Lembro-me do primeiro dia que fui lá. Atrasada. Fim de tarde escura e chuvosa numa cidade tão próxima, que me era, apesar de tudo, tão estranha. Levava o ego infinitamente menos cheio do que julgou depois a maioria. E umas calças de ganga rasgadas, ingenuamente convencida de que isso bastaria para me proteger dos estereotipos do mundo. Esperei quase meia hora numa sala de óleos apagados. Depois, lá apareceu alguém, folhas brancas na mão e ar de quem luta contra o tempo. Ideias, muitas; projectos, mais; futuro. Conversa boa. Quase bajuladora. Lembro-me perfeitamente de ter pensado nela assim, nesses termos. E de ter pensado que não entendia por que razão me tinham chamado, se eu era apenas mais uma (longe de ser das melhores), como tantos outros, a enviar currículos no fim do curso. Não era suposto sofrer pelo menos uns meses no desemprego? Equacionar alternativas ou gastar o dinheiro que não tinha numa viagem qualquer? Matriculei-me num segundo curso ainda antes de começar a procurar emprego. Fá-lo-ia de qualquer maneira.
Eu queria mudar o mundo. Cresci a ouvir as pessoas dizerem-me que eu ia mesmo mudar o mundo. Mas não poderiam estar a contratar-me por isso. A menos que também quisessem mudar o mundo. Quereriam? Nas grandes empresas não deve raciocinar-se nesses termos, reconsiderei. Por isso, à saída da minha primeira entrevista de emprego, determinada a recusar a proposta caso a minha hipótese se confirmasse, perguntei se alguém tinha metido uma cunha por mim. “Se me conhecesse, não teria feito a pergunta”, responderam-me. Seja.
Lá estava eu, 23 anos acabadíssimos de fazer. Os sonhos todos no peito. E à minha frente uma equipa inteira, com a qual nunca tinha sonhado, à espera que me espatifasse na primeira curva sem que eu percebesse muito bem porquê. Ainda nem sabia o nome deles. Saberiam eles o meu? E como poderia haver logo tantos rótulos e tão má vontade para com alguém que ainda mal tinha chegado? (Deviam ensinar-nos na escola que a timidez é facilmente confundida com arrogância e a arrogância não é bom cartão de visita para ninguém.)
Lá estava eu, 23 anos acabadíssimos de fazer. Os sonhos todos no peito. E à minha frente uma equipa inteira, com a qual nunca tinha sonhado, à espera que me espatifasse na primeira curva sem que eu percebesse muito bem porquê. Ainda nem sabia o nome deles. Saberiam eles o meu? E como poderia haver logo tantos rótulos e tão má vontade para com alguém que ainda mal tinha chegado? (Deviam ensinar-nos na escola que a timidez é facilmente confundida com arrogância e a arrogância não é bom cartão de visita para ninguém.)
Houve um senhor que se apresentou logo no primeiro dia, não exactamente pelo nome: “Aqui, menina, as pessoas não se sentam em cima das secretárias!” Ops! Levantei-me, vermelhíssima, engasgada com os insultos que, isso sabia, não podia disparar. Lembro-me perfeitamente de um trio masculino, sentado ao lado da janela. Absolutamente sinistra a forma como se impunha pela pose, pelos fatos, pela altivez do olhar, pelo cheiro das cigarrilhas. Sempre tive dificuldade em respeitar hierarquias só porque sim. E percebi que ali o desafio seria esse: aprender a respeitar sem questionar. Seria capaz? Havia ali uma espécie de código de comportamento que me atirava completamente para fora do que até então tinha aprendido a reconhecer como certo. Era demasiado nova para entender. Demasiado nova para quase tudo. Por muito que achasse que não. Era sobretudo demasiado nova para saber jogar. Uma "inábil social" haveria de dizer alguém. E também há preço para isso. Sobretudo quando nunca se aprende.
Aceitei o horário da manhã, consciente de que nunca o haveria de cumprir, porque era aquele em que via menos gente. Não devem ver-se pessoas que não estão dispostas a aceitar os outros. De cada vez que chegava, com uma hora de atraso, lá tinha o recado de sempre: “Quando chegar, ligue-me. Tem isto e isto e isto para fazer”. E depois, os discursos oscilavam entre uma hospitalidade que me soava estranha ("Eu mostro-te como é...; "Eu digo-te como se faz.."; "Ah, filha, se eu tivesse a tua idade!..."), algumas abordagens de comparação académica ("No meu tempo era assim..."; "Agora é assado...") e as clássicas tentativas de sedução sexista. Rezava sempre para que não me convidassem para almoçar. Às vezes, convidavam. Nesses dias só me apetecia fugir! Culpa dos outros? Mais minha, seguramente.
