Com duas exposições simultâneas - em Serralves, no Porto, e na Tate, em Londres -, acentuando a sua dupla nacionalidade luso-britânica, Paula Rego é, aos 69 anos, uma das mais consagradas pintoras do nosso tempo. Com a mostra portuense a bater todos os recordes de afluência de público, visitamo-la no atelier londrino para uma retrospectiva de vida e uma introspecção aos medos e fantasmas que fazem da sua obra um caso único na arte contemporânea.
"Tu és uma inconsciente", gritava-lhe a mãe. "Ó Maria Paula", insistia, ampliando ênfase e volume, "tu és uma inconsciente. Fazes as coisas e depois ficas toda aflita". Ela, a Maria Paula, criança inquieta, com um mundo maior dentro da cabeça do que fora dela, embaraçada, sentia-se a diminuir de tamanho, qual Alice no país das maravilhas a encolher para entrar na porta enigmática do jardim mágico. "Tinha medo", diz a juntar as palmas das mãos, os olhos pendurados no ar. "Ai, Jesus, tinha tanto medo. Medo de tudo". E tinha oito anos. Hoje tem 69. O tempo levou-lhe muita coisa. "O medo? Já não tenho tanto", confessa, aliviada. "Mas ainda existe. Agora é mais medo de coisas concretas. Medo dos ataques, das pessoas drogadas, que não fazem mal senão a si próprias, mas assustam. Medo de voltar para casa à noite sozinha".
Maria Paula é Paula Rego. Provocadora incansável. Perturbada e perturbadora. Pintora da solidão e do desespero, da frustração e do desejo, da liberdade e do encarceramento. Da melancolia. Da infância atravessada pela maturidade. Influencida pelo surrealismo e, de certa forma, pelo dadaísmo, ela pinta o pecado que imagina, o arrependimento, o purgatório, a moral e a falta dela. Em figuras ambíguas, meio humanas, meio animais, meio bonecos, meio coisas que só ela saberá, denuncia o país de que se lembra quando era ainda demasiado pequena. O Portugal da mulher submissa, manipulada, da mulher sem norte, da mulher dona de casa. E, ao mesmo tempo, da mulher erótica, misteriosa, inabalável. Constrói e destrói a História numa dialéctica motorizada pela imaginação, numa encruzilhada de metáforas para as quais só ela conhecerá a chave exacta. É a voz de quem não teve voz. A voz da consciência e da transgressão que, não raras vezes, emerge da força sexual das suas personagens. Paula Rego é um coelho. É uma formiga-rabiga. É a mulher-cão que rasga as convenções e explode em narrativas densas, carregadas de tudo menos inocência.
"O que eu pinto é triste? É cru?", interroga-se. "Acho que não. Pinto a verdade. A Guerra Colonial existiu e foi uma vergonha. Faziam-se festas e, no fim, andavam aos pontapés às cabeças dos indígenas. As mulheres, em 1950, tinham vidas tenebrosas. Na Ericeira, de que eu gostava tanto, havia uma mulher, à noite, a gritar lá em cima, no moinho, porque o marido batia-lhe. Chegava a casa bêbedo e batia à mulher, que tinha filhos após filhos, após filhos. Ela dava-os à luz no moinho e criava-os completamente sozinha. Mas ele morreu e ela ainda ficou ali, rija, toda tesa. Isto é triste? Acho que não. Quis mostrar a força extraordinária de mulheres como esta."
A artista, a viver ininterruptamente em Inglaterra desde 1974, tem agora duas exposições nos países que lhe conferem dupla nacionalidade. Em Portugal, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, exibe até 23 de Janeiro de 2005, uma retrospectiva com 150 trabalhos - o relato de um percurso que começa em 1966 e termina com o recente A Mulher dos Bolos, já de 2004. A mostra, que em pouco mais de um mês contou com 60 mil visitas, bateu todos os recordes da instituição. Superou Francis Bacon, Andy Warhol e a exposição In the Rought, no Porto 2001. Foi a inauguração, a semana e o mês mais concorridos de sempre. Só a semana de abertura registou mais de 30 mil entradas, valor nunca antes experimentado por outro artista. "Tem estado lá muita gente, é?", pergunta de olhos a brilhar, com o ar doce de uma infantilidade que parece nunca ter perdido, a preparar dois cafés no seu gigantesco atelier londrino, em Rochester, próximo do folclore de Camden Town.
O número grosso de visitas parece surpreendê-la. "Nunca pensei. Mas fico tão contente. Nunca fui tão bem tratada como no Porto. Nunca vi os meus quadros tão bem distribuídos como em Serralves. É uma maravilha. Não existe cá nenhum espaço com aquela elegância. É o sítio mais bonito onde jamais expus."
