Andávamos sempre de mãos dadas, aos beijinhos, aos abracinhos, aos saltinhos no meio da rua. Espalhávamos magia, mesmo quando estávamos tristes. Escrevíamos longas cartas de amor um ao outro, que entregávamos em mão, e faltávamos às aulas para ficarmos a debater a vida, que haveria de ser obviamente bela. Porque nós, claro, íamos mudar o mundo. Lembras-te? Tínhamos tudo planeado: erradicar os maus, salvar os pobres, enaltecer os bons. Íamos ganhar muito dinheiro para construirmos a Aldeia dos Cogumelos, esse lugar mágico onde os velhinhos sem família rejuvenesceriam ao lado de crianças órfãs que nós iríamos adoptar. Íamos ser muito importantes, mas só o suficiente para podermos ser ouvidos. Parecíamos mais felizes que os outros só porque tínhamos um sonho e acreditávamos mesmo nele. Bebíamos até ser dia, dançávamos como tresloucados (em cima das colunas!!!), arruinávamos a véspera dos exames a jogar matrecos e dardos. E quando o bar fechava, íamos para casa ler um livro qualquer que tínhamos acabado de descobrir e que não podia, não podia mesmo esperar para o dia seguinte. O exame que nos perdoasse. Porque o essencial do que nós queríamos ser e fazer não estava nos apontamentos nem nas aulas nem nas pautas. Em tudo colocávamos diminutivos: lindinha, lindinho, saudadinhas... À sexta-feira, abraçávamo-nos como se a despedida fosse para sempre e não só até domingo. Ao domingo, a festa exagerada do reencontro. Tu mimavas-me tanto! Um exagero! Não éramos namorados, nunca fomos, nunca quisemos sequer ser, nunca foi assunto. Éramos só amigos, amigos de verdade inteira. E os amigos assim como nós sabem que têm de se abraçar, de escrever cartas de amor, de partilhar a vida, de ser capazes de dar a vida. E nós éramos. Tanto! Tínhamos 20 anos, 21, 22, parecíamos miúdos. E talvez os miúdos saibam mais da verdade e da entrega do que nós quando crescemos.
E depois separámo-nos. Crescemos, acho eu. Ou não, não sei. Fomos engolidos pela profissão, por cidades diferentes, pelos namorados, pela distância. Pela ausência. Os primeiros anos foram os mais difíceis. Sobretudo para mim, que tenho um problema crónico de inadaptação. Tu limitaste-te a regressar a casa, aos amigos de infância, à família, ao teu porto seguro. Eu comecei do zero no meio de ninguém, de pessoas que do sonho não sabiam nada, da vontade de mudar o mundo, menos ainda. Não havia uma conversa que me prendesse, uma única. Emudeci, deixei de partilhar o que quer que fosse, quer pela falta de comparência de interlocutores à altura, quer pelo medo de parecer ridícula, quer pela absoluta falta de vontade de deixar entrar quem quer que fosse na minha vida. Tão mimada, tão mal habituada. Chegava a casa e respirava de alívio, de cansaço dos outros. Esqueci-me de mim, acho. E depois, depois de alguns anos a ver-te só uma vez por ano, esqueci-me de nós também. Não deixei de gostar de ti, deixei só de contar contigo.
E um dia arrumei tudo. Cartas, postais, lembranças, bilhetes do cinema, do teatro, dos concertos (inesquecível Coura em 1999), tudo o que me fizesse chorar, tudo o que me prendesse ao passado e me impedisse de viver agora. Arrumei tudo o que me fizesse continuar doentiamente a desejar aquele mundo cheio de pessoas boas, amigos de sangue, família quase, família mesmo, pessoas saudáveis, sonhadoras, sem medo de dizer a um amigo: amo-te, sem medo de serem mal interpretadas, sem falta de tempo para fazer o bem, esses amigos todos que eu tinha tido, e onde te incluis, esses amigos que me fizeram brutalmente feliz durante cinco anos, mas esses amigos que eu já não tinha a não ser no coração. Esses amigos espalhados por todos os cantos do mundo, menos no raio do canto onde tinha acontecido eu ficar a viver. Senti, senti tantas vezes, se tu soubesses, senti que toda a gente tinha crescido menos eu. Que toda a gente sabia como era, menos eu. Passou. Adaptei-me, acho, até para surpresa minha. Sim, fiquei diferente. Como não ficar? O privilégio da bondade dos outros na nossa vida pode ser muito traiçoeiro quando desaparece. O amor não devia ter fronteiras. Não devia haver mais do que uma cidade, mais do que uma aldeia, para as pessoas que gostam verdadeiramente umas das outras. Não devia ser possível perder pessoas de quem se gosta tanto. Ou então, devia haver descontos nos transportes, nos telemóveis... Mudaria alguma coisa? Não sei.
