sábado, junho 30, 2007

Lisboa íntima

[Foto: Jordi Burch]

Estou mais ou menos a borrifar-me para as eleições autárquicas de Lisboa, tirando o facto de estar farta do tempo de antena que ocupam nas televisões e nos jornais. Portanto, é-me perfeitamente indiferente o sítio de eleição de cada candidato que o Expresso apresenta, hoje, na Única. "As casas onde cresceram, as vistas que os deslumbram, os cafés ou restaurantes irresistíveis, os lugares a que voltam sempre, os segredos que guardam em Lisboa". Não quero saber.
Mas é impossível ficar indiferente às fotografias. Jordi Burch. Alguém disse, um destes dias, a propósito de umas imagens que captou em Luanda (e que aparecem, creio, no mais recente livro do Agualusa, "As mulheres do meu pai") que ele tem "uns olhos mágicos". Absolutamente verdade. Carmona Rodrigues, nesta espécie de quadro naturalista de século XIX, será a prova maior.

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Sexta-feira à noite. Eu e uma terrível dor de cabeça. A espreitar pela janela, uma lua cheia, luzente, demasiado bonita, demasiado sozinha. Somos duas. Penso: posso aterrar no sófá e ver um dos inúmeros filmes que estão no computador em lista de espera; posso acabar de ler o último livro do Roth; ou posso desligar a ficha e morrer. Ou só dormir. Para algumas vocações, sexta-feira à noite nem sequer significa véspera de fim-de-semana. Amanhã, logo de manhã, há outro dia de trabalho para cumprir e portanto também tenho a possibilidade de o preparar. Mas não me apetece.
Dou-me conta, subitamente, que vivo a oito minutos de distância da Casa da Música. Estrella Morente vai recapitular o "Volver" de Almodovar. Confirmo a temperatura. Pego no casaco e chamo um táxi, que a piada da carta de condução ainda está para durar. E vou. E fui.
O concerto não foi memorável. Mas foi melhor do que ficar a dissecar a má sorte no sofá. A vida cultural de uma cidade é como os amigos: às vezes, não precisam estar ao rubro; basta estarem presentes.

sexta-feira, junho 29, 2007

Dr. House III - último episódio



House desafia Deus. E ganha. Mas, no fim, fica sozinho. É mais fácil fazer um milagre na medicina do que no coração das pessoas.

quinta-feira, junho 28, 2007

Shami Chakrabarti


"Se enfiarmos cinco sapos numa panela de água a ferver, muito sensatamente, eles saltarão para fora e salvar-se-ão. Se os colocarmos numa panela de água fria, e formos aquecendo a água lentamente até ela começar a ferver, permanecerão na panela e cozerão até à morte."

quarta-feira, junho 27, 2007

"Plataforma - No meio do mundo"

Ao terceiro romance achei que o iria perder. Ou melhor, que ele, Michel Houellebecq, escritor mal dito e mal apreciado pela crítica francesa, me iria perder. Depois de ter devorado "Extensão do domínio da luta" (1994) e "Partículas elementares", (2001) custou-me entrar em "Plataforma - No meio do mundo". A voz do narrador parecia-me a mesma voz tremida dos livros anteriores, apesar de num ser um rapaz de 30 anos à beira do colapso, e no outro representar dois irmãos, diametralmente opostos, na faixa dos 40, e de ele próprio ter 50 anos. E custou-me a avançar. Segui com o esforço que me mereciam os muitíssimo bons momentos proporcionados pelos livros anteriores e pela teimosia de nunca deixar um livro a meio. Segui com a esperança de não ficar desapontada logo ali, depois do que passámos juntos. Pelo caminho, reencontrei-me com o autor. Velocidade de cruzeiro até ao fim.

Os franceses são e sempre foram pretensiosos. Dizerem de Houellebeqc, de nome verdadeiro Michel Thomas, que escreve romances como quem escreve "memorandos de uma empresa", é uma profunda injustiça. Argumentarem que é vastamente lido nos outros países apenas porque a sua hermenêutica é simplista, de uma sobranceria desconcertante. Houellebecq não escreve como escrevem os franceses: não é Honoré de Balzac, não é Charles Perrault, nem Chanford, nem Dumas, nem Duras, nem Flaubert, nem Camus, nem Hugo, nem... Não sei se é uma virtude, mas sei que está longe de ser um defeito. E reduzir os seus livros a uma maratona de obsessões sexuais - mesmo que seja esse, aparentemente, o denominador comum de todas as suas publicações -, sinceramente, é não ser capaz de chegar lá, ao lugar onde é suposto chegar-se.

