Quis entrar pela vida dela adentro demasiado depressa. Ou talvez não quisesse, nem depressa nem entrar, talvez quisesse só ficar ali à distância, em silêncio, mais um whisky, mais um cigarro, a olhá-la, a testá-la, a ficcioná-la. A desafiá-la. Mas ela, que apesar da curiosidade, do instinto de vampiro, nunca, nunca lanças tranças, sentiu-se desconfortável, vigiada, sufocada. Assustada. Não foi um eclipse, uma fuga, não foi abandono, foi o que sempre disse que seria: não havia espaço para mais ninguém. Não há. Nem na ficção. Mesmo se usavam as mesmas palavras, os mesmos truques de linguagem, a mesma esgrima, a mesma luta, mesmo se tinham porventura evidentes universos comuns e disso retiravam o inevitável prazer da comunhão, nada era, nada é suficiente para a retirar do trilho de sempre e fazer fazer as coisas de outra forma. Já não há vício que a vicie. Ou vício novo que possa adicionar aos que já tem. E os olhos tristes que também tem, que quase todos dizem que tem, e onde tantos encontram um rastillho de pólvora para uma explosão de romantismo melancólico e cinematográfico, são os mesmos que, pousados em casa, estouram numa alegria infantil, numa histeria descontrolada na vivência daquilo que só pode ser felicidade. Espectáculo de um só espectador.
As palavras, ela avisou e os dois sabiam, não podiam ser mais perigosas. Para quem as acaricia, para quem lhes passa a mão pelo pêlo numa sedução permanente, para quem delas espera constantes viagens de montanha russa sem diminuição da adrenalina, as palavras depressa perdem a razão como a droga perde o efeito, entregam-se nas mãos de cenários, de personagens, de intervalos de vida. Deixam de ser vida. Mas continuam a ser lisonjeiras, porventura demasiado. E talvez seja esse o pecado. O pecado de uma secreta vaidade. Ela gostava do que ele escrevia. Gostava do que ele escrevia sobre ela, mesmo quando não acertava. Surpreendia-se quando a adivinhava. Gostava de ler-se ao lê-lo. Gostava de ficar ali a assistir aos insondáveis caminhos da ficção. Mas ao não o travar não queria feri-lo. Muito menos alimentar janelas fora dessa ficção. O receio foi obviamente interpretado como presunção. Que presunção alguém achar que tem o poder de magoar alguém! Faz sentido, mas não aniquila o medo de um criminoso. Ela já não joga, não joga há tantas eternidades que se esqueceu da última vez que jogou, mas continua perita em xadrez, em dardos, mesmo em esgrima, já matou demasiados jogadores para ignorar que o seu veneno pode matar mais um, qualquer um. E não estava disposta a voltar a fazê-lo, mesmo sem querer, mesmo só por negligência. Nem sequer na ficção. E a ficção é uma coisa, a vida é outra.
ADOREI!!
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