Eram 4h37 da madrugada quando da janela da cozinha avistou a silhueta da mulher, timbre trémulo e triste a pedir ao porteiro: "Importa-se de me abrir o portão?" Ele, idade outonal, mudo na farda azul, a fazer de conta que não lhe conhece melhor a voz que o rosto, a fazer de conta que passava ali naquele preciso instante por acaso e não porque há mais de duas horas vigiava os ecos da gritaria que ela, alheada das horas e dos vizinhos, fazia verter do rés-do-chão - ela a berrar: "Larga-me! Larga-me, cabrão!" -, tirou pausadamente as chaves da algibeira numa lentidão que pretendia punir quem aguardava a saída e abriu-lhe o portão. A mulher saiu. Ninguém a seguiu. Terá 40 anos, talvez menos, leva os caracóis castanhos em desalinho, a roupa torcida, o corpo suado, cansado da porrada. É assim todos os fins-de-semana. Vem ver o namorado, o amante, traz malas empertigadas apoiadas em rodinhas, um sorriso de saltos altos, vem para ficar uma dia, talvez dois. Sai invariavelmente a meio da primeira noite com um rasto de móveis tombados, atirados contra a parede, louça partida, a porta do apartamento a bater, a abrir e a fechar vezes sem conta antes da fuga derradeira. E o mesmo discurso, em loop, aparentemente imune ao desgaste da semana anterior, intercalado com palavrões, muitos - "Eu para ti morri, ouviste meu filho-da-puta? Morri!"; "Deixa-me sair, se não sair vou gritar! Deixa-me saiiiir, caralho!"- e a incredulidade - "Estás-me a bater?! Bate-me, cabrão! Bate-me, bates-me porque és cobarde, és um cobardolas!" - e a ameaça - "Nunca mais me pões a vista em cima, nunca mais!" E o nunca mais dura até à semana seguinte.
No andar de cima, a luz está acesa. Não era preciso, a lua está quase cheia no rescaldo do eclipse, ilumina tudo. Mas há várias luzes acesas no prédio, uma inevitabilidade quando aquela mulher franzina, bonita, misteriosa, visita o condomínio, o namorado, o amante. Já houve queixas, já houve polícia, já houve ameaças, a colher que separa o homem da mulher teme que um dia o caso acabe mal. Mas ela, e ele com ela, resistem a tudo. Sem mudar um milímetro. Pouco a pouco, as luzes vão-se apagando. No andar de cima, o cão, um Labrador amarelo de natureza e longevidade, que há pouco corria desaustinado pelo soalho, inquieto e previdente, adormece. Ou assim parece. A televisão faz aquele som de desligar, apesar de muito provavelmente ter estado em mute nas duas últimas horas. E os donos vão ou voltam à cama. A cama começa a ranger, primeiro devagar, depois mais depressa, sincronizada. Há gritos outra vez. E já é dia. O dia começa às 5h10.
Ela assiste a tudo, o som quando é alto chega em imagens 3D. Ao lado, o inverso, nenhum som, uma paz absoluta, ele continua imperturbável, embrulhado num sono profundo, num sorriso cristalizado que imita a realidade acordada, ignorando tudo aquilo em que não crê. Ao vê-lo assim ali, sábio, sereno e incorruptível, tão pouco terreno, não conseguiu deixar de pensar: Amo-te, caramba! Quando ambos acordarem, terão passado dez anos.
De língua rápida e, sacana, coloquialmente adorável.
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