quinta-feira, junho 02, 2011

5 de Junho

Um desgosto político dói mais do que um desgosto de amor. Um amor não correspondido é um amor que não foi, que não se chegou a saber como seria, não deixa mágoa, deixará pena, não se escolhe quem se ama, é assim. Um amor que falhou é uma responsabilidade partilhada ou uma desilusão de que cedo ou tarde se recupera, não inviabiliza o futuro, a ferida sara. Por muito que às vezes não se queira e até se deseje o contrário. Morrer de amor. Ninguém morre. Um desgosto político é diferente. A começar pelo facto de ser colectivo. A piorar pelo facto de o ser em duas acepções: não só é uma extensa colecção de traições - ao passado, ao presente, ao futuro, às crenças, aos ideais, ao que se fez, ao que se não fez, ao que se disse, ao que se calou, ao que se pensou, ao que se contaminou -, como uma traição de impacto atómico, suficientemente rápida e com energia bastante para ameaçar ou mesmo destruir uma geração inteira. Ou várias. Não é coisa de um coração só. E não são só os sonhos, mas também o que dos sonhos foi suor. E destruir o suor dos sonhos é demasiado grave para não ser considerado crime. Em qualquer cenário. Sempre achei isto. Mas o pior de tudo é que no desgosto político é tão culpado quem traiu como quem acreditou. A única diferença é que seguramente dói mais a quem acreditou, o que longe de atenuar, só agrava.

Há uma geração, que é a minha, que nasceu com direito de voto adquirido. Direito a votar rimava com dever de escolher. Mas também, na educação que me deram, com direito a esperar a honra da palavra dada. Votar numa palavra de honra era um compromisso de mimetismo à escala. Voto em X porque à minha escala defendo e farei o que X defende e fará. Voto em X porque, de forma simples e sintetizada, X poderá errar mas nunca enganar, poderá não salvar o mundo mas tudo fará para o melhorar. Votar em X era adquirir a mais confortável de todas as almofadas: a crença destemida em alguém que, no mínimo, nunca faria nada que pudesse excluir, envergonhar ou prejudicar alguém. X simbolizava orgulho e identificação, colocar no fogo as mãos sem medo de as queimar. Não era coisa de heróis, só de gente honesta. A responsabilidade exigível a X era igual à responsabilidade que me era exigida. Tal e qual como no amor, a escolha política significava reciprocidade -  receber na medida do que se dá - e um esforço em cadeia - dar mais a quem tem menos - em nome do bem comum. E não era uma escolha entre X e Y na medida em que X era bom e Y era mau. Era uma escolha entre bons e bons no sentido que todos queriam mais ou menos o mesmo, mas através de caminhos diferentes.

Acreditar em alguém parecia normal, era normal. Hoje parece a maior demonstração de ingenuidade, se não mesmo de estupidez. E não só na política. Pergunto-me até que ponto a versão que me venderam num dia que parece já ter sido na outra vida algum dia existiu. E até que ponto vale a pena ser educado para a honestidade, a solidariedade, o conhecimento e por aí fora quando o preço a pagar é infinitamente mais caro do que o seu contrário. E pergunto-me quanto tempo demorará a conseguirmos desembaraçar-nos desta ideia que antes parecia significar dignidade e hoje não é senão tonteria. Mas pergunto-me também se algum político antes de o ser terá de si a consciência de que não é suficientemente honesto ou competente ou incorruptível para desempenhar a função. Ou se tem realmente consciência dos estragos que tem o poder de provocar em quem não tem como defender-se. Pergunto-me como dorme quem tira o sono aos outros. Mesmo. E pergunto-me sobretudo se algum dia voltará a ser possível querer e crer no bem alheio e esperar a tal honra da palavra dada sem se parecer um palerma. Um desgosto de amor colhe a solidariedade de multidões, pode ser exibido e dirimido em público; um desgosto político embaraça e isola. É como ter cometido um crime a dormir; assume-se a culpa por incapacidade de o negar, mas sem recordar o momento exacto da acção. 

Nunca votei em branco, feliz que cresci com a ideia de poder e dever contribuir para uma democracia que nos enriquecia e libertava. Não sei se algum dia voltarei a votar em alguém, sequer a sair de casa com o propósito de votar. Muito menos votarei numa altura em que a corrente diz que o importante não é escolher X; é não escolher Y. Como se tivéssemos um cancro cheio de metástases e o médico dissesse: não a vou curar, vou só tirar-lhe este tumor, que é o mais visível. Tirando-me esse, senhor doutor, vou viver mais tempo, viver melhor? Não, vai viver o mesmo tempo e na mesma mal. Pode ao menos garantir-me que ele não vai voltar a crescer? Também não. Garantir que os outros tumores são menos graves? Também não, que ainda não os analisei. Então, senhor doutor, qual é a ideia? 

Qual é a ideia?, pergunto. 
 
Alguém, já não sei quem, escreveu há umas semanas: "ando com o meu voto na mão e não tenho a quem o entregar". É isso. E é uma grande tristeza. Não se pode viver bem quando não se acredita em ninguém.

3 comentários:

  1. Não compreendo como se pode tratar todos por igual, meter todos no mesmo saco como se tivessem o mesmo grau de responsabilidade. Isso não tem nada a ver com justiça, ingenuidade ou idealismo. É apenas ser objectivo e racional. Os políticos são apenas o reflexo da sociedade que os gera. Está a fugir à sua responsabilidade de escolher, e à procura de boas desculpas para isso. Escrevo sobre o assunto em http://bit.ly/jglUrg.

    Saudações!

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  2. "Os políticos não são todos iguais", escreveu e eu concordo, Tiago. Não os trato a todos por igual. Disse, apenas, e mantenho, que não acredito em nenhum o suficiente para lhe confiar o meu voto. E que isso é triste.

    Concordando absolutamente com a primeira metade do seu texto, não consigo subscrever a segunda. A propósito de PPC, não terei o mais pequeno problema em dar o braço a torcer, se for caso disso, daqui a uns anos. Mas, hoje, o que ele fez e disse sabe-me a pouco. Não me mobiliza, nada mesmo!

    E não estou nem a fugir à minha responsabilidade nem à procura de desculpas. Votar só porque sim (uma vez que não me move o que move os sociais-democratas: tirar dali o Sócrates já!), isso sim, seria irresponsável.

    Não costumamos entender-nos por aqui, pois não, Tiago?

    Abraço.
    h.

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  3. O que move os sociais-democratas não é só isso (e por mim falo), mas bastaria isso para votar em qualquer outro partido que seja ao menos sério, para tirar Sócrates de lá. É uma questão de higiene, de não aceitarmos ser vigarizados.

    Não é o PPC que vai salvar o país, mas é de longe, na minha modesta opinião, o que melhor consegue congregar esforços de todos nós. Tenho vindo a escrever sobre isso desde 2008: http://ofuturoeagora.blogs.sapo.pt/73350.html.

    Boa reflexão e, quem sabe, bom voto! ;-)

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