"Plataforma" cruza a apoteose do turismo sexual dos resorts asiáticos com o cutelo do fundamentalismo islâmico, desmascarando de forma atroz as contingências da contemporaneidade nos dois extremos do mundo. Do Ocidente pudico, que cora quando o tema é sexo, mas que ruma para paragens tão distantes quanto possível para se entregar aos braços do prazer, não hesitando em pagar por isso. "Essa busca desesperada, equiparada à de alguém que foge da sua própria sombra, é bem conhecida nos meios ligados ao turismo, que lhe chama o paradoxo da «double mind»". E do Islão mentecapto, de crenças doentias, para quem a morte é sempre a primeira arma contra o pecado. O seu pecado. "Chegará certamente o dia em que o mundo ficará livre do Islão; embora para mim seja tarde demais. Lamentavelmente, falta de vontade de viver não é o suficiente para sentirmos vontade de morrer."

Ao terceiro romance, a novidade, do ponto de vista da existência do protagonista, é a benção do amor - "Quando falta o amor, nada pode ser santificado." - a que, até então, nunca se assistira. Michel, que mantém em comum com os personagens dos livros anteriores, o desprezo pelos homossexuais e pelos muçulmanos, a dedicação vaga à profissão (excepção para Michel, o biólogo molecular de 'Partículas'), a aversão à América e a consagração a uma existência desinteressante e desinteressada - "É fácil renunciarmos a viver, pormos de lado a nossa própria vida" -, pouco católica e pouco altruísta, apaixona-se de forma derradeira. Seria o início de um ciclo novo, se não ficasse drasticamente interrompido pela demonstração de incompatibilidade cultural e religiosa entre os mundos todos.

"Plataforma" é, à sua maneira, uma história de amor. Mas "quando a vida amorosa acaba, é a vida no seu conjunto que adquire qualquer coisa um pouco forçada e convencional. Permanece o aspecto humano e os comportamentos habituais, como uma espécie de estrutura; mas, para empregar uma expressão corrente, o coração já não mora aqui".

terça-feira, junho 26, 2007

O poder de Berardo

Foi sempre assim; sempre assim há-de ser: em terra de cegos quem tem um olho é rei. E José Manuel Rodrigues Berardo - Joe, cá para nós - pode não dominar exactamente as curvas da língua portuguesa, fillho pródigo que foi fazer pela vida - qual sonho americano produzido em África - com mil e duzentos escudos na algibeira, mas regressou como um dos dez homens mais ricos de Portugal; pode não ter o sex-appeal de José Sócrates (para quem acha que ele o tem), mas lá foi distinguido com o grau de comendador pelo qual se faz tratar; nem a cultura formatada das academias da paróquia pelas qual todos se pelam - a vida por um título! -, nem conseguir identificar a verdade de um Mona Lisa, mas lá se transformou no maior coleccionador de arte contemporânea. E agora tem um Museu com o nome gravado, fogo de artifício pela noite dentro e - garante - é credor do Estado.
Joe dispara insultos, ideias e OPAs em todas as direcções e o país pára, desculpa-o, rende-se, estende-lhe a passadeira vermelha e abre-lhe o cofre. Ou o que dele resta. Às vezes, ganha; outras vezes, não - mas nunca perde. E da crista da onda, de onde ameaça não sair tão cedo, lá vai assistindo à submissão de um povo (políticos, artistas, benfiquistas, tudo incluído) que se verga com o deslumbramento bacoco de quem viu Deus.
Ontem, foi Rui Costa - "Fuck him!" - que foi para uma parte que não queria; hoje, foi Mega Ferreira a demitir-se do Centro Cultural de Belém vulgo Conselho de Fundadores da Fundação Colecção Berardo. Quem será o próximo?

Time Out Lisboa


Chega em Setembro! É semanal, sobre Lisboa, e é, tal como as congéneres de outras 15 cidades, dedicada à cultura e lazer. "Um produto associado ao lado mais cool, irreverente e criativo" avança, hoje, ao Público, o director João Cepeda. O adjunto será João Miguel Tavares; a editora Sónia Morais Santos, ambos resgatados ao DN.