Londres, que reclama a artista como sua, e uma das suas melhores, concentra na Galeria Tate Britain, em simultâneo, outra série de quadros seus, arrancando nos anos 60 - época das obras mais políticas e das colagens -, e terminando com o inédito, também deste ano, The Pillowman. Logo à entrada, um documentário conduzido por Robert Hughes, o conceituado crítico de Artes Plásticas da Time, autor, entre vários livros, de O Choque do Moderno (também uma série de TV), apresenta a mulher e a obra. "Ele teve um desastre de automóvel, quase morreu e depois recuperou", conta Paula Rego, invertendo os papéis, apresentando o homem que a apresentou. "Vive na América, e a primeira coisa que fez, depois de ficar bom, foi vir cá falar comigo. Não sei como me descobriu, mas demo-nos bem. Gosto bastante dele. Escreve muito bem. Escreveu um livro sobre Goya, que é uma maravilha."
Em Portugal não há documentários, nem uma mesa-redonda para discutir o trabalho da pintora, como a que aconteceu esta semana na Tate, nem haverá uma visita guiada pela própria, como a que está lá agendada para 8 de Dezembro. "Não se fez nada, mas a culpa é minha", redime-se. "Houve várias estações de televisão a pedir para vir cá, mas eu não deixei vir ninguém de Portugal entrevistar-me. Estava a trabalhar furiosamente e não queria cá confusões. Além disso, já toda a gente me conhece tão bem, não é? Não preciso estar sempre a dizer quem sou." Talvez não. Ela agradece o reconhecimento. "Ser conhecida é bom, claro. E vender ainda é melhor" -, mas gostava de fazer um quadro que deixasse as pessoas na dúvida, "fazer uma coisa como se fosse outra pessoa". Diz que não quer ser o Louis Vuitton das artes plásticas: "Não se pode fugir à mão de quem pintou o quadro, mas ter assim as malas carimbadas com as iniciais do nome é muito feio." E faz uma cara feia.
Londres compromete a expectativa: a chuva ameaça cair a qualquer momento; o termómetro não passa dos oito graus. "Estou aqui desde as nove da manhã; só depois de tomar café começo a acordar", diz com o riso estagnado que a caracteriza. Trabalha todos os dias, excepto ao Domingo. "Mas trabalho melhor das três da tarde em diante. Nem sempre estou bem disposta. Às vezes, estou com neura, mas isso não me trava. A prática é muito importante", reconhece. "A inspiração é precisa para ter ideias, mas a parte artesanal constitui 90 por cento do resultado final."
Os cafés, a ferver, misturam-se numa mesa onde abundam latas vazias de Coca-Cola Light, galos de Barcelos, peças de barro preto de Bisalhães (Trás-os-Montes), a boneca da "Soberba", que integra a série dos sete pecados mortais esculpidos pela já falecida Rosa Ramalho, e um CD de Mariza. "Somos amigas. Gosto imenso dela". Paula Rego gosta de ouvir música enquanto pinta. As referências espalham-se pelo chão: muito fado, muita ópera. Mas também Madonna, Bob Dylan e a banda sonora de Habla con Ella, de Pedro Almodôvar, o seu realizador de eleição.
"Trouxe muitas coisas de Portugal, mas também há coisas que compro aqui", ressalva. "Temos cá mercados muito giros. Volta e meia, apesar de não ter muito tempo, vou lá." Cada objecto tem uma história. Um dia interio não chega para todas elas. "Olhe estes vestidos, sabe onde é que os comprei?" E lá vai ela, expedita, retirar das cruzetas vestido a vestido. "Na Royal Opera House, o equivalente ao S. Carlos. Às vezes, eles vendem fatos, e veja que bem feitinhos que estão." E lá estão eles, devidamente agasalhados num varão atolado de uma parede à outra, os trajes de A Casa da Celestina, de La Fête, de A Pata Portuguesa, de A Gata Nicotina. "Este aqui (aponta para um cor de laranja) não gosta de mim, nem eu dele. Nunca o consigo pintar. De resto, isto para as minhas netas é uma perdição. Aquele capuchinho vermelho foi usado pela minha neta Grace, que posou para mim. Esteve sempre quietinha. Muito, muito bem", remata a verter orgulho.
The Pillowman e A Mulher dos Bolos, a residir temporariamente em cidades diferentes e distantes, são duas faces da mesma realidade: a pedofilia. "Não posso falar muito do quadro, porque também não sei muto bem o que aquilo é. Acho que as figuras são portuguesas. Representam o Estoril, mas não têm, francamente, nada a ver com o Estoril, nem com as coisas políticas ou outras que lá se passem. É como se fosse uma representação encenada lá: o farol que se vê lá atrás, em A Mulher dos Bolos, é o lado de lá da praia; o outro, do Pillowman, é o lado de cá."
