(...) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Facto pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.
(...) Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Os meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; A minha memória, senhor, é como depósito de lixo. (...) Não sei quantas estrelas via no céu.
(...) Funes não recordava apenas cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não teria acabado ainda de classificar todas as lembranças da infância.
(...) Funes discernia continuamente os avanços tranquilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da unidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. (...) Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo.
(...) Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
(...) Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.
Jorge Luis Borges: Prosa Completa
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