Encontraste cartas minhas com 12 anos, dizes-me agora. E que te confortaram, que te recordaram o que é realmente importante na vida, agora que estás confrontado com uma fase em que não sabes se é a vida que não muda, se és tu. Bem vindo ao clube. Perguntas-me o que falhou. Não sei. Não sei mesmo. Dizes que choraste um bocadinho e que te surpreendeste com o sentido que aquelas palavras ainda fazem. Que te fizeram bem. Se eu tivesse aqui as tuas cartas, ia a correr buscá-las. Mas não tenho e talvez seja melhor assim. Não é no passado que quero reencontrar-te; é no presente.
E depois separámo-nos. Crescemos, acho eu. Ou não, não sei. Fomos engolidos pela profissão, por cidades diferentes, pelos namorados, pela distância. Pela ausência. Os primeiros anos foram os mais difíceis. Sobretudo para mim, que tenho um problema crónico de inadaptação. Tu limitaste-te a regressar a casa, aos amigos de infância, à família, ao teu porto seguro. Eu comecei do zero no meio de ninguém, de pessoas que do sonho não sabiam nada, da vontade de mudar o mundo, menos ainda. Não havia uma conversa que me prendesse, uma única. Emudeci, deixei de partilhar o que quer que fosse, quer pela falta de comparência de interlocutores à altura, quer pelo medo de parecer ridícula, quer pela absoluta falta de vontade de deixar entrar quem quer que fosse na minha vida. Tão mimada, tão mal habituada. Chegava a casa e respirava de alívio, de cansaço dos outros. Esqueci-me de mim, acho. E depois, depois de alguns anos a ver-te só uma vez por ano, esqueci-me de nós também. Não deixei de gostar de ti, deixei só de contar contigo.
E um dia arrumei tudo. Cartas, postais, lembranças, bilhetes do cinema, do teatro, dos concertos (inesquecível Coura em 1999), tudo o que me fizesse chorar, tudo o que me prendesse ao passado e me impedisse de viver agora. Arrumei tudo o que me fizesse continuar doentiamente a desejar aquele mundo cheio de pessoas boas, amigos de sangue, família quase, família mesmo, pessoas saudáveis, sonhadoras, sem medo de dizer a um amigo: amo-te, sem medo de serem mal interpretadas, sem falta de tempo para fazer o bem, esses amigos todos que eu tinha tido, e onde te incluis, esses amigos que me fizeram brutalmente feliz durante cinco anos, mas esses amigos que eu já não tinha a não ser no coração. Esses amigos espalhados por todos os cantos do mundo, menos no raio do canto onde tinha acontecido eu ficar a viver. Senti, senti tantas vezes, se tu soubesses, senti que toda a gente tinha crescido menos eu. Que toda a gente sabia como era, menos eu. Passou. Adaptei-me, acho, até para surpresa minha. Sim, fiquei diferente. Como não ficar? O privilégio da bondade dos outros na nossa vida pode ser muito traiçoeiro quando desaparece. O amor não devia ter fronteiras. Não devia haver mais do que uma cidade, mais do que uma aldeia, para as pessoas que gostam verdadeiramente umas das outras. Não devia ser possível perder pessoas de quem se gosta tanto. Ou então, devia haver descontos nos transportes, nos telemóveis... Mudaria alguma coisa? Não sei.
Encontraste cartas minhas com 12 anos, dizes-me agora. E que te confortaram, que te recordaram o que é realmente importante na vida, agora que estás confrontado com uma fase em que não sabes se é a vida que não muda, se és tu. Bem vindo ao clube. Perguntas-me o que falhou. Não sei. Não sei mesmo. Dizes que choraste um bocadinho e que te surpreendeste com o sentido que aquelas palavras ainda fazem. Que te fizeram bem. Se eu tivesse aqui as tuas cartas, ia a correr buscá-las. Mas não tenho e talvez seja melhor assim. Não é no passado que quero reencontrar-te; é no presente.
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