quarta-feira, dezembro 15, 2010

Carlos Pinto Coelho (1944 - 2010)


Um privilégio. Entrevistei-o duas vezes. Comovi-me das duas. Ri-me imenso nas duas. Trocámos depois correspondência sobre a nossa costela transmontana. E sobre cultura. E sobre o seu cerceamento. Carlos Pinto Coelho era todo afecto, todo ausência de distâncias ou salamaleques, simples. Falava a cantar. Amanhã todos dirão que era o maior do mundo. Mas de 2003 até hoje poucos se lembraram disso. Triste país este... Não devia ter acontecido assim...

Entrevista publicada no Jornal de Notícias a 9 de Agosto de 2003


O mais antigo telejornal cultural da Europa deixou de acontecer. À beira de completar dez anos de existência, "Acontece", da autoria de Carlos Pinto Coelho, regressaria depois de amanhã ao ecrã se a Administração da RTP não tivesse, subitamente, ditado o seu fim. Mas na redacção, onde continua a trabalhar a exígua equipa do programa, ninguém parece ter desistido. Riem. É a alegria, explica o jornalista, ao JN, "de quem está triste, mas não abatido.O poder de quem tem a consciência tranquila". De quem há mais de três anos alertou as sucessivas direcções da estação pública para a forma "envelhecida" do programa, e não foi ouvido. A cabeça de Carlos Pinto Coelho fervilha, aos 59 anos, de projectos, de livros que conhecerão nova edição e de livros que estiveram congelados durante décadas. "Sou um homem de luto intenso, mas nunca prolongado".

Esta decisão da RTP vem abortar o desejo que tinha de celebrar as bodas de prata do programa...
Aborta uma coisa mais funda do que isso. Em Janeiro de 2000, escrevi um documento intitulado "Como acontece", em que explicava que o programa era robusto, mas estava envelhecido na forma, tinha prestígio, mas estava obsoleto no discurso televisivo e, ainda que fosse bem aceite, era já insatisfatório. Propus a sua reformulação total: nas áreas, nos conteúdos, no décor, nos genéricos, na forma como os cameramen estavam a trabalhar as peças. O documento repousou nos sucessivos directores e administradores da RTP sem nunca terem feito nada. Houve um di- rector que ainda se entusiasmou com o projecto, mas nunca passou disso. O caminho seria o do programa da Bárbara Guimarães, na SIC: visual despojado, sóbrio, bonito, moderno.

Soube do fim do "Acontece" pela rádio. O director de programas, José Rodrigues dos Santos, já explicou as razões?
Não há guerras, animosidade ou ressentimentos entre nós. É mais uma questão de choque de gerações do que de discordâncias profundas.Nesta crise final do "Acontece", o Zé estava de férias, no Brasil.Não podia ter-se pronunciado publicamente. O que estranhei foi ter ouvido pelo presidente da RTP, na TSF, e não pelo director de programas, não agora, mas no dia 27 de Junho, quando anunciei aos telespectadores que iria voltar.

Em televisão vende mais uma Bárbara Guimarães do que um Carlos Pinto Coelho?
Isso é visível. Em quase todas as televisões da Europa e dos EUA, os telejornais de referência são apresentados por homens e mulheres de cabelos brancos. Em Portugal não há uma única pessoa com mais de 50 anos a apresentar. É um toque de referência civilizacional que existe no Portugal do pós-25 de Abril. A Bárbara é jovem, culta, bonita e elegante. Eu tenho 59 anos, tenho cabelos brancos, sou avô. Mas digo isto sem mágoa, porque o ecrã nunca me fez falta.

O "Acontece" acabou pela polémica espoletada pelo ministro Morais Sarmento, pelo seu pedido de rescisão ou pela "selva da audiometria"?
Julgo que sei porque é que me mataram o "Acontece" tão de repente.Tenho a minha cabeça arrumada, mas não quero afirmá-lo na praça pública, porque não tenho provas. O que eu digo empiricamente é que o meu programa era visto, nas suas quatro emissões, por 250 mil pessoas por dia.