Prós & Contras II

Rui Rio é um senhor e vai andar por aí. "Disse que ia por aqui e é por aqui que vou. Não vou contribuir para corromper a política, prometendo uma coisa e fazendo outra". Acho bem. Mas também acho que devia acabar de ler o seu próprio programa eleitoral. Eu tenho uma cópia e juro que há lá mais coisas, para além da Baixa e desses "20%" que vivem em bairros sociais.
Este debate foi hoje. É de mim ou podia ter acontecido no ano passado? Ou há dois anos? Será por isso que Rui Rio gosta dos jornalistas de Lisboa? Ou dos que são do Porto, mas é como se fossem de Lisboa? Pela sua extraordinária impreparação quando o assunto é o Norte?

Prós & Contras

Os convidados do costume, uma plateia envelhecida, essencialmente masculina, vagamente entediada, a repetir chavões. É esta a imagem que está a ser transmitida na televisão de um Porto que ambiciona ser rico, poderoso e cosmopolita. Neste contexto, Rui Rio é objectivamente e sem ironia, um senhor.

domingo, junho 24, 2007

Noite de S. João


Acto I
- Estás a gostar de estar no Porto?
- Sim. Muito.
- Mas ponderas ficar por cá?
- Não. Isso não.
- Porquê?
- Sinto falta da multiculturalidade que existe em Lisboa. Lá, tenho amigos de todas as cores, de todas as partes do mundo. Aqui, bastou-me ver uma mulher caboverdiana ser ignorada num quiosque para ter a certeza de que nunca poderia cá ficar.
Acto II
- Dama, gente do Porto é gente da paz! Obrigada.
- Ya, estás na boa!
- A sério, dread chegou sem nada, disse que tinha fome e vocês abriram os braços. Sem preconceito. Mas não quero incomodar. Se estiver a incomodar, vazo.
- Sem stress. Fica aí, come. Bebe. És de onde?
- Vim de Luanda há muitos anos, you know? Fui obrigado a ir para a tropa. No choice. Fiquei traumatizado.
- Lutar pelo MPLA?
- Sim, mas era tão mau como estar do lado da UNITA. Manos a matar manos, tás a ver?
- E agora vives onde?
- Em Coimbra, com os estudantes. Em Coimbra tá-se bem. Trabalho de dia e estudo à noite. Mas também já vivi quatro anos no Porto.
- E então?
- Não dava. Muito fechado. O people daqui é muito fechado. Vive dentro de casa. Sais à rua e não acontece nada.

sexta-feira, junho 22, 2007

Fosse só o Rivoli....

Enquanto a maioria se revela e debela pela luta do Rivoli, Rui Rio sorri. Mesmo que o seu sorriso venha embrulhado em vinganças perigosamente infantis (deveria dizer canalhas?) e estratagemas de exclusão, provavelmente apreendidos no orgulho do seu colégio alemão. Sorri porque ele, mais do que qualquer outro, saberá que quanto mais as pessoas da cidade estiverem focalizadas num único assunto - a perda do Teatro Municipal com tudo o que isso significa de subtração de diversidade cultural -, mais aos olhos do país parecerá que o assunto não basta para tamanha insatisfação. O mesmo defenderá - e defende - o olhar mais distraído, ou menos exigente, dos cidadãos do Porto - seguramente os que nele votaram. E nesse arco de posições extremadas, Rio sentir-se-á salvo porque, aparentemente, vítima da obsessão de um grupo que ele considera reduzido.

Só ele sabe o jeito que este circo lhe dá.

Se o Rivoli fosse a única imagem da inércia cultural da cidade já seria suficientemente grave (por razões vastamente conhecidas e que não me apetece repetir). O problema é que a atenção mediática (mediática, mas tragicamente impotente) que o Teatro ganhou serve, apenas, para encobrir os problemas todos dos outros equipamentos que o seu Executivo impunemente delapidou.

A Casa de Cinema Manoel de Oliveira, onde está? Empatada há quatro anos, grafitada e cercada de matagal. Sem vergonha, a Câmara colocou o cineasta a pagar a renda do apartamento que ela própria arrendou para catalogar o seu acervo.

