quinta-feira, dezembro 15, 2005

Natal

E que tal se restringíssemos a histeria natalícia à data respectiva?!...

segunda-feira, dezembro 05, 2005

"Eu e a minha mulher"

José António Saraiva passou-se! Claramente. Não há outra forma de o dizer. Tudo bem: a reportagem é um género jornalístico que se presta às maiores liberdades. Convém é que não deixe de ser reportagem... jornalística, pelo menos! O ex-director do Expresso assina esta semana um texto sobre a ante-câmara da prometida entrevista com Durão Barroso. Um texto em que descreve o jantar, o restaurante, o empregado português do restaurante, a preocupação com a sua roupa - usar ou não usar gravata -, a roupa da dona Uva... Agora, escrever que estava com a sua mulher e que tudo não passou de double date é um bocadinho demais, não?!

domingo, novembro 27, 2005

Imprensa a criar excêntricos todas as semanas

Bem sei que do ponto de vista do porreirismo que nos é sempre exigido e que nós gostamos sempre de ostentar isto poderá parecer psicologicamente meio monocórdico. Dito de outra forma: sem sal. Mas a verdade é que poucas coisas me concedem maior prazer ao fim-de-semana do que ler a imprensa nacional quase toda. Pilhas e pilhas de papel prendem-me durante dois dias com muito mais eficácia do que qualquer encontro social, cultural ou familiar. Porque está lá tudo. E, volta e meia, quando menos esperamos, quando apenas viajamos inocentemente pelas referências do jornalismo português, somos também brindados com doses infindáveis de humor. Este fim-de-semana de chuva, trovoada e saraiva foi uma espécie de euromilhões... com notícias "a criar excêntricos". Do melhor!

1. Anda Mário Soares empenhado, à beira do limite e do desequilíbrio, a espicaçar Cavaco Silva - qual moscardo de Platão!! -, para tentar que o homem rompa o silêncio e reaja a qualquer coisa e ele nada. E depois responde a Miguel Cadilhe só porque o seu ex-ministro das Finanças o citou, completamente a despropósito, numa conferência, no Porto. Não é justo.


2. Gosto de António Barreto. Gosto dele por tudo. Gosto dele mesmo quando discordo do que defende. E não gosto de Miguel Cadilhe. Por nada especial, pormenores, tiques, apenas. Mas não gosto. E não gosto também porque não gosto da devoção que a imprensa tem por ele. Na passada terça-feira, os dois foram desafiados a dissertar sobre as elites do Porto, na Universidade Católica. O sociólogo levou um texto escrito, sustentado, brilhante. O economista ignorou o tema e gastou o tempo a falar da regionalização. Não terá sido por acaso. Amanhã lança o livro "O sobressalto do Estado em Portugal", onde retoma o assunto. O JN antecipou, ontem, excertos da obra e fez manchete com isso. O Público recuperou, hoje, o texto de António Barreto e publicou-o na íntegra. Um texto que vale mesmo a pena ler.


3. Definitivamente, no universo do humor ninguém consegue competir com Pedro Santana Lopes. Não é que o ex-Primeiro-Ministro decidiu criar uma nova efeméride? Para assinalar um ano sobre a publicação, no Expresso, do texto de Cavaco Silva, designado "Lei de Gresham" (sobre a moeda boa ou má ou assim-assim), escreveu um artigo de opinião homónimo no mesmo jornal, respondendo-lhe. Santana Lopes a tentar pôr Cavaco Silva no lugar!!! É, no mínimo, hilariante. Mais hilariante ainda: Cavaco Silva respondeu-lhe! Ou seja, Soares não só perde para Cadilhe, como também perde para Santana Lopes. É o descalabro.

4. Santana Lopes não é homem de uma piada só. Por isso, no mesmo artigo, atacou também Jorge Sampaio, que acusa de ter dissolvido o Parlamento depois de ter lido a oração de Cavaco e, com isso, ter prejudicado o país. E vou citar, porque nada poderá ser melhor do que as palavras do próprio:


"Criticava-se o meu Governo por falar em esperança, por falar em espírito positivo, por falar em confiança. Como os números provam, a economia portuguesa há um ano crescia. As pessoas acreditavam pouco na melhoria mas apesar de tudo acreditavam esse pouco. Agora, o clima é de generalizada descrença, quase de angústia nacional, como reconhecem os mais insuspeitos. A decisão do Presidente da República prejudicou, pois, Portugal. Tudo visto e ponderado ninguém duvidará que a situação do país é hoje pior do que no ano passado, tendo, precisamente, começado a piorar quando o Presidente anunciou a decisão."


Palavras para quê? Santana Lopes que, por mais do que uma vez, manifestou preocupação em relação à sua magra reforma, deveria enviar o currículo para as Produções Fictícias ou mesmo escrever uma cartita aos amigos dos Gatos Fedorentos. Algo me diz que está a passar ao lado de uma grande carreira como humorista.


5. Apresentar soluções milagrosas para o país nas páginas dos jornais é como comentar um jogo de futebol da bancada. Isto não é novo. Por saber isto, Paulo Portas, como previ neste blogue na passada sexta-feira (sim, não é só José Manuel Fernandes que tem esse dom da previsão...) regressará ao comentário político em Janeiro. É certo que eu previ que seria na imprensa. Ok, não é. É na Sic Notícias. So what?


6. Joaquim Oliveira que recentemente açambarcou boa parte da comunicação social nacional ao protagonizar o maior negócio do sector com a compra da Lusomundo à PT, afirmou que quer ainda acrescentar uma televisão generalista ao seu espólio multimédia. O patrão da Oliverdesportos prometeu ficar vigilante em relação ao processo de renovação das licenças dos canais privados de televisão e a uma eventual atribuição de novas licenças para novos canais generalistas. Não quereria ele dizer que vai estar atento às licenças dos canais por cabo? Recorde-se que dois produtos made in Porto estão por aí prestes a emergir...


7. Volta e meia o Expresso decide inovar. Pronto, é assim. Acho que é um direito adquirido muito semelhante ao dos velhinhos: podem fazer o que quiserem e nunca ninguém lhes leva a mal. Desta vez, o semanário coloca na primeira página, com direito a fotografia de casal e tudo, um anúncio: "Durão Barroso por ele próprio" - entrevista e reportagem "24 horas com". No interior do jornal? Não! Na próxima semana!


8. Isabel Pires de Lima em entrevista ao JN. Única leitura possível: o túnel de Ceuta roubou-lhe tempo para tudo. Não há um único dossier em que a ministra da Cultura se sinta confortável. As respostas são um concentrado de contradições e vazio.


9. Marco Paulo, esse grande senhor que passou a vida dividido entre dois amores, confessou à Única que não casou por causa das fãs. Importa-se de repetir?

Isabel Pires de Lima

"Estou preparada para ir embora amanhã"

Ministra da Cultura analisa os dossiês mais complicados dos seus dez meses de governação

Contestação feroz das companhias de teatro do Norte pelo atraso na distribuição dos subsídios; avanços e recuos no desenho do modelo de gestão a aplicar na Casa da Música; a herança de uma capital da cultura invisível acima de Faro; e o rotundo falhanço do Instituto das Artes com Paulo Cunha e Silva. Dez meses à frente do Ministério da Cultura, Isabel Pires de Lima continua a liderar complicados dossiês. O desgaste da sua imagem advém, no entanto, de um terreno improvável: a obra pública do Túnel de Ceuta, no Porto, e o braço de ferro que mantém com o presidente da Câmara, Rui Rio.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva e José Miguel Gaspar publicada no Jornal de Notícias a 26 de Novembro de 2005)

Reconhece que o Túnel de Ceuta , no Porto, desgastou a sua imagem enquanto ministra da Cultura?

Uma vez que o dossiê foi acompanhado de acções no sentido de formar uma determinada imagem minha, com outdoors espalhados pela ciodade, é natural que isso tenha acontecido. Surgiu num momento eleitoral, o que fez com que fosse empolado ao nível da mediatização excessiva da imprensa e da própria autarquia. Mas procuro ler a coisa ao contrário: espero que tenha tido uma função pedagógica no sentido de sensibilizar a população para o facto de que tudo o que acontece no espaço público é cultura também.

O resultado foi uma vitória política para si?

Pode haver essa leitura. Mas foi sobretudo uma vitória da preservação do património. Sei que para a maioria das pessoas não é fácil entender que uma obra, que pode facilitar a circulação e a sua vida, seja posta em causa em nome de um Museu (Soares dos Reis). Daqui a uns anos entenderão mais facilmente.

Entretanto, o ministro António Costa e o próprio primeiro-ministro tomaram conta do dossiê. Foi ouvida nas negociações em curso?

Isso surpreende-se. Não conheço essas negociações.

Rui Rio assumiu que essa negociação existe e não foi desmentido.

Só lhe posso dizer que não tenho absolutamente ideia nenhuma de qualquer contacto com o ministro António Costa. Ninguém falou comigo. Para mim, o dossiê é meramente técnico, embora Rui Rio lhe tenha dado uma inclinação política.

Inclusive, deu a entender que não se importará de prolongar o Túnel, desde que alguém o pague...

O IPPAR não me deu conhecimento de que tenha havido alguma proposta dessa natureza.

Teve algum indicador do IPPAR - que já tomou conta da obra -, do que vai ser feito?

Há um processo judicial a correr. A tomada de posse administrativa decorre exactamente desse processo. Dei poderes ao IPPAR para tomar posse administrativa da obra. O IPPAR executará essa tomada de posse quando entender (há prazos para o fazer) e porventura, na sequência disso, haverá a apresentação de um projecto para a reposição do trânsito à superfície e depois a abertura de um concurso que seguirá os trâmites normais.

Insiste nisso à margem das negociações que diz desconhecer?

Ao contrário do que me está a dizer, a informação que eu tenho para lhe facultar é que não aconteceu nada. Com o ministério e o IPPAR não tenho conhecimento de qualquer negociação. Se houver, com certeza que todo este calendário poderá ser alterado. Depende do que acontecer. Até ao momento, não aconteceu nada. E já gastei muito tempo com este dossiê quando deveria ter-me debruçado sobre outros.

A Casa das Artes, também no Porto, está fechada há mais de um ano e a ruir. O espaço poderá acolher um pólo da Cinemateca, como foi promessa do anterior governo?

Esse é um dossier que irei repensar a curto prazo. É da maior gravidade que um equipamento daquela qualidade esteja na situação em que está. Temos que encontrar uma solução a breve prazo. Não faz sentido que esteja fechado por razões de falta de segurança. A Casa das Artes ser uma espécie de braço da Cinemateca no Porto é uma possibilidade que faz sentido. Além de que o espaço faz falta – o Porto tem poucos espaços daquela natureza para exposições. Com aquela dimensão só tem mesmo o da Biblioteca Almeida Garrett. Não trabalhei ainda essa ideia mas tenho que o fazer.

Concorda que o Porto deve ter acesso aos filmes da Cinemateca?

Concordo inteiramente. Essa não é a única solução para a Casa das Artes – o equipamento tem polivalência artística – mas essa é uma das vertentes que merece ser pensada. Não estudei ainda o dossier. Não posso dar ainda uma resposta taxativa. No entanto, a ideia de haver uma sala no Porto onde se possam ver filmes que só são exibidos na Cinemateca faz todo o sentido. Não sei se será um pólo da Cinemateca ou se passará apenas pela exibição de filmes que os lisboetas vêem na Cinemateca. Acho que a Casa das Artes será o espaço mais vocacionado para isso. Ou para a exibição de outro tipo de filmes que começam a não ter espaço comercial nas salas do Porto.


Isso implica o quê?

Não sei o que implica. Tenho que estudar o dossier. Há uma coisa que é clara: uma das funções das políticas culturais do Estado é a defesa da diversidade cultural. Em relação ao cinema passa pela defesa de filmes que não são eminentemente comerciais.

