá direito a sentir mais a falta. O termómetro do nosso gostar é sempre meio presunçoso. "Quando voltar a Lisboa, venha ver-me", disse-me, entregando-me a morada e o telefone fixo de casa. Diziam-me isto algumas vezes no fim das entrevistas, "venha ver-me para acabarmos a conversa". Agradecia, dizia sempre que sim, mas nunca fui. E nunca por não querer, mas por achar que não devia, por achar que os convites eram só uma cortesia. E nunca mais voltei a ver José Manuel Osório. Seguia-o à distância, secretamente feliz com cada ano que passava. De vez em quando, procurava por ele na internet, só para ter a certeza de que estava vivo e bem. O meu idiota e presunçoso gostar dele fazia-me acreditar que um dia ele poderia desaparecer sem que ninguém o assinalasse devidamente, sem que eu desse por isso. E sobretudo que poderia desaparecer antes que eu ganhasse coragem para voltar a vê-lo.

Aconteceu hoje. Levei um murro. Mas também a sensação doce do meu engano: todos deram conta, todos acusam a falta. Quando gostamos muito de alguém, queremos que toda a gente goste muito dessa pessoa também. Obrigada, José Manuel Osório, por uma tarde que nunca poderei esquecer.
 

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