Os Ateliers da Lada, para que servem? As casas que deveriam ser, como foram em 2001, residência para artistas nacionais e internacionais criarem e projectarem o seu trabalho no Porto estão agora a servir de albergue pontual para uns quantos que foram desalojadas pela autarquia.
O Cinema Batalha, como está? Gerido por Laura Rodrigues da associação de comerciantes numa negociata que nem Deus saberá, rasteja entre a cantina de bairro e os bailes de paróquia num nível de exigência mais do que deprimente. Ela jura que teve 500 mil pessoas no ano passado. Alguém acredita?
O Teatro do Campo Alegre, que evolução sofreu? Esse espaço que iria servir, na voz de Rui Rio, para acolher as criações das companhias independentes da cidade. Todas menos uma: o Plástico ficou vedado por se ter barricado no Rivoli. Ah, a liberdade...
E o Edifício Transparente (esquizofrenia em grau terminal do PS, é certo) transformado em centro comercial? É sempre mais fácil converter tudo a tostões. Ou, pelo menos, à possibilidade de os ganhar. Haja restauração em força!

E depois, a cultura de Rui Rio não é só La Féria; não é só um lençol vazio. É, também, um improvável concerto dos Keane que a Câmara, vá lá saber-se porquê, decidiu promover em Agosto.

Viva Rui Rio! Viva!

quinta-feira, junho 21, 2007

Rui Rio, the big brother

Revelação que pode excitar Rui Rio, discípulos, apoiantes, camaramen rasteiros e similares: David Pontes, essa vil figura do jornalismo, que se arroga o direito de exercer a sua cidadania apesar de ser sub-director de um jornal (Que raio! Ninguém lhe explicou que um director para ser sério, isento e honesto tem o dever de não existir fora da plataforma onde trabalha? Que, de preferência, deverá mesmo ser casto, não vá dar-se o caso de se deixar contaminar por um qualquer matrimónio oue lhe conspurque a conduta?!), essa figura, dizia, além de se opor à concessão do Teatro Rivoli a Filipe La Féria, é adepto do Futebol Clube do Porto. Nos dias de jogo é vê-lo a caminho do Dragão, frenético, ansioso, fosforescente, animado com a ideia de ver ganhar o club de Pinto da Costa; devastado se ele perde. Como é que essas imagens, ilustração irrevogável da sua falta de parcialidade, e mesmo de dignidade, nunca apareceram no You Tube?! Os caninos de Rui Rio não trabalham ao domingo?!
As câmaras de filmar, sabemos todos, têm limitações. A que foi contratada por Rui Rio não confiscou (ou não reconheceu, talvez por não ter a dimensão mediática que o presidente da cidade diz ter David Pontes e Carla Miranda, essa mulher infame com quem partilha a vida e que, ainda por cima, é actriz) o chefe de redacção do JN. Outra revelação: José Queirós não só esteve na manifestação como não evitou aplaudir as griffes internacionais que desfilaram na carpete vermelha. As objectivas não captaram, mas Rui Rio é bem capaz de ter razão: como pode confiar-se nos critérios editoriais de um jornal que tem dois jornalistas na mesma acção de protesto? Pior, José Queirós, num acto de desafio superlativo à autoridade, ainda escreveu uma crónica sobre o que viu. Terá enlouquecido? Como pode o jornal de uma cidade manter nos seus quadros duas pessoas com este avançado estado de demência? E os outros jornalistas? Os do DN e do Público, que também lá estavam de R em punho? De facto, já não se pode confiar em ninguém...
Sem liberdade não há democracia. E a democracia de Rui Rio é o sistema encardido, com cheiro a mofo, decrépito e pautado pela máxima: "Quem não é por mim é contra mim", que "aqui quem manda sou eu e eu, só eu é que sei". Obcecado, no limiar da enfermidade crónica, perseguido e perseguidor, não lhe restaria outra saída que não a de voltar à cadeira de um tribunal. Eventualmente, para uma reguada que nunca lhe servirá de lição. Que tipo de homem acredita ter o direito de poder filmar os outros, catalogá-los, dissecar-lhes a vida pessoal e daí fazer extrapolações para o seu desempenho profissional? E quem, no seu pleno juízo, pode defender que Rui Rio é um homem saudável?

quarta-feira, junho 20, 2007

Restart

Retomo o Coriscos porque sim. E porque apetece tanto retomá-lo como há dois meses me apeteceu abandoná-lo. Sendo das poucas coisas que podemos pousar e pegar, amar e odiar, errar e corrigir sem que daí resulte qualquer consequência, porque não?

terça-feira, junho 19, 2007

Ricardo II

[Foto: Bruno Castanheira]

Colocar o Rei Ricardo II, figura emblemática da dramaturgia de Shakespeare, num estádio de futebol, com baliza e relva e holofotes e tudo, disfarçado (revelado?) de jogador, poderá parecer, para os mais fundamentalistas, uma heresia. Tirar-lhe a poltrona, mesmo antes de a majestade perder a coroa, substituindo-a por uma minguada cadeira de praia, uma arriscada blasfémia.

