quarta-feira, agosto 17, 2011

19ª edição Paredes de Coura

Enorme João Bonifácio, na sexta-feira passada, no Ípsilon:

Porque se trata de Jarvis Cocker e seus muchachos podemos dar-nos a exageros, subjectividades avulsas, afirmações grandiloquentes da treta. Por isso, é com muita alegria que se afirma que: o regresso dos Pulp aos palcos - este 18 de Agosto estão em Paredes de Coura - mesmo sem novas canções, foi a melhor notícia que os melómanos formados nos anos 1990 receberam na última década.

Há uma certa justiça poética nisto: é que em 1994, antes de editarem "His'n'Hers", ninguém dava um pataco furado pelos Pulp. Mesmo durante a febre da britpop, ali em meados dos anos 90, quando Cocker e comparsas debitavam single perfeito atrás de single perfeito nunca foram eles a estar no centro das atenções, divididas que estavam as ondas hertzianas entre os Blur (herdeiros dos Kinks) e os Oasis (herdeiros de um monte de entulho).

Por isso é engraçado que dez anos após fecharem oficialmente as portas, os Pulp sejam olhados com uma reverência que não se atribui aos restantes dos idos de 90. Em parte porque quem com eles cresceu ficou órfão do único tipo que lhes tinha dito: "Não faz mal tropeçar nos atacadores, não faz mal usar as camisas rosa choque da irmã, não faz mal entrar em casa da vizinha para roubar os soutiens do cesto da roupa suja, levá-los para casa e cheirá-los". O tipo que lhes tinha dito: não faz mal ser anormal - mesmo que no fundo queiras ser normal. É nisto que reside a ascendência de Jarvis Cocker sobre todos os outros: muitos tinham canções, mas só ele tinha grandes canções que legitimavam o desconforto, o não saber como abordar uma rapariga, a falta de gosto a vestir, os complexos de inferioridade.

São dez anos de orfandade, dez anos em que a geração que idolatrou o senhor C. cresceu, não arranjou emprego fixo - o que é muito Pulp -, se calhar aprendeu a vestir-se um pouco melhor e com sorte sacou uma garota e teve filhos. Dez anos, mas só oficialmente. Porque quando os Pulp editaram o último disco, "We Love Life", já tinham desaparecido das massas. É muito reveladora a forma como se deu a queda mediática dos Pulp. Em Novembro de 1996, apenas um ano e picos depois da edição do seminal "Different Class", ainda eram um magno cometa pop de dimensão mundial. Nesse mês, e após dois anos de intensas gravações e digressões, Jarvis Cocker, pressionado pela editora para começar a preparar o disco seguinte, entrou em estúdio para gravar um par de canções e teve um colapso nervoso. Pelo que fugiu para Nova Iorque, onde teve mais um colapso nervoso. Voltou para casa, com saudades de chá, scones e pantufas e, segundo ele conta, perdeu o nervo e - citamos - "os tomates".

Devem lembrar-se do que se tinha passado nos dois anos anteriores: em 1994 os Pulp lançaram "His'n'Hers" e tornaram-se estrelas, muito à conta de dois singles que aparentavam ser super-sexuais mas eram no fundo sobre a fragilidade, "Babies" e "Do you remember the first time". Em 1995 editaram "Different Class" e do dia para a noite tornaram-se mega-libra-esterlina-estrelas.

Uma boa parte do sucesso dos Pulp assentava na capacidade de unirem as guitarras indie herdadas de gente como Aztec Camera com tudo o que era considerado mau gosto, como o disco-sound, sintetizadores farsolas dos anos 1980 e laivos de música de dança dos anos 1990. O mais curioso é que os fãs dos Pulp nunca antes tinham gostado de disco-sound, de sintetizadores farsolas dos anos 1980 e de música de dança dos anos 1990. Essa repescagem de géneros, digamos, menos nobres tinha o seu quê de irónico, mas era uma ironia sincera: se Cocker não viveu os anos 1970 como desejara, viveu-os mais tarde em canção. E se os fãs não eram os tipos cool que iam às melhores festas aprenderam a dançar através do filtro dos Pulp.

Tudo parecia encaminhar-se para que os Pulp continuassem a capitalizar. Mas não. Não que o disco seguinte, "This Is Hardcore", fosse mau - até é um óptimo disco. Mas era um disco ferido, já sem ingenuidade, próprio de quem sabia que o seu lugar não era aquele, que ser estrela pop fora um acaso. Como disse o próprio Jarvis: "Tínhamos tido o nosso Momento Pop e esta era a nossa evocação da ressaca". E pronto: assim se evaporavam os tremendos dois anos dos Pulp enquanto profetas da tusa que rompe com a pequenez dos dias.

Nasceu para ficar de fora

Escutando agora com atenção os últimos dois discos dos Pulp (a que ninguém ligou nenhuma, diga-se) a persona de Jarvis enquanto não-vencedor - algo que o aproxima dos fãs - é ainda mais notória. Quase se fica com a impressão que Cocker não conseguiu viver com o seu êxito e quis sabotar-se. Um bom punhado das canções que ficaram fora de "This Is Hardcore" são bem mais imediatas que as que entraram no disco e certamente sairia delas um par de singles esmagadores. É por isso que tem tanta graça que Cocker se tenha tornado uma espécie de Rei alternativo das coisas pop, reverado por todos, quase - argh - acarinhado.

