Um desgosto político dói mais do que um desgosto de amor. Um amor não correspondido é um amor que não foi, que não se chegou a saber como seria, não deixa mágoa, deixará pena, não se escolhe quem se ama, é assim. Um amor que falhou é uma responsabilidade partilhada ou uma desilusão de que cedo ou tarde se recupera, não inviabiliza o futuro, a ferida sara. Por muito que às vezes não se queira e até se deseje o contrário. Morrer de amor. Ninguém morre. Um desgosto político é diferente. A começar pelo facto de ser colectivo. A piorar pelo facto de o ser em duas acepções: não só é uma extensa colecção de traições - ao passado, ao presente, ao futuro, às crenças, aos ideais, ao que se fez, ao que se não fez, ao que se disse, ao que se calou, ao que se pensou, ao que se contaminou -, como uma traição de impacto atómico, suficientemente rápida e com energia bastante para ameaçar ou mesmo destruir uma geração inteira. Ou várias. Não é coisa de um coração só. E não são só os sonhos, mas também o que dos sonhos foi suor. E destruir o suor dos sonhos é demasiado grave para não ser considerado crime. Em qualquer cenário. Sempre achei isto. Mas o pior de tudo é que no desgosto político é tão culpado quem traiu como quem acreditou. A única diferença é que seguramente dói mais a quem acreditou, o que longe de atenuar, só agrava.
Há uma geração, que é a minha, que nasceu com direito de voto adquirido. Direito a votar rimava com dever de escolher. Mas também, na educação que me deram, com direito a esperar a honra da palavra dada. Votar numa palavra de honra era um compromisso de mimetismo à escala. Voto em X porque à minha escala defendo e farei o que X defende e fará. Voto em X porque, de forma simples e sintetizada, X poderá errar mas nunca enganar, poderá não salvar o mundo mas tudo fará para o melhorar. Votar em X era adquirir a mais confortável de todas as almofadas: a crença destemida em alguém que, no mínimo, nunca faria nada que pudesse excluir, envergonhar ou prejudicar alguém. X simbolizava orgulho e identificação, colocar no fogo as mãos sem medo de as queimar. Não era coisa de heróis, só de gente honesta. A responsabilidade exigível a X era igual à responsabilidade que me era exigida. Tal e qual como no amor, a escolha política significava reciprocidade - receber na medida do que se dá - e um esforço em cadeia - dar mais a quem tem menos - em nome do bem comum. E não era uma escolha entre X e Y na medida em que X era bom e Y era mau. Era uma escolha entre bons e bons no sentido que todos queriam mais ou menos o mesmo, mas através de caminhos diferentes.
Acreditar em alguém parecia normal, era normal. Hoje parece a maior demonstração de ingenuidade, se não mesmo de estupidez. E não só na política. Pergunto-me até que ponto a versão que me venderam num dia que parece já ter sido na outra vida algum dia existiu. E até que ponto vale a pena ser educado para a honestidade, a solidariedade, o conhecimento e por aí fora quando o preço a pagar é infinitamente mais caro do que o seu contrário. E pergunto-me quanto tempo demorará a conseguirmos desembaraçar-nos desta ideia que antes parecia significar dignidade e hoje não é senão tonteria. Mas pergunto-me também se algum político antes de o ser terá de si a consciência de que não é suficientemente honesto ou competente ou incorruptível para desempenhar a função. Ou se tem realmente consciência dos estragos que tem o poder de provocar em quem não tem como defender-se. Pergunto-me como dorme quem tira o sono aos outros. Mesmo. E pergunto-me sobretudo se algum dia voltará a ser possível querer e crer no bem alheio e esperar a tal honra da palavra dada sem se parecer um palerma. Um desgosto de amor colhe a solidariedade de multidões, pode ser exibido e dirimido em público; um desgosto político embaraça e isola. É como ter cometido um crime a dormir; assume-se a culpa por incapacidade de o negar, mas sem recordar o momento exacto da acção.
Nunca votei em branco, feliz que cresci com a ideia de poder e dever contribuir para uma democracia que nos enriquecia e libertava. Não sei se algum dia voltarei a votar em alguém, sequer a sair de casa com o propósito de votar. Muito menos votarei numa altura em que a corrente diz que o importante não é escolher X; é não escolher Y. Como se tivéssemos um cancro cheio de metástases e o médico dissesse: não a vou curar, vou só tirar-lhe este tumor, que é o mais visível. Tirando-me esse, senhor doutor, vou viver mais tempo, viver melhor? Não, vai viver o mesmo tempo e na mesma mal. Pode ao menos garantir-me que ele não vai voltar a crescer? Também não. Garantir que os outros tumores são menos graves? Também não, que ainda não os analisei. Então, senhor doutor, qual é a ideia?
Qual é a ideia?, pergunto.
Alguém, já não sei quem, escreveu há umas semanas: "ando com o meu voto na mão e não tenho a quem o entregar". É isso. E é uma grande tristeza. Não se pode viver bem quando não se acredita em ninguém.
Não compreendo como se pode tratar todos por igual, meter todos no mesmo saco como se tivessem o mesmo grau de responsabilidade. Isso não tem nada a ver com justiça, ingenuidade ou idealismo. É apenas ser objectivo e racional. Os políticos são apenas o reflexo da sociedade que os gera. Está a fugir à sua responsabilidade de escolher, e à procura de boas desculpas para isso. Escrevo sobre o assunto em http://bit.ly/jglUrg.
ResponderEliminarSaudações!
"Os políticos não são todos iguais", escreveu e eu concordo, Tiago. Não os trato a todos por igual. Disse, apenas, e mantenho, que não acredito em nenhum o suficiente para lhe confiar o meu voto. E que isso é triste.
ResponderEliminarConcordando absolutamente com a primeira metade do seu texto, não consigo subscrever a segunda. A propósito de PPC, não terei o mais pequeno problema em dar o braço a torcer, se for caso disso, daqui a uns anos. Mas, hoje, o que ele fez e disse sabe-me a pouco. Não me mobiliza, nada mesmo!
E não estou nem a fugir à minha responsabilidade nem à procura de desculpas. Votar só porque sim (uma vez que não me move o que move os sociais-democratas: tirar dali o Sócrates já!), isso sim, seria irresponsável.
Não costumamos entender-nos por aqui, pois não, Tiago?
Abraço.
h.
O que move os sociais-democratas não é só isso (e por mim falo), mas bastaria isso para votar em qualquer outro partido que seja ao menos sério, para tirar Sócrates de lá. É uma questão de higiene, de não aceitarmos ser vigarizados.
ResponderEliminarNão é o PPC que vai salvar o país, mas é de longe, na minha modesta opinião, o que melhor consegue congregar esforços de todos nós. Tenho vindo a escrever sobre isso desde 2008: http://ofuturoeagora.blogs.sapo.pt/73350.html.
Boa reflexão e, quem sabe, bom voto! ;-)