Em termos estritamente pessoais como é que sente a perda do programa?
É uma violência emocional para nós todos. Racionalmente aceito que todos os programas têm um fim. Mas o fim que eu esperava era mais bonito do que este. O "Acontece" nasceu como um filho meu. Diziam que não durava seis semanas, que não havia volume de matéria para alimentar sete minutos. E os anos encarregaram-se de mostrar o contrário. Falta-me agora a saborosa relação com os editores de livros. Entregámos 46 mil livros aos portugueses, com o apoio entusiástico desses editores (comove-se). E havia as distribuidoras de discos, filmes, bai- lado... Tudo eram relações de afectos. Não se pode soprar e dizer: "Acabou, gostei muito deste bocadinho." É uma década da minha vida e da minha gente.Somos humanos. Goste-se ou não de mim, julgando que sou ou não uma vedeta - e aproveito já para dizer que não sou. Respeitem, pelo menos, as pessoas que fizeram daquilo o melhor das suas vidas.

Foi uma espécie de missão apresentar esse programa no país europeu que menos consome livros, jornais, teatro...?
Depois de um inglório período de um ano, em que a RTP me mandou para casa, convidaram-me para editar o 24 horas. Foi um fracasso de audiências. Era o programa certo no horário errado. Foi aí que idealizei o "Acontece", que ganhou os três maiores prémios de jornalismo em Portugal.


Concebe o mesmo programa noutra estação de televisão?
Claro. Nós não cometemos nenhum crime. Não tenho vergonha nenhuma do nome "Acontece". Se puder transplantar o conceito e a obra, a vida e a experiência deste produto jornalístico para outro terreno, transplanto sem margem para dúvidas ou hesitações.


Está disponível, portanto?
Não estou morto nem enterrado. Estou disposto, mais do que disponível, a partir para outros projectos. Agora estou na RTP. É a minha casa há mais de 20 anos e continuo a gostar muito dela, apesar de estar muito triste e amargurado. Não me pergunte se quero mudar de mulher com esta rapidez. Quero viver com ela o máximo de tempo que me deixarem.

Aceitaria dar a cara pelo novo magazine cultural que deverá substituir o "Acontece"?
Que magazine? Com que colaboradores? Com que projecto? Digam-me primeiro qual é o projecto e as condições. Agora preciso que termine este período de luto para saber qual será o meu próximo salto. Aí, quando eu entender o que posso e quero fazer, fá-lo-ei com toda a energia, como no início. Os lutos, para mim, foram sempre rápidos. Mas muito intensos.

O programa passa em 90 emissoras de rádio. Também aí desaparecerá?
Claro que não. O programa de rádio, que chega a Macau e a Timor, tem quatro anos, e é completamente distinto da televisão. É a outra menina dos meus olhos, mas essa está bem, obrigada. Se calhar até vai ficar mais robusta, porque agora tenho mais tempo para ela.

A revista, que nunca chegou a aparecer, também poderá beneficiar desse tempo extraordinário?
Não. Só se justificava pela sinergia. Era a terceira perna do projecto "Acontece". Caía quando caíam as administrações RTP e renascia com as novas para voltar a cair. Nunca arrancou na vida. É muito português. Somos campeões europeus dos projectos metidos na gaveta.


Há uma faixa, a da guerra colonial e do 25 de Abril, que se demitiu da cultura, e não aparece nos espectáculos. Daqui a 20 anos essa ruptura será menos evidente?
Há um rompimento da minha geração com a das minhas filhas. A nova geração não quer os valores de alguns pais que se comprazem a chegar a casa, cansados, e ficam bovinamente sentados no sofá a ver novelas e Big Brothers. Mas daqui a 20 anos continuará a haver ruptura. Tem a ver com a globalização. Se calhar, nessa altura, os países já se transformaram noutras entidades cosmogénicas.

Acredita obviamente que a cultura pode mudar o Mundo...
Sempre foi a cultura a alavanca das mudanças, sobretudo nas rupturas.Os políticos entendem isto, mas têm um período muito curto de sobrevivência. Têm pouco tempo para provar, vencer e recolher os frutos. A cultura, ao contrário, tem o tempo todo da humanidade.Muitas vezes, até depois da morte dos seus criadores.


O próprio "Acontece" possui, nesse sentido, uma galeria de mortos.
Vou revelar-lhe uma coisa: o primeiro programa "Acontece" depois de férias, que deveria ir para o ar depois de amanhã, era exclusivamente dedicado a Augusto Abelaira, que morreu dois dias antes de eu saber que o "Acontece" iria morrer também. Com imagens inéditas.Pedi a uma equipa da RTP para filmar o último encontro que ele teve, em vida, com escritores.

A mania de dizer que a cultura é para as minorias não afasta ainda mais as pessoas?
A cultura é como aquelas mulheres bonitas, atraentes, graciosas e inteligentes, que se apaixonam perdidamente por um homem barrigudo, velho, careca, mas que têm toda a ternura e todo o encanto masculino do mundo, que só ela sabe. E, no entanto, quantos homens belos passam por ela, e ela não olha para eles. Quer só aquele.