Concorda que o actual panorama não defende essa diversidade?
Inteiramente. Basta ver os números. Basta ver o peso que tem em Portugal o cinema americano e o que tem noutros países da Europa. Cabe ao Estado e ao Ministério da Cultura assegurar essa interculturalidade, como se viu na conferência de ministros da Cultura do Conselho da Europa: o Estado deve preocupar-se com a construção da coesão cultural e a manutenção da sua diversidade. Aí, a Europa é completamente diferente dos Estados Unidos; na Europa, o Estado tem um papel regulador e interventivo nas políticas culturais.

Que passo deve ser dado, na distribuição de cinema em Portugal, nesse sentido?
O Estado deve pensar em medidas proteccionistas – é um assunto sobre o qual quero deter-me, mas não tenho ainda soluções. Pode ser estudável que a Casa das Artes seja um espaço onde isso se reflicta. Mas, como disse, não estudei ainda esse dossier.


"Burmester não é vital na Casa"

A ministra da Cultura chegou a acordo com os fundadores da Casa da Música em relação a temas que durante dez meses os afastaram, mas o equipamento está longe da solução não há calendário para nomear o director artístico e é necessário mais capital social.

Com tantos e tão complicados dossiês, quantas horas trabalha por dia?

Muitas. Sempre à volta de 12, às vezes 14 horas. É normal, mas não é desejável. Se a minha passagem pelo Governo durar quatro anos...

Coloca a sua continuidade no campo das hipóteses?

Não há lugar que seja mais perecível do que um lugar executivo desta natureza. Estou preparada para deixar a minha secretária amanhã. Em termos psicológicos estou sempre preparada para poder sair no dia seguinte. Em primeiro lugar porque é realmente assim; e depois porque é assim que deve ser.

Quando tomou posse, em Fevereiro, qualquer decisão sobre o modelo de gestão da Casa da Música (CM) seria já tardia. Ainda assim, houve inúmeros recuos e avanços para depois regressar à solução inicial...

Não voltamos à solução inicial...

A CM é uma Fundação...

Sim, mas a solução inicial nunca esteve em causa. A única coisa que disse é que se não fosse possível a Fundação, encontrar-se-ia outra solução. Não íamos fechar a Casa da Música!

Faltou coragem política para avançar com a solução de instituto público quando os privados, em Outubro, anunciaram a ruptura nas negociações?

Os privados tiraram com uma mão e deram com a outra. A meio da declaração manifestaram disponibilidade para continuar a conversar. De facto, tivemos avanços e recuos em relação ao modelo de gestão, mas sempre dentro do quadro da Fundação. Internamente coloquei outras hipóteses, mas nem sequer esgotei o modelo de Fundação. Porque haveria hipótese de, dentro disso...

Encontrar outros parceiros...

Evidentemente.

Já chegou a acordo com os fundadores em todos os pontos?

Já. Afastava-nos o modelo de gestão, o financiamento e a integração da Orquestra Nacional do Porto.

A direcção artística não foi também alvo de discórdia?

Isso foi empolado pelos media, mas não houve dificuldade.

Defende o nome de Pedro Burmester para a direcção artística?

Ele estará sempre ligado à Casa da Música e será sempre uma peça fundamental - é um músico da cidade e esteve ligado ao projecto. No que diz respeito a ser ou não director, o bom senso dita que não deve introduzir-se na negociação peças que possam criar dificuldades. Procurei não pessoalizar.

O nome dele causava ruído?

Não me cabe escolher, cabe ao Conselho de Administração. Prezo muito o Pedro e o projecto que gizou para a CM, mas ele não é o único nome possível. O mercado das direcções artísticas é global. A Casa não fecha se ele for para o Japão. Se o CA o escolher, os representantes do Estado não objectarão.

Irá sugerir o nome dele?

Ainda não conversei com os representantes do Estado sobre isso.

É vantajoso ver o projecto executado por quem o concebeu?

Não acho que o Pedro seja vital para a CM. A minha preocupação é assegurar que a CM irá contribuir para a qualificação do tecido musical português, e para que a música, em Portugal, tenha forma de aceder a circuitos internacionais. Para mim está tudo certo, com ou sem Pedro, desde que esteja certo.

Existem muitas soluções no mercado português?

Não. Por isso, é que é natural que se recorra ao mercado internacional. Serralves recorreu

O convite será feito até ao final do ano?

Não sei responder a isso.

Não há urgência em encurtar os prazos?

Há. Mas também há necessidade de fortalecer o capital social. Tenho necessidade de ver alargado o leque de fundadores. Não posso chamar toda a responsabilidade de financiamento para o Estado.

Faz sentido continuar a comparar o modelo ao de Serralves?

Não são universos comparáveis Não podemos continuar a caucionar a reclamação dos privados, que investem muito menos na CM. E por isso é que há uma diferença no modelo na gestão aprovado para a CM, que não é absolutamente idêntico ao de Serralves. Na CM existe uma maioria qualificada com poderes no plano de actividades, direcção artística e orçamento. Isso permite-nos controlar o projecto cultural. Foram negociações difíceis e lentas.

Há maioria qualificada, mas não um presidente com poderes especiais, como chegou a reclamar...

Fez parte das cedências mútuas. O CA passou de cinco para sete membros, exactamente no sentido de defender o Estado.

Ao contrário do que diz, Artur Santos Silva afirmou que os privados não cederam nada...

Como negociador, ele é melhor do que eu (risos). E sabe que só se chega a acordos com cedências mútuas.

Ele também disse que agora o mais difícil será definir o contrato-programa...

Não é verdade. Já está numa fase muito avançada. Será aprovado até ao final do ano.

Os estatutos já foram aprovados?

Não. Os fundadores pediram mais tempo para procurar co-fundadores. Neste momento há mais 12 assegurados. E dos 18 iniciais, houve uma queda.

Também neste dossiê houve intervenção de José Sócrates. Foi determinante?

Só interveio no fim para mostrar o quanto o Governo se empenhou nesta solução.

"Instituto das Artes foi mal gerido"


Isabel Pires de Lima rejeita qualquer responsabilidade pela actual fragilidade no sector das artes cénicas. Mas denuncia a antiga direcção do Instituto das Artes, que acusa de não ter sabido gerir o organismo. Não aprova a proliferação de companhias de teatro, mas está a trabalhar no sentido de agilizar o acesso aos subsídios. "Muitas terão apoios do Estado. Nunca todas".

As artes cénicas no Norte ficaram fragilizadas devido à providência cautelar que levou à suspensão dos subsídios. Entende que o problema fica resolvido por ter pago, na sequência da decisão do tribunal, as verbas às companhias de teatro?

Sempre disse que o dinheiro estava pronto a ser pago, e que não tinha sido desviado, como foi difundido pela antiga direcção do Instituto das Artes.

Mas já respondeu às companhias de teatro que solicitaram ao ministério um estudo sobre a queda de público?

Não há nenhum estudo encomendado. O ministério não tem responsabilidade na fragilidade do sector. Lamento que tenha havido circunstâncias que decorrem de um regulamento desproporcionado em relação ao que está em causa - parece um concurso para uma obra pública! Procuramos agilizar o regulamento, nomeadamente permitindo que companhias com provas dadas não tenham que estar sempre a concorrer. Mas os agentes teatrais, como todos nós, têm que conviver com a contenção orçamental.

Há companhias que ponderam processar o Estado com base num artigo segundo o qual, em nome do interesse público, os subsídios poderiam ter sido pagos...

Agirão conforme entenderem. Tenho formas de me defender. Estou escudada em pareceres jurídicos.

O ex-secretário de Estado, José Amaral Lopes, afirmou que "é preciso assumir que não podem existir 500 companhias de teatro". Concorda?

Completamente. Há uma proliferação excessiva de companhias que dificulta a vida dos próprios agentes. No mercado da cultura, a livre iniciativa é dos agentes se quiserem criar 500 companhias podem fazê-lo. Muitas terão apoios do Estado. Nunca todas.

Não tem qualquer programa para recuperar do sector?

Há programas de incentivo e apoio à difusão cultural, que devem ajudar à sedimentação do sector. O programa de difusão cultural [ainda sem nome] vai conjugar oferta e procura para dinamizar e agilizar o mercado. Queremos combater a falta de informação que existe e acentuar a descentralização. Investiu-se, nos últimos anos, muito dinheiro na construção de equipamentos. Agora, importa colocá-los a funcionar em rede ao nível da programação.

Substituiu o modelo de júris locais por nacionais no apoio às artes. Quem é esse júri e quando será conhecido?

Em breve porque os concursos pontuais abrem antes do fim do ano. Serão nomes reconhecidos pelos seus pares no sector e abrangerão o país todo.

Quando Paulo Cunha e Silva assumiu a direcção do IA traçou dois objectivos descentralizar e internacionalizar. A sua substituição significa que ele falhou ou pretende dar novo rumo ao que deve ser o IA?

As linhas fundamentais traçadas são válidas. A descentralização é prioritária. Importa também que o IA tenha vocação internacional - é o instituto que apoia a contemporaneidade, logo, quando se fala de "exportação cultural" temos que falar no IA. Quanto à saída dele, foi que ele se demitiu. E eu aceitei sem reservas. Nunca o disse porque nunca me perguntaram.

Já tenm nomes para os dois subdirectores?

Ainda não.O novo director, Jorge Vaz de Carvalho, tem currículo na área da música.

Vai procurar equilíbrio nos dois restantes elementos da direcção?

Também, mas não só. O IA tem problemas na sua concretização bipartida [nasceu da fusão entre IPAE e IAC] e outros de má governação.

Era um instituto mal gerido?

Sim. Nunca o tinha dito. Era um instituto mal governado. Não se pode gerir um novo organismo a partir da simples junção de dois; é preciso concebê-lo. Isso não foi feito. E esse era um dos objectivos do Paulo Cunha e Silva.

Outros dossiês

Centro Cultural de Belém deve repensar a sua estratégia

"O Centro Cultural de Belém não está actualmente a explorar de modo nenhum as virtualidades que tem." A ministra da Cultura não manda só um recado para a actual administração do CCB; diz directamente que o equipamento "deve repensar a sua estratégia, a sua mecânica de gestão, e repensar a sua própria estrutura porque tem todas as condições materiais para ser um dos espaços culturais mais dinâmicos do país." Na perspectiva de Isabel Pires de Lima, o CCB perdeu grandeza, mas não se pode falar em desinvestimento estatal: num orçamento de 15 milhões, oito são fornecidos pelo Estado.

Capitais da Cultura congeladas

Em 2006, Portugal não vai ter nenhuma Capital Nacional da Cultura. A ministra entende que é necessário "fazer um exercício profundo de avaliação", olhando para os exemplos mais recentes: Coimbra 2003 e Faro 2005 - "e as duas foram atribuladas, como vimos". Sem argumentos taxativos contra ou a favor, a governante entende que "é necessário ponderar tudo, desde os apoios à produção e distribuição até à componente mais festiva que uma Capital deve ter". E mais: Importa relacionar isso com a compreensão da cultura como forma de investimento e geradora de desenvolvimento económico."

Rápidas e Curtas

É uma internauta?
Sim, mas de forma moderada.

Sabia que a página do MC está desactualizada?
Sim... Estamos a trabalhar aí de forma intensa. O MC está muito à frente no campo da sociedade de conhecimento. Mas aqui somos muito à frente.

Qual foi o último filme português que viu?
Tenho visto pouquíssimo cinema português. O último foi "A Costa dos murmúrios". Desde que vim para o Ministério sobra-me muito pouco tempo livre. Creio que ainda não vi nenhum filme português desde que cá estou.

Não vê cinema em casa?

Não, detesto. Estar numa sala de cinema é totalmente diferente de estar no sofá de casa. Usufruir da arte passa muito, na minha opinião, pela possibilidade de conceber isolamento.

Não viu “O crime do padre Amaro”?
O novo? Não. Vi a versão anterior, do autor mexicano. Este novo, português, ainda não vi. É do meu Eça e ainda não vi. É uma das minhas prioridades.

Lê as críticas de cinema?
Leio, sim. As criticas foram positivas, não foram?