O tríptico The Pillowman (O homem da almofada) é uma peça de teatro extremamente cruel, de um jovem dramaturgo inglês de 31 anos, Martin McDonagh. "Claro que não é inocente", assegura a pintora. "Eu estava muito consciente da polémica da pedofilia em Portugal quando pintei The Pillowman. Por isso é que deixei a braguilha das calças aberta." Arregala os olhos e faz uma expressão como se procurasse cumplicidade. "Estava muito consciente da possibilidade dessa associação."
À parte o tema que convoca, o quadro é inspirado, apenas, num dos muitos contos do dramaturgo. "Ele fala de uma menina que faz maçãzinhas todas recortadas com gilettes lá dentro e dá a comer ao pai. Depois, à noite, ela está a dormir e aquilo vem tudo por ali acima. É uma história muito macabra. Como é que ele consegue escrever coisas fantásticas daquelas aos 17 anos?"
Mas a história de The Pillowman, a cuja estreia ela assistiu no ano passado em Londres, é outra. "É a história de uma figura que ajuda as crianças a morrer para não terem vidas terríveis. As pessoas pensam nelas quando já estão crecidas, portanto não é uma coisa que está a acontecer naquele momento. É uma possibilidade. Aquilo é cheio de contradições, de coisas misteriosas, terríveis, cruéis. Mas tem um sentido de humor extraordinário. E tem qualquer coisa que me diz muito." O conflito? "Sim, talvez seja isso, mas não só. A minha pintura tem um lado muito político. É um político caseiro; não é o político dos ministros. É um politico de tudo o que acontece em casa das famílias. É lá que acontece tudo, nesses parlamentos tantas vezes autoritários."
Paula Rego pintou o dramaturgo porque pinta encenações. Sempre. A maioria de autoria própria. Mas não se limita a encenar. "Também faço os bonecos para a encenação, se não não vale. Primeiro façço os desenhos, mas, como isto depende muito das criaturas, às vezes não serve de nada fazê-los." The Pillowman, por exemplo, "é um edredão dentro de umas meias. Era para ser outra coisa, mas depois a minha neta veio cá e exclamou: "Oh, grandmother, it's so scaring!" E ela, que não gosta de contrariar nenhuma das cinco netas, mudou a expressão do boneco. "Às vezes", conta, "preciso de ajuda. Os bonecos são muito pesados, e tenho muitas dores nas costas. Sou capaz de passar aqui horas, dias inteiros a montar. Leva muito tempo, é uma coreografia muito complicada."
"Gostava que se acabasse de vez com o épatement geral e a necessidade de acontecimento teatral", confessou uma vez Ricardo Pais, director do Teatro Nacional S. João, no Porto, encenador que Paula Rego nunca pintou. Gostaria ela que se perdesse também essa noção de happening nas suas exposições?
O nome do encenador desvia-a da pergunta e atira-a para o passado com entusiasmo genuíno, só equiparável ao de uma criança. "O Ricardo Pais? Que saudades! Conheci-o aqui em Londres, no final dos anos 60, numa peça chamada Cais do Sodré (a partir de um texto de José Rodrigues da Silva), com um grupo de portugueses que andavam por aqui fugidos por causa das guerras coloniais. Era uma delícia." Pousa a caneca do café para esfregar as mãos e entrelaçar os dedos. "O Ricardo Pais, achei-o tão simpático, tão engraçado, nada pretensioso. Ele até me mandou um cartão agora, quando estive lá em Portugal, mas tenho a impressão que nem o vi. Aquilo era tanta gente (350 convidados oficiais na inauguração, a 15 de Outubro)!. Ele devia pôr esta peça do Pillowman lá no S. João." O encenador abrirá o próximo ano com Figurantes, de Jacinto Lucas Pires. "A sério? Tenho tanta pena de nunca mais ter visto nada dele. Conto voltar ao Porto em Janeiro. Vou tentar ver essa peça", promete.
Quanto ao happening, discorda do encenador. "É bom haver um grande acontecimento, que é - e começa a cantar, erguendo os braços - tarataran, tarantaran!" Descodifica: "Isto é para anunciar uma coisa que vai acontecer e na qual não se pode entrar sem se estar preparado, porque é preciso preparação para ver uma coisa especial. Depois, é preciso entrar, voltar lá muitas vezes, e aí sim, já é à vontade. Mas, no início, acho engraçada aquela fita toda." Volta a rir. Está sempre a rir. "Não estou não", apressa-se a desmentir. "Gosto é muito de falar." E fala, acompanhada por gestos largos e irónicos, das inaugurações londrinas. "As aberturas cá são cada coisa, tanto champagne, tantas bebidas. Desconfio que há gente que só lá vai para beber o champagne. Em Portugal também é assim?"