O que é um jornalista cultural?
Um jornalista é um jornalista, ponto. Depois, como se fosse uma receita para fazer um herói, segundo o poema de Reinaldo Ferreira, junta uma dose de gosto. É preciso ter dentro um grãozinho que nos faça identificarmo-nos com o objecto do nosso trabalho. E ter uma imensa humildade: não somos gente culta. Somos a ponte entre a gente culta e o leitor. Finalmente, é preciso trabalhar desumanamente.

Nestes dez anos, cruzou três governos e muitos ministros da Cultura.
É verdade. O "Acontece" nasceu e morreu com um Governo PSD, o que é curioso.

Torna-se agora evidente a diferença entre a política cultural de Esquerda e de Direita?
Não. A cultura não é de Esquerda ou de Direita. Há acções de Direita no Governo de Guterres e de Esquerda no Governo de Durão Barroso. O conceito de Esquerda e Direita, infelizmente, esbateu-se ao longo de toda uma geração. Com o Muro de Berlim caíram os referentes de extrema. Tem a ver com a globalização, que é o empobrecimento autêntico para a acção mas não para o pensamento.

Não concorda então com o desinvestimento cultural deste Governo?
Concordo, não só na cultura como praticamente em tudo o que é acção. Este momento governativo português é eminentemente reactivo.Há uma reacção em relação a uma situação deplorável que foi encontrada.

Quer dizer que entende?
Não. O que eu discuto são as prioridades. Naturalmente, a prioridade contabilistica orçamental que agora impera no Governo do meu país não é a que eu consideraria primeiro e mais legítima. Mas eu não sou político. Sou, apenas, um cidadão que não abdica das suas opiniões.

Tem vocação política?
Tenho. Não gostava de a exercer, porque não gosto da vida política.

Perfil
Diz que a cultura lhe apareceu "no leito da mãe Sara", em S. Tomé e Príncipe. Foi ela, professora primária, a responsável pela paixão avassaladora que Carlos Pinto Coelho, 59 anos, jornalista, tem pela literatura. Em Lourenço Marques (agora Maputo, Moçambique) onde viveu parte substancial da juventude, a casa estava toda forrada de livros. Do pai, juiz, quase herdou o curso de Direito, que lecionou em Lisboa, abandonando-o no último ano, depois de ter reprovado na oral de Direito das Sucessões. "O único chumbo da minha vida de estudante", haveria de confessar mais tarde.Começou então a estagiar no "Diário de Notícias". Trabalhou em vários jornais e na televisão. Para completar a volta ao Mundo, falta-lhe apenas a Austrália. É uma vedeta? Ele garante que não.


Confissões
Um livro sobre a televisão portuguesa, chamado "Factos e ficções", está encravado há 20 anos no computador. Entretanto, em Novembro, a ASA reedita, 20 anos depois, o livro de fotografia "A meu ver".A segunda edição, desenhada por Armando Alves, embalada numa caixa de cartão, apresenta 50 textos inéditos de uma nova geração de autores.


"RTP é a única capaz de fazer cultura televisiva"
"Não estou abatido, estou triste. Raivosamente triste. Não me peçam para falar da RTP nos tempos mais próximos. A única coisa que pedi é que deixem a minha equipa unida, que não a chupem para o dia inexorável de uma redacção generalista. Não destruam o capital que a RTP tem, que é a única redacção capaz de fazer cultura televisiva.


"Enorme estima pelo ministro da Cultura"
"Tenho alto apreço e enorme estima pelo actual ministro da Cultura, Pedro Roseta. Quanto mais crucificado é na praça pública pelos seus piores inimigos -que estão dentro do PSD -, mais me apetece dizer e saltar para a rua e dizer que temos, de facto, um homem culto à frente do ministério. Agora, não sei se será bom ministro".

1 comentário:

  1. O MIL: Movimento Internacional Lusófono (www.movimentolusofono.org) vai promover a 22 de janeiro uma uma sessão evocativa do jornalista português Carlos Pinto Coelho, recentemente falecido, que se salientou pela divulgação da cultura lusófona.

    A sessão irá decorrer, em princípio, na nossa sede (R. Mouzinho da Silveira, nº23, Lisboa) no dia 22 de Janeiro, pelas 16 horas.

    http://www.movimentolusofono.org/2010/12/23/homenagem-mil-a-carlos-pinto-coelho-2/

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