O universo do Eça, para os puristas, está desvirtuado...
Sim? isso não acho preocupante. Isso é o eterno problema das adaptações ao cinema de obras literárias – são produtos de suporte completamente diferente. A obra mexicana desvirtuava o original mas era muito defensável.


O seu lazer actual não inclui actividades culturais?
Bom, inclui... Tenho ouvido mais música do que ouvia. Tenho ido muito à Casa da Música, como vocês sabem. Olhe, hoje [quarta-feira] até vou ver os Coldplay. Como vê tenho diversificado os meus hábitos musicais. Aqui há tempos vi um concerto – bom, fui arrastada – daquele músico que participou na banda sonora do filme “A cidade de Deus”. Como é que ele se chama?

Viu o espectáculo do Seu Jorge?
Sim, o Seu Jorge, exactamente. Gostei bastante. É muito sui generis. A banda era virtuosa e ele teve intervenções prementes sobre o significado da música na actualidade.

Está a ler algum livro recomendável?
Estou a ler três coisas: o último livro de poesia do Bernardo Pinto de Almeida (qualquer coisa lusitana; é a partir de um titulo do Cesariny). Estou a ler um clássico – eu faço muitas misturas… – que nunca li, o “Lolita”, do Nabokov; e estou a ler um novo romancista brasileiro, Luís Rufato, que tem uma coisa muito interessante chamada “Eles eram muito cavalos”. Esse estou quase a acabar. E vou ler em breve a nova adaptação da “Odisseia” do Frederico Lourenço.

A versão adolescente?
Sim [risos]. A outra já li. Tenho curiosidade em ver como é que ele solucionou a narrativa fazendo a adaptação do verso para prosa. Eu sou muito a favor das adaptações para diferentes públicos – ao contrário da opinião dominante no sector literário. Acho sempre que são bons indutores de leitura.

Diria o mesmo em relação à literatura ‘light’?
Sim. Não tenho nenhuma rejeição ad inicium em relação a esse género. A literatura ‘light’ é um patamar perfeitamente viável.

Já experimentou?
Não [risos]. Li algumas coisas, há anos já, dessas primeiras manifestações de escrita ‘light’, designadamente da Rita Ferro. A única gravidade da literatura ‘light’ é quando é mal escrita – mas se for bem escrita pode ser uma bela forma de indução à leitura.

Está a seguir alguma ficção televisiva?
Não. Sou uma péssima telespectadora. Quase não vejo televisão.

Dir-se-ia que é uma ‘workaholic’?
Não, não sou – mas obrigam-me [risos]. Sou até preconceituosa relativamente aos ‘workaholics’; acho que as pessoas que trabalham em demasia são tendencialmente limitadas. Acho mesmo que é limitador alguém passar horas a mais, dias a mais só sentado no gabinete. É horrível ter de confessar que há meses não vou ao cinema, mas é verdade.






sexta-feira, novembro 25, 2005

José Manuel (ex-Durão) Barroso

O que é que mudou no país desde que Durão Barroso, de forma altruísta (!!!) - voltou a garantir, hoje, na entrevista concedida a Judite de Sousa -, trocou o Governo por Bruxelas? No que depende dele, nada. No que depende dele, na versão dele, "o país já não vê os seus problemas tratados em terceiro ou quarto lugar". Nele próprio, mudou o peso... físico. O homem está muito mais gordo!!!! Foi impossível evitar o alívio ao ouvi-lo... o alívio de o saber longe!

segunda-feira, novembro 21, 2005

Violação de privacidade

Lembro-me daquele dia por ter coincidido com a ressaca das eleições nos Estados Unidos. George Bush voltara a ganhar e eu ainda não tinha conseguido digerir a estupidez dos americanos. Ao início da tarde, um indivíduo (não era amigo nem colega nem conhecido. Era uma mistura disto tudo; daquelas pessoas que não se inscrevem propriamente em nenhuma das gavetas fundamentais da nossa vida, mas que lá vão aparecendo, cordialmente, aqui e ali. E que merecem o nosso respeito.) liga-me para me inquirir sobre uma conversa que, supostamente, acabaramos de ter no messenger.
Surpresa número um: eu ainda não tinha ligado o messenger naquele dia. Mas ele insistiu que tinha estado uma hora a conversar comigo e que eu lhe tinha feito, entre outras coisas, uma cena de ciúmes. Surpresa número dois: Cenas de ciúmes são um exclusivo que guardo para uma única pessoa. E nunca para aquelas que não me dizem nada para além da esfera mundana do quotidiano. Muito menos para uma pessoa - como era o caso -, que conhecia há dez anos, ainda dos tempos da faculdade, e que não mexia minimamante com nenhum dos meus sentidos. Mas ele voltou a insistir na teoria: tinhamos falado, eu tinha feito uma cena de ciúmes, tinha gravado a conversa e enviado, por e-mail, para essa terceira pessoa que motivara os meus delirantes ciúmes.
Resultado: o indivíduo e a dita pessoa, que tinham uma relação de carácter "fonte-jornalista", ficaram com o relacionamento profissional estragado por violação de confiança. A rapariga em causa ficara ofendida com os comentários que o indivíduo proferira sobre ela na dita conversa de messenger. E eu, que tinha com ele uma relação de carácter semelhante, fiquei também com menos uma fonte. Surpresa número três: No mesmo dia, deixei de ter acesso ao messenger e ao hotmail. Sempre que tentava ligar, surgia uma janela a informar-me que eu já estava ligada noutro computador. Liguei à rapariga esclarecendo-a de que não tinha qualquer interesse nele ou nela ou em qualquer relação que ambos pudessem ter, e que tudo não passaria portanto de um mal entendido. Ela não acreditou, o que é legítimo, porque nunca me viu na vida. Mas ele também não acreditou. Até hoje, o que é pior, porque me conhece. Os homens quando não acreditam em alguém, destilam sempre o mesmo comentário: "É uma vaca". E pronto, fica o assunto arrumado.
A violação de privacidade através das novas e supostamente eficazes formas de comunicar é grave. Mais grave, no entanto, é as pessoas não terem como provar a sua inocência. Eu não tive como provar a minha. Apesar de ter feito queixa aos administradores informáticos do local onde trabalho, de ter feito queixa ao servidor do hotmail, à Microsoft, etc, etc...
A consolação (para o que quer que ela sirva... temo que para muito pouco) chega-me agora, mais de um ano depois, através da entrevista de Kevin Mitnick, publicada na revista Única do Expresso. A história já era conhecida. O pirata entrou em mil e um sistemas informáticos, foi condenado por isso, e hoje é uma figura famosa e recuperada. Se é possível entrar nos mais complexos sistemas informáticos do mundo, como é que não haveria de ser possível forjar a entrada num mísero messenger?

sábado, novembro 19, 2005

Sigur Rós. Inesquecível.

Chegaram de mansinho com uma música que é chuva e é vento. Que é nocturna e de estrelas cadentes consumidas como um segredo, que já não é de minorias. E levaram-nos nessa tempestade que eles dizem ser de esperança. Mas na lágrima congelada da boneca mutilada, que espécie de esperança pode existir? Nós não sabemos e eles também não dizem. Inventaram uma língua para ser entendida só com os sentidos. E nós deixamo-nos embalar, docemente impotentes, por aquela arrepiante explosão de cordas. E pelos 30 segundos arriscados em silêncio. Os Sigur Rós protagonizaram, hoje, no Coliseu do Porto, um dos melhores concertos do ano. Poderá haver melhores; dificilmente algum outro poderá ser tão comovente.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Raul Brandão (1867-1930)

Em circunstâncias normais, no próximo dia 4 de Dezembro, alguém se lembraria de escrever sobre Raul Brandão, escritor do Porto falecido há exactamente 75 anos. Infelizmente, sou capaz de apostar que o aniversário da morte de um dos melhores escritores portugueses de sempre passará, discretamente, sem ninguém dar por ela.
Uma citação, apenas, de "A morte do palhaço", publicado em 1926:
"Da existência ficara-lhe o olhar desvairado, p'ra dentro, de quem segue na alma um sonho e anda na vida por acaso; o olhar daqueles em quem a vida interior é enorme e que ficam surpreendidos quando a dor lhes diz que a morte existe."

E agora, algo completamente diferente...

Há pessoas que nos ganham, assim, por nada e para sempre. Gosta-se sempre de alguém só porque sim. E nunca pelas qualidades. E nunca pelos defeitos. E nunca por nada que não seja, apenas, aquilo que são. Sejá lá isso o que for. E quando se sabe exactamente porque é que se gosta - beleza, inteligência, nobreza, riqueza, compatibilidade, carácter... -, é porque não se gosta realmente. Porque há sempre alguém melhor, mais especial. E, nesse caso, o gostar seria, ininterruptamente, derrubado por uma nova aparição. E por um novo pacote de características mais apuradas. Quando se gosta, gosta-se e pronto. E gosta-se para sempre. Porque o gostar não é passível de ser interrompido. Quando acontece, prevalece. Mesmo que seja guardado na distância. Ou no silêncio. Ou na vez única em que se tropeçou em alguém.

Futurologia

Se a moda do D. Sebastianismo redentor pega, daqui a dez anos, vamos ter Paulo Portas a disputar as presidenciais... com António Guterres. Na próxima quinta-feira, o ex-ministro da Defesa e ex-líder do CDS irá falar na sessão de encerramento dos Encontros do Porto 2005 promovidos pela Associação Comercial da cidade. Mais dia, menos dia, há-de aparecer também a escrever num qualquer jornal de referência como quem despeja uma fórmula mágica para recuperar o país. Uma espécie de "Monstro", versão II. Não soa a déjà vu?

sexta-feira, novembro 11, 2005

Dúvidas privadas para cargos públicos

A recente nomeação da direcção do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM), levantou-me dúvidas sérias... José Pedro Ribeiro, que desempenhou, desde 2003, funções de vice-presidente, será o novo líder do organismo, sucedendo Elísio Cabral de Oliveira. A propósito, alguém deu por ele no mandato? Adiante. Pedro ou Elísio é tudo a mesma coisa. Daqui a alguns anos, continuaremos todos, alegremente, a discutir a eternamente nova lei do cinema, etc e tal...


A surpresa maior surge depois. Então, não é que a mocinha-actriz-musa de Manoel de Oliveira, Leonor Silveira, passa directamente de coordenadora do departamento de divulgação e promoção do Instituto para a vice-presidência?!.... E ainda há quem não acredite em milagres...
Já agora, se alguém souber do paradeiro de Paulo Cunha e Silva, ex-director do Instituto das Artes substituído por Jorge Vaz de Carvalho (Sim , o homem da ONP; e não, não uma piada...) agradecia que me informassem. Haverá, certamente, um lugarzinho elegante para ele no Porto, não? A solicitação estende-se a Paulo Morais. O ex-braço direito de Rui Rio, ex-vice-presidente da Câmara do Porto, ex-vereador do urbanismo também deve estar por aí a emergir num cantinho qualquer...


Será prematuro falar do futuro de Isabel Pires de Lima?!...

Pérolas a porcos

Agostinho Branquinho é um ginasta notável!!! Na semana passada, na crónica que assina, todas as sextas-feiras, no Jornal de Notícias (www.jn.sapo.pt), usou a rocambolesca analogia dos supermercados para explicar apenas a forma como o indefeso Rui Rio acabou por transformar-se num mártir nas mãos impiedosas dos vis jornalistas. O presidente da Câmara do Porto não fala (a não ser por escrito, naturalmente; e quando assim o entender), mas falam os seus súbditos por si, o que dá sempre muito jeito.