É que carinho é coisa que Cocker nunca teve, pelo menos até chegar ao êxito. Abandonado pelo pai aos seis anos, criado com escassez de dinheiro num bairro semi-deprimente de Sheffield, é daqueles tipos que nasceu para ficar de fora. Se acham que aqueles óculos gigantescos de massa que ele usa são "moda" e fazem dele um "hipster" é porque nunca viram imagens (ou filmagens) de quando ele era miúdo de 10, 12 anos, nos anos 70: já então usava os mesmos óculos e já então era alto, esgrouviado, desengonçado - o sonho de um rufia de liceu.

Num documentário para a BBC, Cocker contava que era um "nightmare kid", demasiado auto-consciente da sua aparência, em parte porque não raras vezes os rufias davam-lhe cargas de pancada devido ao seu aspecto estranho. "Era muito tímido e só queria desaparecer e ser como todos os outros". No mesmo documentário uma velhota aponta para duas raparigas na fila para um concerto dos Pulp e diz "Estas duas foram agredidas a caminho da escola - por isso identificam-se". Uma boa parte da sua existência era dedicada a tentar arranjar namorada. A outra a livrar-se de levar porrada. E são esses os dois temas que obsessivamente retratou nas suas melhores canções.

Olhe-se para a letra de "Babies", de "His'n'Hers". Quando chega o refrão Jarvis canta: "I wanna take you home". Esta frase podia ser dita a qualquer garota por milhentos galifões, cheios de falsa confiança em si. Mas depois Cocker atira "I wanna give you babies". Porque é que isto seduzia o tipo de melómano que, por exemplo, não era fanático dos Motorhead? Tal como numa canção de Lemmy o protagonista da canção quer, em termos prosaicos, foder. E até o demonstra à macho no "I wanna take you home". Mas depois vem uma doçura que subverte a primeira frase: ele quer foder; mas quer foder para dar bebés a uma rapariga que mal conhece. Ou, mais ambíguo ainda: está disposto a arcar com bebés só para coiso - tal é o desespero. Não se pode não adorar um tipo assim.

O sexo está presente, de todas as formas e feitio, em 91,35 por cento das canções dos Pulp. Mas por mais perverso que Cocker por vezes seja aqui e ali, o que tornava aquelas canções extraordinárias era o seu carácter moral. Sim, é moralista. Há bons e maus moralistas. Os maus cumprem o que dizem, não por opção racional mas porque têm medo de imaginar um mundo diferente. Os bons já quebraram os mandamentos.

O mais óbvio exemplo da moral pop de Cocker é "Common People". Na canção uma estudante grega rica diz que quer viver como as pessoas normais, quer dormir com pessoas normais (como Jarvis). Jarvis atira: "You'll never live like common people (..) you can call your dad and he'll stop it all". Na realidade a rapariga não queria dormir com Jarvis (ele é que queria dormir com ela) e só disse que gostava de viver em Hackney para saber como vivem as pessoas normais. A volta que ele deu à história transformou um simples aparte de uma rapariga tonta num hino à classe média que só pode "drink and dance and screw, because there's nothing else to do". A mesma classe média que, note-se, dava cargas de lenha no rapaz porque ele era esquisito.

O que aqui acontece é velho como o mundo: o marginal que quer pertencer à normalidade recria-se enquanto personagem e através dessa personagem consegue retratar a (suposta) normalidade (a "common people"). E esta é a sua vingança: ser amado. Como ele cantava em "Mis-shapes", canção sobre a vingança dos "outsiders", "We won't use bombs (...) we'll use the one thing we can borrow, and that's our minds". Muito do apelo dos Pulp vem dessa personagem-Jarvis, mesmo em termos físicos. Alto, tosco e míope, dança de forma exagerada, com movimentos saídos do disco dos anos 70. Essa falta de "coolness" encontrou lugar no coração de todos os rapazes e raparigas que nos 90 não sabiam dançar decentemente. Com as roupas passava-se o mesmo: enquanto o resto da britpop andava de t-shirts às riscas os Pulp vestiam camisas femininas, garridas, saídas (novamente) dos anos 70, como se tivessem assaltado o armário da avó. Eram anacrónicos e nostálgicos, ou seja, estavam desligados do seu tempo - da mesma forma que os fãs estavam desligados do que era certo ou não vestir. (A nostalgia era um factor importante nos Pulp: as pessoas reviam as suas famílias naquelas fotos parolas de casamentos que ocupavam os libretos dos discos.)

Jarvis é uma espécie de herdeiro "straight" de Morrissey - com menos tragédia e mais corpo, é certo, mas com o mesmo pendor para a escrita wit-mas-com-dor britânica, escola que vem desde Wilde e passa por Noel Coward. Tal como Morrissey a sua vitória veio da acentuação dos defeitos - que de tão espampanantes se tornaram primeiro cómicos e depois familiares.

E foi o único, desde Morrissey, a dar beleza à solidão e torná-la pop. Tão pop que milhões se reviram nela. Justiça pop-ética, dizemos nós.

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