Mas Ricardo II, encenado por Nuno Cardoso para o Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa - em cena até 8 de Julho - é assim uma espécie de imenso jogo de futebol, que também podia ser de xadrez, mas onde "o mecanismo de confrontação entre as duas equipas - a que exerce o poder e aquela sobre quem ele é exercido - extrapola os limites das regras de qualquer desafio".
A ilustração desse divórcio subjaz a toda a peça. A engrenagem sobre a transição de poder de Ricardo II (João Ricardo) para o seu primo Bullingbrook, duque de Hereford (Gonçalo Amorim), que assumirá o título de Henrique IV, "é uma espécie de jogo de espelhos que se vai amplificando, uma dissecação perfeita do movimento antitético entre as duas personagens.

No início, um é rei; o outro apenas um homem. De repente, redefinem-se e os papéis invertem-se. Mas ambos continuam presos. Antes de tudo, à sua identidade". É o poder enquanto "monstro de Frakenstein" "As maiores sevícias praticam-se quando não temos consciência delas. Daí, as grandes catástrofes e a dimensão de loucura que o homem transporta", afirma Nuno Cardoso, para justificar que é justamente "a nossa constante distanciação da aceitação de coisas tão simples como a morte - Ricardo diz: "A morte é a única coisa que nos pertence" - que o "fascina" e o conduz à escolha de textos que versam invariavelmente sobre "temáticas complexas".

A aposta - primeira incursão do encenador pela obra de Shakespeare - parece cínica (os actores são vestidos pela dupla Storytailors com equipamentos de futebol), mas ele garante que é uma peça "serena", sem juízos de valor. "Não estabeleço fronteiras entre o que é justo ou injusto; entre o que é bom ou mau. Esta peça, que é imensa [mais de três horas], é a demonstração da capacidade que temos de ser ambas as coisas ao mesmo tempo. E, neste caso, ambas as coisas na figura daqueles dois reis".

Ancorada num exercício que joga com o "perdurar da memória", e com a ambiguidade fornecida pela banda sonora de Sérgio Delgado, a história desenvolve-se em três momentos que correspondem a três linguagens diferentes o reinado de Ricardo; a invasão e a transição de poder; e a abdicação do Rei, período de síntese num quadro "um bocadinho pervertido" a evocar a última ceia. A causa, o efeito e as consequências.

A equipa de Nuno Cardoso não é a mesma de sempre, mas quase dos 15 actores, Cátia Pinheiro, Luís Araújo, António Júlio e Daniel Pinto pertencem a um grupo que raras vezes não integra as suas criações. O autor do estádio, Fernando Ribeiro, e o dos holofotes, José Álvaro Correia, também estão sempre lá. O núcleo duro, a linguagem cénica e a conexão entre o texto e actualidade serão a marca coerente do encenador que, desde o início, promete fazer uma comédia... que nunca chegou.

terça-feira, junho 12, 2007


[Foto: João Carvalho Pina]

A insegurança é como o medo: atrai os cães.

quarta-feira, junho 06, 2007

As pessoas e as cidades

As pessoas não são as cidades que habitam. Mas também são as cidades que habitam. Ausentes em cidades frias, mesmo se as cidades transpiram de calor. Insistentemente presentes em cidades quentes, mesmo se as cidades são cinzentas. Lisboa e Porto. Não terá a ver com o clima. Talvez com a dimensão, onde ninguém se perde porque nunca se encontrou. Com a cultura de um apurado individualismo, que eventualmente abrirá excepções para uma família restrita de incondicionais. Instinto de sobrevivência.

As pessoas não são as cidades que habitam, mas são completamente diferentes: as do Porto e as de Lisboa. Mesmo que alguns, poucos, de um lado pudessem pertencer ao outro lado e vice versa. A amizade, nas suas quase infinitas possibilidades de demonstração é, também, tão radicalmente diferente que quase não parece a mesma coisa. E, se calhar, não é. Sei hoje, como já sabia antes, que a porta - de casa e do coração - escancarada do Porto, a abnegação, a generosidade, o estar sempre presente, mesmo quando não se pode, não encontra a mais leve simetria em Lisboa.

Nem sempre é possível explicar o que nos aproxima, por dentro, das pessoas; mas é perfeitamente possível saber o que nos afasta. Não estamos juntos! Já não estamos. Alguma vez estivemos?