Hoje o cronista volta a repetir a fórmula. Mas com um jogo de cintura digno de figurar no livro de recordes do Guiness, na modalidade "elasticidade intelectual". O deputado da Assembleia Municipal do actual executivo PSD/CDS-PP dá consigo (ele próprio não deve saber como conseguiu!) a desancar nos ex-ministros da Cultura dos anteriores governos sociais-democratas, Pedro Roseta e Maria João Bustorff, por terem negligenciado e atrapalhado a Casa da Música. Dá, fatalmente, consigo a elogiar "a intervenção directa do primeiro-ministro", que, segundo defende, "fez vingar – e bem – o modelo de fundação, numa parceria virtuosa do Estado com a iniciativa privada." Mais: aprova, incondicionalmente, a nomeação do militante socialista, José Manuel Dias da Fonseca, para presidente do Conselho de Administração da futura Fundação.

Pelo caminho, quase acaba por perder-se, não poupando também elogios ao "sentido de Estado e pragmatismo" do engenheiro Couto dos Santos (ainda a presidir o Conselho de Administração da Casa, apesar de o seu contrato ter cessado em Maio), sem o qual, sublinha, "estaríamos, hoje, ainda bem longe de uma solução estável para o funcionamento da Casa da Música."

Sobre essa prodigiosa acção do engenheiro falaremos mais tarde. Importa agora questionar que motor leva Agostinho Branquinho a tecer súbitos louvores ao PS e convictos chumbos ao PSD. Seria a permuta Túnel de Ceuta/Casa da Música, servida à sobremesa de um qualquer restaurante da cidade, a turvar-lhe o raciocínio? Não! À semelhança do que aconteceu na semana passada, a resposta é dada no penúltimo parágrafo da prosa.

Branquinho está, apenas, preocupado com o regresso de Pedro Burmester à Casa da Música. Cito: "O primeiro teste a este ambiente de consensualidade em torno da Casa da Música será a nomeação do director artístico. Aí se verá se a opção será por uma personalidade que não volte a criar um clima de crispação e que permita que o projecto se afirme e recolha, sem reservas, o apoio de diferentes sectores da sociedade."

E sugere, sem o escrever abertamente, o apoio que Jorge Sampaio deu ao pianista na noite de S. João, no Porto, em 2003. "Pela validade e pertinência de Pedro Burmester, perder-se-ia menos com a saída de Rui Amaral" (primeiro presidente do Conselho de Administração da Casa da Música. Sim, o que queria um elevador directo para o gabinete), afirmou, na altura, o presidente da República confrontado a ira de Rui Rio e respectivo séquito.

"Portugal é um país de “cunhas” e nem o presidente da República escapa a esse mal endémico. Oxalá que a “cunha presidencial” não contribua para mais polémicas sobre a Casa da Música.", conclui, depois de muito navegar, Agostinho Branquinho.

Se Pedro Burmester não regressasse (ou não regressar...) ficaríamos todos a perder. Perderia o projecto (que só ele delineou ao pormenor), perderia a cidade e o país. Mas, depois de tudo, depois de todos os insultos e injustiças, depois de todos os impasses e manifestações de falta de coragem do actual Ministério da Cultura, quem é que ainda merece o regresso do pianista? Quem é que verdadeiramente merece que continue a deixar as partituras em segundo plano?

Anthony Withworth-Jones (director artístico britânico nomeado para a Casa, em Fevereiro do ano passado, sem que nunca alguém tivesse percebido porquê), confessou, em entrevista ao Público, anteontem: "Não sei muito bem o que queria que a Casa da Música fosse. Quando cá cheguei, não tinha ideias feitas."

Burmester tinha as ideias todas. As que lá estão, e as que destruíram. Valeu a pena? Ainda vale a pena dar pérolas a porcos?

quarta-feira, novembro 09, 2005

Oportunistas


Ainda não é líquido que o país esteja rendido ao salvador da pátria, materializado na figura de Cavaco Silva. Mas os jornalistas (uma fatia gorda, pelo menos), não podiam estar mais subjugados aos encantos (?!) do professor que recusa a etiqueta político profissional".

"A agenda de Cavaco Silva", 246 páginas acabadinhas de editar pela Oficina do Livro, e cuja autoria pertence ao jornalista Vítor Gonçalves, é disso a prova. Merece ser folheado porque não é um livro. Não chega a ser uma análise, apesar da sucessão de análises publicadas. É pouco mais do que nada. É pouco mais do que a certeza de que qualquer coisa com a chancela "Cavaco" venderia, neste momento, sempre muito bem.

Podia ser só uma compilação das suas comidas preferidas. Mas é um concentrado das comunicações do candidato à Presidência da República, ao longo de cinco anos, de cada vez que entendeu pronunciar-se aqui e ali. E os cromos do costume estão todos lá, amplamente citados: Luís Delgado e afins. E só Carlos Magno, por incrível que pareça, e por muito que me custe admiti-lo, questionou - ele lá saberá porquê -, no curso do tempo, as afirmações, com ênfase científica, proferidas por Cavaco Silva.

Rui Rio no reino do ego insuflado


Alguém devia ter a generosidade de explicar ao doutor Rui Rio que o poder conferido pela maioria absoluta conseguida nas últimas eleições autárquicas não é extensível ao mundo em geral. Não é, definitivamente, passível de ser estendido à Comunicação Social. Uma coisa (já, por si, suficientemente grave), é mandar nos vereadores, cerceando-lhes a mais elementar das liberdades: exprimirem-se; outra coisa, bem diferente - e bem mais grave -, é achar que pode, só porque sim, só porque lhe apetece, só porque deve achar que cada um em sua casa é rei, embora a sua casa não seja a casa de todos, reescrever os manuais de jornalismo e deontologia. Sobretudo reescrever, questionando sem fundamentar, a ética individual de cada jornalista. Mas, bem vistas as coisas, onde está a novidade? Há quatro anos, fê-lo com os jornalistas do Público; agora fá-lo com os jornalistas do JN. Será de louvar-lhe o espírito de equidade?!...


Alguém devia explicar-lhe, também, que em situação alguma (mesmo num caso de raiva extrema) um presidente de Câmara deveria permitir que a página institucional da autarquia (http://www.cm-porto.pt/), que, supostamente, existe para prestar informações aos munícipes, possa transformar-se num panfleto reaccionário, onde se questionam critérios editoriais e - pasme-se! -, a fotogenia do próprio presidente. Deveriam os jornais usar o photoshop para lhe melhorar a aparência?!


E depois, tudo isto, no rescaldo da entrevista concedida ao Primeiro de Janeiro (http://www.oprimeirodejaneiro.pt/), a 30 de Outubro (o mesmo dia da entrevista ao JN), na qual Rui Rio assegurava ter feito as pazes com os jornalistas, tem muita piada. E nós que achávamos que ele nunca mais ia ligar ao Balsemão para reclamar do painel de comentadores....

quinta-feira, outubro 27, 2005

Acabaram com a Grande Reportagem

Miguel Sousa Tavares criou o monstro: uma publicação mensal notável, premiada, com excelentes reportagens. Escritas e fotográficas. Daquelas que se coleccionam e nunca se deitam fora quando se varrem as tralhas lá de casa. Foi assim a Grande Reportagem durante dez anos. Francisco José Viegas - pobre na sucessão -, transformou o monstro num mito. Enquanto dirigiu a publicação, nunca tanta gente deve ter evocado, com nostalgia, o nome de MST.


E depois, porque não há duas sem três, em 2003, a GR foi transformada numa revista semanal, distribuída ao sábado, com o JN e o DN. Joaquim Vieira não recuperou o monstro, porque, na vida, nunca há atalhos para o passado. Suportando o peso do título, transformou-o na única publicação que, em Portugal, ainda fazia jornalismo de investigação. Jornalismo acutilante e isento. Jornalismo sério e quase, como antigamente, coleccionavel.
Foi despedido. E não foi despedido, apenas, porque a GR será enterrada em Dezembro. Foi despedido com carácter de urgência. Como quem é despejado de casa por dever a renda há vários meses. Como se a imparcialidade, nos dias que correm, tivesse que ser, forçosamente, alvo de punição. O que surpreende não é o despedimento ou o enterro da GR. Feliz ou infelizmente, já somos todos demasiado crescidos para acreditar mais em contos de fadas do que no poder do lucro (e não só) - única meta dos grupos que detêm os media. O que surpreende e quase causa angústia, é que não tenha havido qualquer onda de protesto. Que ninguém tenha simplesmente questionado o funeral...


Parece que estamos, definitivamente, condenados a viver no reino das mulheres nuas do 24 Horas... num país nivelado por baixo.

Avelino Ferreira Torres

Catch me
if you can

(Reportagem de Helena Teixeira da Silva publicada na Grande Reportagem a 7 de Outubro de 2005)

Não há nada de que não seja acusado. Ou quase nada. “Nunca me acusaram de matar, nem de droga, nem de pedofilia”, contraria, irónico, Avelino Ferreira Torres. “E ninguém me pode acusar de não ter trabalhado pelo Marco”. O Marco é Marco de Canaveses, concelho do interior, com 52 mil habitantes, que dificilmente seria conhecido se não fosse o invulgar mediatismo do seu presidente de Câmara, na recta final de uma maratona que dura há 23 anos. Este ano é candidato independente à autarquia de Amarante, sua terra natal. “Procuro ser justo. E na minha consciência nada me pesa. Digo isto com sinceridade”, sublinha, na sede de campanha, numa voz pausada acompanhada de gestos calmos, longe da impetuosidade que lhe é comummente atribuída.

Não lhe pesam, portanto, as acusações de peculato, de abuso de poder, de suborno a um inspector do IGAT, de promiscuidade entre a política e o futebol, de falências fraudulentas, de falsificação de documentos e desvio de fundos comunitários, de alteração do Plano Director Municipal para sobrevalorizar terrenos que, alegadamente, comprou ao desbarato. Alheio às acusações que sobre ele pendem, Ferreira Torres, 60 anos completados a 26 de Janeiro, avança uma explicação inédita: “Acredito piamente na justiça divina. E acredito muito em karmas. Acho que estou aqui a pagar por alguma coisa que familiares meus do passado fizeram. Um dia, expliquei esta minha teoria a um padre. E, passado algum tempo, ele disse-me que tinha lógica”.

O fardo, fruto daquilo que diz ser “uma perseguição política”, não parece preocupá-lo. “Há vinte anos que andam a dizer que vou ser preso e continuo aqui. Só tenho sido condenado a dar algumas esmolas”, afirma, numa referência aos advogados que o defendem. “Não me preocupo: eles vivem disso, e eu tenho nojo ao dinheiro. Só gasto o indispensável, porque vim do nada, de uma família pobre com 17 irmãos e nunca me esqueço disso. Cumpro à risca o evangelho”.

Mas Ferreira Torres, cuja incursão na vida política, em 1983, fica a dever-se a Vieira de Carvalho, falecido presidente da Câmara da Maia, não foi só condenado a dar esmolas. Este ano foi condenado num processo de peculato a três anos de prisão, em fase de recurso, e é um dos 171 arguidos no caso “Apito Dourado”.

Uma vez mais, o autarca, perspicaz no malabarismo com os temas que lhe poderiam provocar desconforto, desvaloriza a colecção de processos com um exercício de memória que o remete para a primeira vez que foi a tribunal, tendo sido condenado a pena suspensa. “Sou condenado porque sou sério”, observa. “Há uns anos, um jornalista do semanário “O País” fez-me uma entrevista sobre o assassínio do meu irmão, e eu disse o que sentia. Disse que sabia quem o matou. Ele publicou e o Ministério Público moveu-me uma acção pela gravidade daquelas afirmações. Podia ter entalado o jornalista e dizer que ele escreveu coisas que eu não disse. Mas não o fiz. Mantive aquilo que disse e fui julgado por isso. Por ser sério”, insiste.