Saía às seis da tarde a jurar que não voltaria no dia seguinte. Recebia telefonemas repetidos. Amigos me queriam brindar-me com uma palavra de consolo. Que nunca consolava... Sentia que me tinha enganado (mas assim, tão depressa? Seria possível?): que me tinha achado melhor do que realmente era. E que era aquele local onde, por mil e um motivos, nunca pensei trabalhar, que mo estava a demonstrar. Não era só o despenhamento do ego. Era também o despenhamento de um futuro que, pela primeira vez, não estava a conseguir controlar. No meu imaginário, aquilo deveria ser uma fábrica de operários transformadores de mundos. E nunca de alpinistas profissionais. Se era isso, como poderia ser feliz ali?
E, no entanto, quando pouco depois surgiu o convite para Lisboa, não tive coragem de ir. Ainda hoje não sei bem porquê. Era o ano da Capital Europeia da Cultura e não queria sair da cidade nesse ano. Deslumbrada por conhecer o Seamus Heaney, o Lobo Antunes (mesmo que ele não tenha achado o mesmo), o Sepúlveda; febril e infantilmente entusiasmada com tudo o que estava a acontecer, achava mesmo que naquele ano não poderia sair. Era um ano fundamental para compensar a minha gritante falta de bagagem cultural e de quase tudo. Havia demasiados nomes (do teatro, da dança, das artes plásticas...) que só conhecia dos livros e dos jornais a fazer escala ali, como poderia não querer ficar? Ainda por cima, diziam que era o início de um novo ciclo. E eu não sabia que não podia acreditar. Como não sabia que não era possível mudar o mundo.
Aceitei o horário da manhã, consciente de que nunca o haveria de cumprir, porque era aquele em que via menos gente. Não devem ver-se pessoas que não estão dispostas a aceitar os outros. De cada vez que chegava, com uma hora de atraso, lá tinha o recado de sempre: “Quando chegar, ligue-me. Tem isto e isto e isto para fazer”. E depois, os discursos oscilavam entre uma hospitalidade que me soava estranha ("Eu mostro-te como é...; "Eu digo-te como se faz.."; "Ah, filha, se eu tivesse a tua idade!..."), algumas abordagens de comparação académica ("No meu tempo era assim..."; "Agora é assado...") e as clássicas tentativas de sedução sexista. Rezava sempre para que não me convidassem para almoçar. Às vezes, convidavam. Nesses dias só me apetecia fugir! Culpa dos outros? Mais minha, seguramente.
Saía às seis da tarde a jurar que não voltaria no dia seguinte. Recebia telefonemas repetidos. Amigos me queriam brindar-me com uma palavra de consolo. Que nunca consolava... Sentia que me tinha enganado (mas assim, tão depressa? Seria possível?): que me tinha achado melhor do que realmente era. E que era aquele local onde, por mil e um motivos, nunca pensei trabalhar, que mo estava a demonstrar. Não era só o despenhamento do ego. Era também o despenhamento de um futuro que, pela primeira vez, não estava a conseguir controlar. No meu imaginário, aquilo deveria ser uma fábrica de operários transformadores de mundos. E nunca de alpinistas profissionais. Se era isso, como poderia ser feliz ali?
E, no entanto, quando pouco depois surgiu o convite para Lisboa, não tive coragem de ir. Ainda hoje não sei bem porquê. Era o ano da Capital Europeia da Cultura e não queria sair da cidade nesse ano. Deslumbrada por conhecer o Seamus Heaney, o Lobo Antunes (mesmo que ele não tenha achado o mesmo), o Sepúlveda; febril e infantilmente entusiasmada com tudo o que estava a acontecer, achava mesmo que naquele ano não poderia sair. Era um ano fundamental para compensar a minha gritante falta de bagagem cultural e de quase tudo. Havia demasiados nomes (do teatro, da dança, das artes plásticas...) que só conhecia dos livros e dos jornais a fazer escala ali, como poderia não querer ficar? Ainda por cima, diziam que era o início de um novo ciclo. E eu não sabia que não podia acreditar. Como não sabia que não era possível mudar o mundo.
O tempo é como uma picada de abelha. Vem tão depressa que nunca ninguém consegue fugir. Quando se dá conta, já o ferrão está cravado no corpo. Terá valido a pena ter ficado? Terá valido a pena ter ficado quando percebo que, afinal, as impressões que colhi aos 23 anos não são muito diferentes das que tenho agora? Traduzem-se nesta frase (do blogue da Vera): "O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons."
leio-te (quase) todos os dias. numa avidez de quem anseia chegar depressa ao fim do texto e num arrependimento de não saborerar as palavras com mais calma. fiquei triste quando interrompeste os ralhos e as descomposturas. hoje achei que devia-tinha de dizer-te isto! obrigada pela companhia que a tua escrita me faz...
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