domingo, novembro 25, 2007

Antes do fim do Bolhão

Dona Amélia tem dedos gretados do frio. Mãos de trabalho, 65 anos a carregar flores e hortaliças. Logo de manhã cedo. Cinquenta quilos à cabeça, desde que era menina e vinha a pé de Serzedelo, em Gaia, para o Bolhão, no Porto. Pagava dez tostões para poder entrar no mercado. Faziam fila os comerciantes. E fila os clientes. Cinco filhos criados ali, numa caixa de papelão, numa alcofa guardada por baixo da balança da padaria, na madeira dos beirais das janelas. Sempre sozinha, destemida. O marido, emigrado em França, como tantos outros, trabalhava para construir a casa.

Hoje, quando lhe perguntam para onde irá quando fecharem para obras o mercado onde se fez mulher, dona Amélia, olhos doces, húmidos da saudade de um tempo em que “o povo era bom”, não sabe dizer. Só sabe que olhar para os filhos, já formados e casados, os filhos todos unidos, que todos os dias telefonam para saber dela e do pai, é mais importante do que “já não apurar para a despesa”. Ou não saber do que irá viver daqui para a frente. Porque não sabe fazer mais nada e porque, para mais, nem sequer tem reforma. “Ou havia de pagar os estudos aos meninos, ou havia de descontar. As duas coisas não conseguia fazer”. Para onde vai agora? Não sabe. E também ninguém lhe diz. Mas sabe que “se não houver alegria e saúdinha o dinheiro não serve para nada”.

Em dia soalheiro, como o atípico Novembro de agora, o Bolhão quase parece um mercado parisiense. Música francesa mistura-se com pregões de venda, pássaros em bando voam em loop sem abandonar o recinto, perfume de flores e peixe fresco, frutas e leguminosas, cheiro a pão quente, turistas, menos. A comprar, ninguém. “Até me arrepio”, desabafa dona Argentina, 68 anos a cuidar das suas plantas de plástico como se tivessem vida. “O que isto era nestes dias, menina! Não se podia aqui entrar com gente. Agora, morreu. Mataram o Bolhão”.
O Bolhão que quase parece um mercado parisiense. Quase. Porque a quem vende falta o incentivo político para continuar e a segurança de que fazem mais falta elas ali, mulheres de avental e língua afiada, meias de lã em cima de meias de vidro, xaile pelas costas a desafiar os fios gelados da brisa, braços cruzados à espera de quem já não vem, do que um qualquer concentrado de lojas topo de gama, incapaz de distinguir o Bolhão de um qualquer centro comercial.
“Obras sim, centro comercial, não”, sublinha dona Mariazinha, que já foi “remediada e hoje, aos 66 anos, é pobre”. Os clientes desapareceram-lhe com as notícias de insegurança da estrutura, a maioria dos restaurantes chineses que lhe compravam “as verduras lá para as comidas saudáveis que eles fazem” fecharam. Os estrangeiros tiram fotografias com ela que depois lhe enviam com dedicatórias numa língua que ela não entende, mas compram, no máximo, apenas, dois tomates.
Mariazinha havia de ter sido actriz. Não fosse a mãe, na altura, dizer que “as actrizes eram umas curtas”. “A menina desculpe, mas entende o que quero dizer. Outros tempos...”Não foi actriz, mas não perdeu o jeito. É rainha no Bolhão. O marido de uma vida sorri-lhe, amparalha-lhe as brincadeiras. Ela troca as voltas ao infortúnio, à má sorte e nunca pára de sorrir. Não há ali quem não goste dela. “A vida é para a frente, minha querida. Há-de correr tudo bem”.

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