O caso da morte de Joaquim Ferreira Torres, presidente da Câmara de Murça, assassinado em Paredes, a 21 de Agosto de 1979, quando conduzia um Porsche vermelho, prescreveu em Agosto de 1994, sem que nunca tenha sido encontrado o autor do crime. Ferreira Torres teima que sabe quem puxou o gatilho. “Eu já tinha uma pontinha de investigador, mas a partir deste caso, passei a perceber todas as golpadas que os investigadores fazem. Não descobriram o assassino do meu irmão porque não quiseram. E eu, como não tenho espírito para matar, voltei à minha vida normal”. Não tem espírito para matar, mas sabe que há quem acredite que recruta equipas para bater em determinados inimigos. “É mentira. Sou incapaz de, premeditadamente, fazer um ajuste de contas. A canalha vem oferecer-se para bater, mas eu nunca aceito. O meu staff sou eu. Não mato sequer um insecto insignificante”.

O rasto das acusações entregues na Procuradoria Geral da República no curso dos últimos anos contra Avelino Ferreira Torres – a maioria da autoria de Gil Mendes, secretário da Junta de Freguesia de Ariz, eleito pelo PSD -, poderia ter-se dissipado do circo público, se não fosse José Faria, ex-testa-de-ferro do autarca e funcionário da Câmara do Marco de Canaveses, ter tentado matar-se com um tiro na cabeça em Agosto deste ano. “Comecei a ficar tolo”, afirmou numa entrevista exclusiva ao 24 Horas, poucos dias depois de ter tido alta do Hospital de S. João, no Porto, onde esteve internado uma semana. José Faria confessou ter perdido a cabeça devido à procuração irrevogável passada por Avelino, em 1990, e com a qual comprou e vendeu tranquilamente dezenas de propriedades, até ser notificado pelo Fisco para pagar 60 mil contos. À banca diz que deve mais de 300 mil contos. “Aquele dia não era para ser assim. Eu hoje podia estar na cadeia”, disse o trabalhador municipal, que aufere cerca de 550 euros mensais. A revelação será, apenas, a ponta de um iceberg que o funcionário - entretanto aconselhado pelo advogado Pragal Colaço a não prestar mais declarações à Comunicação Social - parece determinado a não continuar a encobrir.

Mas sobre o acto tresloucado do seu ex-colaborador, Ferreira Torres não quer falar. “Só posso dizer que não me vou atirar a ele, ao contrário do que as pessoas dizem. Rezei muito e sempre soube que não ía morrer.”, assegurou ainda antes da alta de José Faria. Reconhece ainda que lhe comprou alguns terrenos, uma vez que o funcionário possuía uma imobiliária, e que tem documentos que provam que José Faria lhe deverá muito dinheiro. De resto, visitou-o duas vezes no hospital e achou que ele “está doente”.

“Sou impulsivo, mas choro com muita facilidade. As pessoas não me conhecem e a culpa é dos jornalistas que não olham a meios para atingir os fins - fins políticos e encomendados. Fico magoado com a imagem que passam de mim. Como é possível dizerem-se atoardas a meu respeito quando são totalmente mentiras?”, questiona indignado. Hoje, já não lê jornais para “conseguir levar a cruz ao calvário”.


Avelino Ferreira Torres, admirador de Marquês do Pombal e devoto de Santa Teresa de Lizier, em França, onde ruma todos os anos a 1 de Outubro, é o décimo quarto filho de Manuel Nunes Ferreira e Ilda Ribeiro Torres, ambos falecidos. “Não me lembro do dia em que a minha mãe morreu, porque não sou bom a fixar datas. Mas ela era impecável. Não nos deixava andar sujos. A roupa era sempre limpinha. Quando havia um rombo, ela ia buscar umas calças velhas que dissessem mais ou menos com aquelas e cozia”, emociona-se.
Nasceu na freguesia de Rebordelo, em Amarante, onde está a reconstruir a casa onde nasceu, e é lá que tenciona iniciar a campanha eleitoral. “Não sou nenhum pára-quedista. Vivi cá até aos 15 anos e nunca me esqueci das pessoas. Entendo que devo dar aqui o mesmo que dei noutras paragens”, argumenta.

Numa família numerosa, cedo sentiu a necessidade de começar a trabalhar. Primeiro numa empresa de abate de madeira, depois a guardar rebanhos nas serras. Aos 15 anos, Joaquim, irmão mais velho e mais rico, leva-o para Rio Tinto, onde residia, e lança-o no mundo empresarial. Ele agarra a oportunidade e, oito anos depois, torna-se presidente do Sport Clube de Rio Tinto. No mesmo ano, casa com Rosa dos Santos Cunha, que conhecera entretanto. Aos 24 anos regressa ao Marco, para associar-se aos irmãos Rodrigo e Manuel na gestão de uma serração. A partir daí, os negócios sucedem-se e sobrepõem-se a uma velocidade inimitável.
No início dos anos 80, abre a sua própria serração e multiplica o ramo empresarial: confecções, tipografias, jornais. Algumas fábricas acabaram por fechar, falidas ou ardidas. Os encerramentos, considerados suspeitos, deram origem a um processo por falência fraudulenta, num caso; e suspeita de fogo posto, no outro. A primeira acusação, referente às Confecções Ferreira Torres, falidas em 1996, foi formalizada no início de Setembro pelo Ministério Público.

Quando regressa ao Marco, Ferreira Torres começa também a investir dinheiro no clube da terra, o Futebol Clube do Marco. A dedicação acaba por conduzi-lo à presidência do clube, que se orgulha de ter colocado na II Divisão Nacional. No fim da década de 90 já integra o Conselho Nacional de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol. A política autárquica seria o passo seguinte. Em Setembro de 1983, o Executivo de coligação PSD/PS renuncia o mandato numa altura em que ele está no hospital a recuperar de uma operação ao estômago. “Nunca acreditei que pudesse ficar bom. Estava lá a preparar a minha morte quando o professor Vieira de Carvalho, numa visita, disse que queria que eu me candidatasse à Câmara do Marco”, recorda. Os médicos desaconselharam-no e ele interpretou a opinião como uma sentença de morte. “A minha mulher viu-me tão triste que, para me animar, disse que devia ser candidato”. Em Outubro desse ano, Ferreira Torres concorre pelo CDS e vence com maioria absoluta. O resultado repetiu-se até 2000. E ele sente que cumpriu a missão.

“Dou apenas um exemplo: Amarante tem um pavilhão gimnodesportivo; o Marco tem 10. E ainda vou inaugurar mais dois antes de ir embora.” Acredita que se “não fossem as vitórias políticas, não tinha inimigos. Ganhei sempre a Câmara por um partido pequenino. Mas nunca me deram ordens. Eles sabiam que eu não sou um “Yes man”. Eu respeitava os presidentes, fossem eles quais fossem, e eles respeitavam-me a mim e à minha autonomia. Se me perguntarem: está arrependido de ter sido do CDS? Não, não estou, porque me deixaram ser livre. O PS e o PSD não deixam os seus autarcas serem livres. Impõe-lhe regras e é por isso que Amarante não evoluiu nestes 16 anos”, sentencia.

Manuel Monteiro, ex-líder do CDS, diz guardar boas recordações do autarca. “Sempre recebi dele um tratamento de grande respeito e consideração”. Quanto às acusações que sobre Ferreira Torres pendem, afirma que não lhe compete pronunciar-se. “O que se passa em Portugal, de um modo geral, é de uma gravidade tal, que resumir a questão ao Avelino é tentar tapar o sol com a peneira. Aos políticos convém encontrar bodes expiatórios para que outras situações menos mediatizadas passem incólumes. Quantos candidatos a deputados têm problemas judiciais?”, questiona. E acrescenta: “O que está a acontecer com a complacência das autoridades máximas do país e o silêncio do Presidente da República é gravíssimo. É urgente lançar um debate para se saber o que é que deve prevalecer: a lei ou a suspeita? Perante a lei, todos são inocentes até prova em contrário. Mas se prevalecer o bom senso político, as pessoas não devem ser candidatas quando sobre elas há suspeitas de foro judicial. Mas enquanto os políticos continuarem a beneficiar do quadro de imunidade tudo isto vai, infelizmente, continuar a acontecer”.


23 anos depois de “uma gestão despesista”, que levou a autarquia marcoense a uma situação de pré-falência, Filipe Baldaia, candidato à Câmara do Marco pela CDU, acusa o autarca de “75% do concelho continuar sem rede de abastecimento de água e 80% não ter saneamento”. A água que foi, recentemente, entregue a uma empresa privada, “é a mais cara do país e a segunda mais cara da Europa. O Marco cresceu, apenas, em betão e em número de habitantes; não teve um desenvolvimento equilibrado nem sustentado”. Os dados do Ministério da Educação corroboram a crítica: Marco de Canaveses é o quinto concelho do país onde se regista maior abandono e insucesso escolares – o equivalente ao dobro da média nacional.

Luís Almeida, engenheiro civil e candidato socialista ao Marco, encontra uma virtude na transferência de Ferreira Torres para Amarante. “Vamos passar os próximos vinte anos a pagar a dívida que ele deixou, mas aqui vivia-se um clima de medo. E agora as pessoas libertaram-se das amarras. A prova é que foi criada uma comissão de utentes para protestar contra o aumento da água, entre quatro a oito vezes mais caro do que o dos municípios vizinhos. A 3 de Agosto houve uma manifestação com 2500 pessoas a reclamar na rua. Antigamente, isso seria impensável”.

“Com a saída dele, fecha-se um ciclo”, completa Manuel Moreira, cabeça de lista do PSD. “A partir de agora, é importante que o concelho seja falado e conhecido pelas coisas positivas”. Só Norberto Soares, candidato pelo CDS – conhecido no meio como o “delfim” de Ferreira Torres, cujo filho, é número dois na lista -, não comunga desta avaliação. “Quem conhecia o Marco, e quem o conhece hoje, percebe que houve uma alteração muito grande no seu desenvolvimento urbanístico, empresarial, económico e social”. O mérito, ressalva, “é também da determinação de algumas pessoas da sociedade que encontraram aqui uma oportunidade para desenvolverem a sua economia”. Quanto ao antecessor, é taxativo: “É um lutador, um homem determinado a alcançar os objectivos a que se propõe. Luta pelos seus ideais até à última gota”.

A caracterização tem, pelo menos, um discípulo. “Acredito no Avelino e acho que ele é o homem certo para Amarante, neste momento”, afirma António Pedro, 61 anos, director do jornal “O Tribuna de Amarante”, garantindo que não confunde a sua opinião com a opinião do jornal. “Qualquer um pode escrever o que lhe apetecer no jornal, desde que não insulte ninguém”. O jornalista lamenta, no entanto, “a campanha caluniosa” a que está a assistir-se em Amarante. “Todos andam a caluniar o Avelino, chamam-lhe assassino, e ele não calunia ninguém”.

De resto, Ferreira Torres rejeita todas as acusações, incluindo a de ter enriquecido, deixando a Câmara do Marco à beira do colapso financeiro. “Isso é uma estupidez. A situação está perfeitamente dentro da lei. Atravessamos algumas dificuldades quando a ministra Manuela Ferreira Leite esteve no governo, porque estávamos a contar ir buscar um milhão e 300 mil contos, previstos na lei das finanças locais, e ela cortou essa possibilidade. Mas há males que vêm por bem, porque a lei prevê o reequilíbrio financeiro e foi o que nós fizemos. Entretanto, os juros baixaram, e conseguimos uma verba muito maior e pouco mais está a pagar-se por mês”.

Em relação ao património pessoal, assegura que o cenário é mais grave: “Se me quiserem pagar as minhas dívidas ou dar-me 200 mil contos, eu dou tudo o que tenho. Só quero ficar com a minha casa”. E, já agora, com a Quinta de Segoiva, em Tuías, o seu já designado “sonho jamaicano”. “Vai ser uma estalagem de cinco estrelas, mas está a ser mais cara do que eu julgava”.

Gil Mendes, que desde de Maio de 2003 envia cartas ao Procurador Geral da República, com provas contra Ferreira Torres, tendo, inclusivamente, sido já agredido por ele, não acredita em nada do que o autarca diz e acusa-o “de acreditar nas próprias mentiras”.“As autoridades deixaram criar este monstro e agora não o conseguem agarrar. Depois de tudo o que foi tornado público, se Ferreira Torres não for preso até ao fim do ano, é porque este sítio onde vivemos é um país de bananas”, desabafa.

“Ele é um homem perigoso, que não respeita as leis. Os dados que estão na posse dos magistrados já são suficientes para o prender. Mas ninguém o faz, porque ele goza de total impunidade”, retorna Luís Almeida. “Há dias, um homem forte da Polícia Judiciária confessou a um amigo meu que se o Avelino perder as eleições em Amarante, irão prendê-lo. Se ganhar, será muito difícil. Ou seja, neste país só é preso quem perde as eleições do Benfica ou da Câmara”.
Recusando resignar-se, José Adelino Maltez, professor catedrático de Ciência Política, no ISCSP, em Lisboa, diz ter, apesar de tudo, “esperança na resolução de casos como este”. “A democracia portuguesa viveu a doce ilusão de que não havia grupos de interesses e viveu na clandestinidade em relação a financiamentos partidários. Ou seja, a culpa disto tudo, foi a hipocrisia generalizada, que não quis assumir que havia corrupção. De repente, rebentou a rebeldia, que não produziu qualquer golpe de Estado, mas um desencanto colectivo. O grave não é haver denúncias; grave é que estes autarcas continuem a ganhar”. E esclarece: “Avelino é o ramo de uma árvore; o problema está na floresta”.


“Nunca aceitaria trabalhar com um candidato como Avelino Ferreira Torres”, garante António Cunha Vaz, especialista em comunicação e imagem, responsável por inúmeras campanhas nacionais e regionais. “Em primeiro lugar, para aceitar, teria que acreditar no candidato, nas suas ideias, na sua forma de estar na vida e ele teria que cumprir alguns princípios da nossa consciência democrática. Em segundo lugar, não acredito em mandatos em número ilimitado nem numa democracia de base populista”. Cunha Vaz, que assina a campanha de Carmona Rodrigues, em Lisboa, vai mais longe na sua sentença: “Numa democracia madura, ele nunca poderia ser candidato. Ele não gere a sua imagem; cria ilusões com viagens de helicóptero, que só se compadecem com um tipo de eleitorado menos esclarecido. O único trabalho sério que poderia fazer com ele seria retirá-lo da política e dizer-lhe que fica bem em programas como a “Quinta das Celebridades”.

A Quinta das Celebridades, reality-show emitido pela TVI, contou justamente com a presença do autarca na última edição. “Tenho consciência que os responsáveis pelo programa me queriam ver lá, porque achavam eu ia chatear o Alexandre Frota, o Castelo Branco, o jet-set, e dar umas bofetadas a quem se portasse mal. Mas saiu-lhes o tiro pela culatra”, conta Ferreira Torres. A experiência foi “positiva” porque ficou “amigo de todos, sem impostorice”, e porque diz não ter recebido um tostão. “Estive lá 17 dias. Assinei um contrato que dizia que uma metade do cachet era para a CERCI do Marco e a outra metade para a CERCI de Amarante. Não sei quanto dinheiro foi, mas admito que tenham sido alguns milhares de contos”.

A generosidade de Ferreira Torres que, ultimamente é estendida às associações de Amarante, a quem tem entregue cheques com quantias generosas, não convence João Magalhães, ex-presidente dos Amigos do Marco, Associação que fundou em 1998 em nome da liberdade de expressão. “Ele não engana ninguém. A primeira vez que ganhou as eleições no Marco, fê-lo destruindo o outro candidato com comunicados anónimos. O estratega da campanha é o mesmo de hoje, Sanhudo”.

Sanhudo Portocarreiro, cujo nome verdadeiro é António Monteiro Novais, cortou relações com Ferreira Torres pouco depois destas eleições, transformando-se num dos seus piores inimigos. Em 1996, chegou mesmo a enviar uma carta ao Procurador Geral da República denunciando: “Vive-se neste concelho um clima perturbado com desvios de milhares de contos, compras de mansões e quintas, restauradas no Marco e em Vila de Conde, por pessoal ligado à autarquia e com ameaça de despedimento a diversos funcionários que não acatem pontualmente as ordens do presidente. O mesmo presidente e alguns funcionários qualificados que actuam sobre pressão e grandes ameaças, vêm danificando documentos, actas e falsificando outros”. E solicitava: “Peço sigilo, pois trata-se de um homem desnorteado e até perigoso”.

Antes desta carta, já Sanhudo tinha elaborado um documento a que chamava “Concurso – Para tirar o Marco do anonimato cultural”, cujas questões não passavam de denúncias cifradas sobre a conduta de Ferreira Torres. “Quem mandou telefonar uma madrugada ao Sr. Eulalio Fonseca de Amarante ameaçando-o de morte, em nome dos Guerrilheiros de Cristo Rei? Quem trás do estrangeiro microfones ultra-sensíveis e secretos para devassar conversas? Quem foi ao jornal Comércio do Porto ameaçar o director? Quem é que compra capangas no Porto a onze contos para bater a A ou a B? O rol de perguntas era interminável, mas alguns anos depois, António Novais negou ser o autor de tudo. Em 2000 assinou a laudatória biografia de Ferreira Torres “O homem. O presidente”, e hoje é, garante João Magalhães, “assessor da Câmara com um salário de 500 contos, sendo a mulher também funcionária municipal”.

“Ferreira Torres sabe que a maioria das pessoas tem um preço. E ele vai até ao preço certo”, retorna o socialista Luís Almeida. João Magalhães, alvo de um processo de difamação agravada colocado pelo autarca do Marco, e do qual foi absolvido, cansou-se de lutar e desistiu. “O sistema não funciona. A minha família viveu anos terríveis por eu ter exercido o meu direito à cidadania, que só serve para desenvolver inimigos nos interesses instalados. E ninguém nos defende: nem a justiça, nem a polícia, nem os partidos, que só incentivam ao silêncio e à prática camaleónica”.

No hall de entrada da sede de campanha de Avelino Ferreira Torres, em Amarante, um homem calvo agarra-lhe no braço e sussurra-lhe: “Veja lá, senhor presidente, o que pode fazer por mim”. O autarca, que diz ter “duas formaturas: a da vida e a de gestão de empresas”, e que diz gostar de reconciliar casais nas horas livres, acena afirmativamente coma cabeça. “Não sou cinzento. Não gosto de dizer não. Mas quando é para dizer sim, gosto que digam logo. Não vale a pena gastar muita saliva quando a meio da conversa já percebi o que as pessoas querem”, explicaria mais tarde.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Paula no país das maravilhas





















Com duas exposições simultâneas - em Serralves, no Porto, e na Tate, em Londres -, acentuando a sua dupla nacionalidade luso-britânica, Paula Rego é, aos 69 anos, uma das mais consagradas pintoras do nosso tempo. Com a mostra portuense a bater todos os recordes de afluência de público, visitamo-la no atelier londrino para uma retrospectiva de vida e uma introspecção aos medos e fantasmas que fazem da sua obra um caso único na arte contemporânea.

"Tu és uma inconsciente", gritava-lhe a mãe. "Ó Maria Paula", insistia, ampliando ênfase e volume, "tu és uma inconsciente. Fazes as coisas e depois ficas toda aflita". Ela, a Maria Paula, criança inquieta, com um mundo maior dentro da cabeça do que fora dela, embaraçada, sentia-se a diminuir de tamanho, qual Alice no país das maravilhas a encolher para entrar na porta enigmática do jardim mágico. "Tinha medo", diz a juntar as palmas das mãos, os olhos pendurados no ar. "Ai, Jesus, tinha tanto medo. Medo de tudo". E tinha oito anos. Hoje tem 69. O tempo levou-lhe muita coisa. "O medo? Já não tenho tanto", confessa, aliviada. "Mas ainda existe. Agora é mais medo de coisas concretas. Medo dos ataques, das pessoas drogadas, que não fazem mal senão a si próprias, mas assustam. Medo de voltar para casa à noite sozinha".
Maria Paula é Paula Rego. Provocadora incansável. Perturbada e perturbadora. Pintora da solidão e do desespero, da frustração e do desejo, da liberdade e do encarceramento. Da melancolia. Da infância atravessada pela maturidade. Influencida pelo surrealismo e, de certa forma, pelo dadaísmo, ela pinta o pecado que imagina, o arrependimento, o purgatório, a moral e a falta dela. Em figuras ambíguas, meio humanas, meio animais, meio bonecos, meio coisas que só ela saberá, denuncia o país de que se lembra quando era ainda demasiado pequena. O Portugal da mulher submissa, manipulada, da mulher sem norte, da mulher dona de casa. E, ao mesmo tempo, da mulher erótica, misteriosa, inabalável. Constrói e destrói a História numa dialéctica motorizada pela imaginação, numa encruzilhada de metáforas para as quais só ela conhecerá a chave exacta. É a voz de quem não teve voz. A voz da consciência e da transgressão que, não raras vezes, emerge da força sexual das suas personagens. Paula Rego é um coelho. É uma formiga-rabiga. É a mulher-cão que rasga as convenções e explode em narrativas densas, carregadas de tudo menos inocência.
"O que eu pinto é triste? É cru?", interroga-se. "Acho que não. Pinto a verdade. A Guerra Colonial existiu e foi uma vergonha. Faziam-se festas e, no fim, andavam aos pontapés às cabeças dos indígenas. As mulheres, em 1950, tinham vidas tenebrosas. Na Ericeira, de que eu gostava tanto, havia uma mulher, à noite, a gritar lá em cima, no moinho, porque o marido batia-lhe. Chegava a casa bêbedo e batia à mulher, que tinha filhos após filhos, após filhos. Ela dava-os à luz no moinho e criava-os completamente sozinha. Mas ele morreu e ela ainda ficou ali, rija, toda tesa. Isto é triste? Acho que não. Quis mostrar a força extraordinária de mulheres como esta."
A artista, a viver ininterruptamente em Inglaterra desde 1974, tem agora duas exposições nos países que lhe conferem dupla nacionalidade. Em Portugal, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, exibe até 23 de Janeiro de 2005, uma retrospectiva com 150 trabalhos - o relato de um percurso que começa em 1966 e termina com o recente A Mulher dos Bolos, já de 2004. A mostra, que em pouco mais de um mês contou com 60 mil visitas, bateu todos os recordes da instituição. Superou Francis Bacon, Andy Warhol e a exposição In the Rought, no Porto 2001. Foi a inauguração, a semana e o mês mais concorridos de sempre. Só a semana de abertura registou mais de 30 mil entradas, valor nunca antes experimentado por outro artista. "Tem estado lá muita gente, é?", pergunta de olhos a brilhar, com o ar doce de uma infantilidade que parece nunca ter perdido, a preparar dois cafés no seu gigantesco atelier londrino, em Rochester, próximo do folclore de Camden Town.
O número grosso de visitas parece surpreendê-la. "Nunca pensei. Mas fico tão contente. Nunca fui tão bem tratada como no Porto. Nunca vi os meus quadros tão bem distribuídos como em Serralves. É uma maravilha. Não existe cá nenhum espaço com aquela elegância. É o sítio mais bonito onde jamais expus."
Londres, que reclama a artista como sua, e uma das suas melhores, concentra na Galeria Tate Britain, em simultâneo, outra série de quadros seus, arrancando nos anos 60 - época das obras mais políticas e das colagens -, e terminando com o inédito, também deste ano, The Pillowman. Logo à entrada, um documentário conduzido por Robert Hughes, o conceituado crítico de Artes Plásticas da Time, autor, entre vários livros, de O Choque do Moderno (também uma série de TV), apresenta a mulher e a obra. "Ele teve um desastre de automóvel, quase morreu e depois recuperou", conta Paula Rego, invertendo os papéis, apresentando o homem que a apresentou. "Vive na América, e a primeira coisa que fez, depois de ficar bom, foi vir cá falar comigo. Não sei como me descobriu, mas demo-nos bem. Gosto bastante dele. Escreve muito bem. Escreveu um livro sobre Goya, que é uma maravilha."
Em Portugal não há documentários, nem uma mesa-redonda para discutir o trabalho da pintora, como a que aconteceu esta semana na Tate, nem haverá uma visita guiada pela própria, como a que está lá agendada para 8 de Dezembro. "Não se fez nada, mas a culpa é minha", redime-se. "Houve várias estações de televisão a pedir para vir cá, mas eu não deixei vir ninguém de Portugal entrevistar-me. Estava a trabalhar furiosamente e não queria cá confusões. Além disso, já toda a gente me conhece tão bem, não é? Não preciso estar sempre a dizer quem sou." Talvez não. Ela agradece o reconhecimento. "Ser conhecida é bom, claro. E vender ainda é melhor" -, mas gostava de fazer um quadro que deixasse as pessoas na dúvida, "fazer uma coisa como se fosse outra pessoa". Diz que não quer ser o Louis Vuitton das artes plásticas: "Não se pode fugir à mão de quem pintou o quadro, mas ter assim as malas carimbadas com as iniciais do nome é muito feio." E faz uma cara feia.
Londres compromete a expectativa: a chuva ameaça cair a qualquer momento; o termómetro não passa dos oito graus. "Estou aqui desde as nove da manhã; só depois de tomar café começo a acordar", diz com o riso estagnado que a caracteriza. Trabalha todos os dias, excepto ao Domingo. "Mas trabalho melhor das três da tarde em diante. Nem sempre estou bem disposta. Às vezes, estou com neura, mas isso não me trava. A prática é muito importante", reconhece. "A inspiração é precisa para ter ideias, mas a parte artesanal constitui 90 por cento do resultado final."
Os cafés, a ferver, misturam-se numa mesa onde abundam latas vazias de Coca-Cola Light, galos de Barcelos, peças de barro preto de Bisalhães (Trás-os-Montes), a boneca da "Soberba", que integra a série dos sete pecados mortais esculpidos pela já falecida Rosa Ramalho, e um CD de Mariza. "Somos amigas. Gosto imenso dela". Paula Rego gosta de ouvir música enquanto pinta. As referências espalham-se pelo chão: muito fado, muita ópera. Mas também Madonna, Bob Dylan e a banda sonora de Habla con Ella, de Pedro Almodôvar, o seu realizador de eleição.
"Trouxe muitas coisas de Portugal, mas também há coisas que compro aqui", ressalva. "Temos cá mercados muito giros. Volta e meia, apesar de não ter muito tempo, vou lá." Cada objecto tem uma história. Um dia interio não chega para todas elas. "Olhe estes vestidos, sabe onde é que os comprei?" E lá vai ela, expedita, retirar das cruzetas vestido a vestido. "Na Royal Opera House, o equivalente ao S. Carlos. Às vezes, eles vendem fatos, e veja que bem feitinhos que estão." E lá estão eles, devidamente agasalhados num varão atolado de uma parede à outra, os trajes de A Casa da Celestina, de La Fête, de A Pata Portuguesa, de A Gata Nicotina. "Este aqui (aponta para um cor de laranja) não gosta de mim, nem eu dele. Nunca o consigo pintar. De resto, isto para as minhas netas é uma perdição. Aquele capuchinho vermelho foi usado pela minha neta Grace, que posou para mim. Esteve sempre quietinha. Muito, muito bem", remata a verter orgulho.
The Pillowman e A Mulher dos Bolos, a residir temporariamente em cidades diferentes e distantes, são duas faces da mesma realidade: a pedofilia. "Não posso falar muito do quadro, porque também não sei muto bem o que aquilo é. Acho que as figuras são portuguesas. Representam o Estoril, mas não têm, francamente, nada a ver com o Estoril, nem com as coisas políticas ou outras que lá se passem. É como se fosse uma representação encenada lá: o farol que se vê lá atrás, em A Mulher dos Bolos, é o lado de lá da praia; o outro, do Pillowman, é o lado de cá."
O tríptico The Pillowman (O homem da almofada) é uma peça de teatro extremamente cruel, de um jovem dramaturgo inglês de 31 anos, Martin McDonagh. "Claro que não é inocente", assegura a pintora. "Eu estava muito consciente da polémica da pedofilia em Portugal quando pintei The Pillowman. Por isso é que deixei a braguilha das calças aberta." Arregala os olhos e faz uma expressão como se procurasse cumplicidade. "Estava muito consciente da possibilidade dessa associação."
À parte o tema que convoca, o quadro é inspirado, apenas, num dos muitos contos do dramaturgo. "Ele fala de uma menina que faz maçãzinhas todas recortadas com gilettes lá dentro e dá a comer ao pai. Depois, à noite, ela está a dormir e aquilo vem tudo por ali acima. É uma história muito macabra. Como é que ele consegue escrever coisas fantásticas daquelas aos 17 anos?"
Mas a história de The Pillowman, a cuja estreia ela assistiu no ano passado em Londres, é outra. "É a história de uma figura que ajuda as crianças a morrer para não terem vidas terríveis. As pessoas pensam nelas quando já estão crecidas, portanto não é uma coisa que está a acontecer naquele momento. É uma possibilidade. Aquilo é cheio de contradições, de coisas misteriosas, terríveis, cruéis. Mas tem um sentido de humor extraordinário. E tem qualquer coisa que me diz muito." O conflito? "Sim, talvez seja isso, mas não só. A minha pintura tem um lado muito político. É um político caseiro; não é o político dos ministros. É um politico de tudo o que acontece em casa das famílias. É lá que acontece tudo, nesses parlamentos tantas vezes autoritários."
Paula Rego pintou o dramaturgo porque pinta encenações. Sempre. A maioria de autoria própria. Mas não se limita a encenar. "Também faço os bonecos para a encenação, se não não vale. Primeiro façço os desenhos, mas, como isto depende muito das criaturas, às vezes não serve de nada fazê-los." The Pillowman, por exemplo, "é um edredão dentro de umas meias. Era para ser outra coisa, mas depois a minha neta veio cá e exclamou: "Oh, grandmother, it's so scaring!" E ela, que não gosta de contrariar nenhuma das cinco netas, mudou a expressão do boneco. "Às vezes", conta, "preciso de ajuda. Os bonecos são muito pesados, e tenho muitas dores nas costas. Sou capaz de passar aqui horas, dias inteiros a montar. Leva muito tempo, é uma coreografia muito complicada."
"Gostava que se acabasse de vez com o épatement geral e a necessidade de acontecimento teatral", confessou uma vez Ricardo Pais, director do Teatro Nacional S. João, no Porto, encenador que Paula Rego nunca pintou. Gostaria ela que se perdesse também essa noção de happening nas suas exposições?
O nome do encenador desvia-a da pergunta e atira-a para o passado com entusiasmo genuíno, só equiparável ao de uma criança. "O Ricardo Pais? Que saudades! Conheci-o aqui em Londres, no final dos anos 60, numa peça chamada Cais do Sodré (a partir de um texto de José Rodrigues da Silva), com um grupo de portugueses que andavam por aqui fugidos por causa das guerras coloniais. Era uma delícia." Pousa a caneca do café para esfregar as mãos e entrelaçar os dedos. "O Ricardo Pais, achei-o tão simpático, tão engraçado, nada pretensioso. Ele até me mandou um cartão agora, quando estive lá em Portugal, mas tenho a impressão que nem o vi. Aquilo era tanta gente (350 convidados oficiais na inauguração, a 15 de Outubro)!. Ele devia pôr esta peça do Pillowman lá no S. João." O encenador abrirá o próximo ano com Figurantes, de Jacinto Lucas Pires. "A sério? Tenho tanta pena de nunca mais ter visto nada dele. Conto voltar ao Porto em Janeiro. Vou tentar ver essa peça", promete.
Quanto ao happening, discorda do encenador. "É bom haver um grande acontecimento, que é - e começa a cantar, erguendo os braços - tarataran, tarantaran!" Descodifica: "Isto é para anunciar uma coisa que vai acontecer e na qual não se pode entrar sem se estar preparado, porque é preciso preparação para ver uma coisa especial. Depois, é preciso entrar, voltar lá muitas vezes, e aí sim, já é à vontade. Mas, no início, acho engraçada aquela fita toda." Volta a rir. Está sempre a rir. "Não estou não", apressa-se a desmentir. "Gosto é muito de falar." E fala, acompanhada por gestos largos e irónicos, das inaugurações londrinas. "As aberturas cá são cada coisa, tanto champagne, tantas bebidas. Desconfio que há gente que só lá vai para beber o champagne. Em Portugal também é assim?"
Paula Rego pinta encenações; não pinta sonhos, embora continue a sonhar, a ter pesadelos. Muitos. "Mas não tantos como na infância." Não os pinta para não os dotar de uma importância que diz não terem. "São efémeros. Não valem por si. O que trazem ao de cima é que interessa." Apesar da teoria, aparentemente fria, são eles os responsáveis pelo medo que nunca a abandonou completamente. "Sofre-se tanto", liberta. "Tive que fazer terapia para acalmar. Falo com uma pessoa, já mais velha, desde 1973, e está a resultar. He's a very kind man, uma pessoa boa. Não vale a pena querer encontrar explicações; eu só queria deixar de ter medo."
Pinta a dimensão sexual, mas não gosta de pintar nus. "Não gosto nada. Tenho vergonha. Sinto-me mais desconfortável do que a pessoa nua. É malcriado." A timidez não a prejudica, porque, garante, "tudo é sexual. Uma pessoa vestida pode ser profundamente erótica". E depois ironiza: "E têm menos pregas; são mais fáceis de pintar."
Os desenhos nasceram com Paula Rego. Mas, aos oito anos, houve qualquer coisa que não voltou a ser igual. "Fui fazer um retrato. Posei para o senhor lemerce, um belga refugiado no estoril. Fiquei muito quietinha para ele fazer o desenho e ouvia-o pintar. Fazia "hmmmmmm" e pintava. Estive a observar e pensei: "Aquilo não é como eu vou fazer. Não é não." Mas, nessa altura, fazia coisas e mostrava-lhe. "Fazia o Bambi. Fazia muitos Bambis, e ele gostava", afirma, inflamada com a recordação. Pára subitamente. Ajusta a objectiva da memória: "Bem, do primeiro ele gostou muito; do segundo já não gostou. E eu não percebia porque é que o segundo já não era tão bom." erde-se numa gargalhada e esconde o rosto como se ainda fosse aquela menina pequena, cheia de inconsistências. "Foi uma coisa que sempre me fez muita aflição, não saber se as minhas coisas são boas ou más. Ai, Jesus, ainda hoje sou assim."
Nessa idade, de colo, a voz aquecida do pai, engenheiro electrotécnico, narrava-lhe A História da Raposa, O Inferno, de Dante, O Crime do Padre Amaro ou histórias de Guerra Junqueiro. "Eu com aquela idade e ele lia-me aquelas coisas!" Abandona-se ao silêncio, não demasiado longo. "O meu pai", recorda, "era uma espécie de anti...". faz outra pausa. "Antitudo!", dispara. Podia até ser, mas não era contra ela, contra a sua menina, a sua mais-que-tudo, a sua filha única, a sua protegida. "Pois não, lá isso não era", condescende. "E, como ele não tinha mais filhos, eu também tinha que saber cumprir essa parte. Ele era fantástico. Sempre me deu dinheiro, mesmo quando a vida era mais dura. Por isso é que nunca me canso de lhe fazer elogios. É uma pessoa a quem ficarei sempre grata."
Na véspera de atingir a maioridade, o pai chamou-a. "Vais-te embora daqui", sentenciou. "Isto não é um país para mulheres." Portugal atravessava o período mais cinzento do regime salazarista. Consciente e abnegado, o progenitor corta-lhe o cordão umbilical, substituindo-lhe as amarras por asas, que a haveriam de levar para o Reino Unido.
A menina Paula, que na escola St. Julian's, em Carcavelos, só tinha professoras que lhe asseguravam que ela não tinha jeito nenhum para pintar - "Isto não está nada bem. Não tem mesmo jeito nenhum para fazer estas coisas. Nenhum!", dizia-lhe uma das docentes que, ao sermão, gostava sempre de adicionar umas estaladas -, não tem a certeza se, na altura, percebeu o significado da libertação. Mas sabe que estava ansiosa por sair dali para fora. "Estava desejosa de ir ao cinema. E nunca podia." E havia episódios, no país espartano, que lhe adensavam a solidão, mais intelectual do que física. "A maioria dos meus colegas não percebia nada de poesia. Eram da minha classe social, muitos estrangeiros, tínhamos 23 nacionalidades lá na escola, mas a maior parte não se interessava por poesia, por arte, por nada disso." Ela era a única. "Até lia poesia em inglês à minha mãe", sustenta. "Não percebia, mas gostava do som."
O hiato cultural com os amigos nem seria o mais nefasto. "Tínhamos outros interesses em comum", desdramatiza. Por isso, chegou a ter alguma pena no dia em que foi, realmente, embora. "Pena dos amigos que deixei, de quando íamos juntos comer gelados, de quando íamos à praia dançar a dar beijinhos." O olhar fixa-se no vazio. A confissão leva-a para longe. Regressa logo a seguir: "Aquilo era muito bom, muito bonito."
O que verdadeiramente a incomodava eram os passeios partilhados com a mãe - uma pintora que desistiu de o ser -, no Chiado, em Lisboa. Fascinadas ambas por moda, vestiam-se a rigor para irem às compras. Malas, luvas, chapéus, nada era deixado ao acaso. "Mas havia sempre gente a pedir na rua. Os homens, uns malcriados, beliscavam-nos o rabo, e cheguei a ver alguns a masturbarem-se no meio da rua. Uma vergonha. Aqui, seria impensável uma coisa dessas."
Parte para Londres em 1952 e matricula-se na Slade School of Art. "Foi esta escola que me safou", garante. "Em Portugal, ensinavam-nos a desenhar chávenas e pires, e depois tínhamos que fazer a sombra com lápis e borrar com o dedo, coisa que, quando se vem para a escola de arte, sabe-se que não se faz." Não foi para Londres por ter sido educada para ser artista. "Nada disso. Nunca fui educada para ser coisa nenhuma. Nunca me disseram: "A menina tem que ser isto ou fazer aquilo." A única coisa que os pais lhe pediam era para se portar bem. Foi embora para não ver o seu crescimento cerceado pela política ditatorial de salazar, que haveria de pintar mais tarde.
É na Slade School que aprende o amor, ao conhecer Victor Willing - o Vic, diminutivo impregnado de nostalgia nas palavras dela. O pintor, sete anos mais velho, e cuja obra haveria de sofrer forte influência de Francis Bacon e Alberto Giacometti, era casado. "Mas a mulher estava lá longe, no campo, e ele estava a estudar", desculpa ela. "Começamos a andar juntos... a andar não", rectifica, "a dormir juntos, o que é diferente. Andar andávamos muito pouco, a não ser para ir ao restaurante indiano, onde comíamos, passar cheques sem cobertura." O humor que imprime ao discurso mascára a verdade, impossibilitando a descoberta do que é dito a sério ou a brincar. Estava "extremamente apaixonada por ele", confessa. Admirava-o verdadeiramente. Até hoje, aliás. "Ele era muito bonito, dançava muito bem, era uma pessoa muito... hip, não sei como se diz em português."
E Bacon, actual vizinho de sala na Tate Britain, como era? "Era nosso amigo, mas era... he was a dandy", sussurra. "Era homossexual, muito homossexual. Conheci-o através do Vic, naquela época do Soho. Era um grande pintor, o maior pintor inglês. Trouxe a pintura inglesa para o século XX, fê-la contemporânea." À voz determinada sucede um discurso mais baixo, quase segredado. "Ele trabalhava de manhã, ao meio-dia ia beber, e no dia seguinte estava pronto para trabalhar às sete da manhã, mesmo que a mão lhe tremesse. Trabalhava sempre, divertia-se sempre, bebia desalmadamente, e tinha muita piada. Não havia ninguém igual a ele. Os outros todos também bebiam, mas depois não conseguiam fazer o que ele fazia. Admiro-o imenso. E o Vic também o admira."
A ardência que a uniu a Vic, de quem fala impreterivelmente no presente, culmina numa gravidez que a faz regressar repentinamente a Portugal. "Tinha de contar ao meu pai." Vic chega 36 horas depois. E sugere: "Bom, vamos mas é beber copos." Estava um calor imenso, recorda a pintora. "Andámos a noite inteira a beber Coca-Cola e a conversar." A resolução seria inevitável. "Que queres fazer com isso?", pergunta-lhe o pintor apontando para a barriga, já pouco discreta. "Eu gostava de ter a criança", responde-lhe. "Então, vamos embora. Estás a ficar gorda. Vamos para Paris e eu compro-te uns fatos maiores." Paula Rego teria 20 anos. Nessa noite regressaram ao Estoril, numa viagem de carro inesquecível. "Fomos em silêncio, a ouvir ópera o caminho inteiro."
Nasce Caroline. Vic prescinde de Londres. Babado, acaba por estabelecer-se na Ericeira, onde assume de vez a relação com a pintora. À segunda gravidez, decidem casar. No período que vivem em ortugal, entre 1957 e 1963, completam o leque de três herdeiros - hoje, todos artistas. "A minha filha Victoria é actriz, o meu filho é um realizador cheio de talento e a Caroline está a começar a escrever argumentos para filmes." Mas a vida profissional parecia correr na proporção inversa dos afectos. Pelo menos, para Victor. Enquanto Paula Rego beneficia de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian - "A Gulbenkian tem sido um pai e uma mãe para mim; ajudou-me sempre muito." -, o marido, que havia ficado íntimo de Bacon, pinta muito pouco, e o pouco que pinta destrói. "Voltamos para Londres porque ele não arranjava trabalho e as coisas não se vendiam bem. Em Londres, sempre ensinava." Nesse ano, ela é convidada a leccionar Pintura na Slade School.
Mas o tempo haveria de ser curto para o que ambos desejariam. A obra de Vic, já no final dos anos 70, é produzida sob o diagnóstico de esclerose múltipla, doença degenerativa de que viria a sucumbir em 1988. O pintor pinta as suas próprias alucinações, fruto dos medicamentos que toma para combater a doença. "Pintou até ao fim", emociona-se Paula Rego, que nunca se deixou vencer pela perda da dor iminente, que nunca perdeu a vontade de pintar - "Isso não se perde, não se pode perder!". Reconhece: "Uma coisa destas nunca passa. É muito difícil exorcizar a dor. Por mais quadros que se pintem." E ela tem alguns consagrados a esta fase. "Algumas pietás, pintadas se calhar de forma inconsciente, mas que têm a ver com o Vic."
No ano da morte do marido, Paula Rego apresenta a retrospectiva da sua obra na Serpentine Gallery, em Londres, e na Gulbenkian, em Lisboa. "Não me lembro de nada. Não tinha disposição para estar em Portugal. Ainda estava cheia do Victor. Era tudo ainda muito recente."
Vic pintava em casa; e ela fora, "num daqueles ateliers alugados em comunidade". Ao fim do dia, enrolava a tela para, eterna menina insegura, desenrolá-la em casa, frente à cama do marido, e colher a sua opinião. "Sobre aquele das criadas, que me custou nem queira saber quanto, e onde está representada a Graça Morais, que estava a passar férias em minha casa, ele olhou e disse: "Tens aí umas figuras muito bem pintadas, mas a parte de trás é horrível. Pinta tudo a partir de fora." E ela pintou. "Ficou muito melhor, porque as figuras começaram, a mexer."
Nunca se intimidou com a avalancha de perguntas que fazia desaguar no leito de Vic. "Tinha muita confiança nele. Nunca tive ciúmes, porque ele tinha muito talento, era um excelente pintor, sem medo de arriscar. Era muito melhor artista do que eu. Era e é. Aprendi muito com ele." Um dia, ele revelou-lhe a regra da segurança: "Tu és a tua melhor amiga." E, quando estava a morrer, reforçou: "Tem sempre confiança em ti."
Depois de perder Vic, Paula Rego teve que descortinar truques para superar a sua ausência. "Tive que falar por ele para mim própria." Mas houve quem a ajudasse. "Há sempre pessoas, que aparecem na nossa vida, que são presenças extraordinárias. É como os animais mágicos nas histórias de fadas. As pessoas vão nas florestas perdidas e aparece um boi mágico para ajudar: "Senta-te em cima e eu levo-te".
Enquanto Vic viveu, foi Lila que o ajudou a pintar. "Ela mostrava-lhes as cores e ele escolhia". Lila é uma enfermeira de Viseu, emigrante há muitos anos em Londres, recomendada pela amiga Julieta. "Sempre que eu precisava de uma au-pair para os meus filhos, ela arranjava. Foi ela que me sugeriu a Lila para tomar conta do Vic."
A enfermeira tornou-se amiga da pintora e uma das suas modelos de referência. "Ela é excelente. Temos uma ligação profunda. Dependo dela, porque ela traz para aqui coisas, sabe pôr-se muito bem, é um trabalho extraordinário. Ouvimos música, divertimo-nos imenso." Às vezes, a pintora entusiasma-se e distrai-se. "Quando não pinto como deve ser, a Lila diz logo: "O que é preciso é trabalho. Faz-se até ficar bem". E continuam. "Quando estamos juntas, o trabalho é muito mais parecido com brincar, porque nós, quando falamos inglês somos uma pessoa; quando falamos português somos outra. Não é que a Lila conheça as histórias todas, mas basta-me dizer-lhe: "Vamos agora fazer a formiga rabiga e o pinto calçudo", e ela entende. Em Inglaterra não posso dizer isso. Ninguém, sabe o que é."
É na língua portuguesa que as ideias lhe assaltam a imaginação. Ao contrário, "para fazer conferências, o que é raríssimo, felizmente, é muito mais fácil falar em inglês, porque aprendemos a linguagem sobre arte na escola inglesa. fazer e falar sobre a coisa é diferente."
Com Ana, a "Mulher dos Bolos", é diferente: "Ela trabalha em minha casa; só a usei uma vez. Mas já usei muitas pessoas portuguesas. As figuras da Celestina, que está no Porto, são todas portuguesas. Cá há muitos. Gosto do aspecto da cara, da rigidez. É mais interessante a fisionomia dos portugueses do que propriamente dos ingleses." Para Peter Pan e Capitão Hook (personagens de um quadro recente) usou, obviamente, ingleses.
Da encenação que está agora a montar no atelier, Paula Rego nada autoriza ainda a revelar. Pinta Portugal, quase sempre. Mas dificilmente pintará o Portugal contemporâneo. "Não estou lá. Não vou às boîtes, não tomo drogas. O lado mais cosmopolita é igual aos outros. Não é tão interessante. Até os políticos, que não conheço, são todos iguais." Mas continuará a pintar "os pequenos parlamentos das famílias. Não entro na casa das pessoas, mas entro na minha todos os dias, ou já lá estive. É tudo igual. You should only do what you really know". Cita a eterna regra da escola, para reclamar o estatuto de quem já não se sujeita a regras: "Sempre me disseram que não podia fazer Roma a arder. Hoje, se quisesse, até podia fazer." E revela, satisfeita: "Depois dos desenhos das mulheres, dos macacos, das couves, da coelha grávida, dos bichos, das óperas, das famílias, da mulher-cão, vou pintar bonecos. Agora, estou na fase dos bonecos."
Seria a mãe imprudente quando dizia que ela era inconsciente? "Não, ela sabia o que dizia, conhecia-me muito bem. Continuo a não saber se o que fiz é bom ou mau." Pega numa borracha e começa a esfregá-la na cadeira, escondendo outra vez o rosto e contorcendo o corpo. "Não sei se são boas ou más", repete. "Não sei se é um disparate. mas também, se for, paciência".
(A partir de uma entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada na Grande Reportagem a 27 de Novembro de 2004)