Paula Rego pinta encenações; não pinta sonhos, embora continue a sonhar, a ter pesadelos. Muitos. "Mas não tantos como na infância." Não os pinta para não os dotar de uma importância que diz não terem. "São efémeros. Não valem por si. O que trazem ao de cima é que interessa." Apesar da teoria, aparentemente fria, são eles os responsáveis pelo medo que nunca a abandonou completamente. "Sofre-se tanto", liberta. "Tive que fazer terapia para acalmar. Falo com uma pessoa, já mais velha, desde 1973, e está a resultar. He's a very kind man, uma pessoa boa. Não vale a pena querer encontrar explicações; eu só queria deixar de ter medo."
Pinta a dimensão sexual, mas não gosta de pintar nus. "Não gosto nada. Tenho vergonha. Sinto-me mais desconfortável do que a pessoa nua. É malcriado." A timidez não a prejudica, porque, garante, "tudo é sexual. Uma pessoa vestida pode ser profundamente erótica". E depois ironiza: "E têm menos pregas; são mais fáceis de pintar."
Os desenhos nasceram com Paula Rego. Mas, aos oito anos, houve qualquer coisa que não voltou a ser igual. "Fui fazer um retrato. Posei para o senhor lemerce, um belga refugiado no estoril. Fiquei muito quietinha para ele fazer o desenho e ouvia-o pintar. Fazia "hmmmmmm" e pintava. Estive a observar e pensei: "Aquilo não é como eu vou fazer. Não é não." Mas, nessa altura, fazia coisas e mostrava-lhe. "Fazia o Bambi. Fazia muitos Bambis, e ele gostava", afirma, inflamada com a recordação. Pára subitamente. Ajusta a objectiva da memória: "Bem, do primeiro ele gostou muito; do segundo já não gostou. E eu não percebia porque é que o segundo já não era tão bom." erde-se numa gargalhada e esconde o rosto como se ainda fosse aquela menina pequena, cheia de inconsistências. "Foi uma coisa que sempre me fez muita aflição, não saber se as minhas coisas são boas ou más. Ai, Jesus, ainda hoje sou assim."
Nessa idade, de colo, a voz aquecida do pai, engenheiro electrotécnico, narrava-lhe A História da Raposa, O Inferno, de Dante, O Crime do Padre Amaro ou histórias de Guerra Junqueiro. "Eu com aquela idade e ele lia-me aquelas coisas!" Abandona-se ao silêncio, não demasiado longo. "O meu pai", recorda, "era uma espécie de anti...". faz outra pausa. "Antitudo!", dispara. Podia até ser, mas não era contra ela, contra a sua menina, a sua mais-que-tudo, a sua filha única, a sua protegida. "Pois não, lá isso não era", condescende. "E, como ele não tinha mais filhos, eu também tinha que saber cumprir essa parte. Ele era fantástico. Sempre me deu dinheiro, mesmo quando a vida era mais dura. Por isso é que nunca me canso de lhe fazer elogios. É uma pessoa a quem ficarei sempre grata."
Na véspera de atingir a maioridade, o pai chamou-a. "Vais-te embora daqui", sentenciou. "Isto não é um país para mulheres." Portugal atravessava o período mais cinzento do regime salazarista. Consciente e abnegado, o progenitor corta-lhe o cordão umbilical, substituindo-lhe as amarras por asas, que a haveriam de levar para o Reino Unido.
A menina Paula, que na escola St. Julian's, em Carcavelos, só tinha professoras que lhe asseguravam que ela não tinha jeito nenhum para pintar - "Isto não está nada bem. Não tem mesmo jeito nenhum para fazer estas coisas. Nenhum!", dizia-lhe uma das docentes que, ao sermão, gostava sempre de adicionar umas estaladas -, não tem a certeza se, na altura, percebeu o significado da libertação. Mas sabe que estava ansiosa por sair dali para fora. "Estava desejosa de ir ao cinema. E nunca podia." E havia episódios, no país espartano, que lhe adensavam a solidão, mais intelectual do que física. "A maioria dos meus colegas não percebia nada de poesia. Eram da minha classe social, muitos estrangeiros, tínhamos 23 nacionalidades lá na escola, mas a maior parte não se interessava por poesia, por arte, por nada disso." Ela era a única. "Até lia poesia em inglês à minha mãe", sustenta. "Não percebia, mas gostava do som."
O hiato cultural com os amigos nem seria o mais nefasto. "Tínhamos outros interesses em comum", desdramatiza. Por isso, chegou a ter alguma pena no dia em que foi, realmente, embora. "Pena dos amigos que deixei, de quando íamos juntos comer gelados, de quando íamos à praia dançar a dar beijinhos." O olhar fixa-se no vazio. A confissão leva-a para longe. Regressa logo a seguir: "Aquilo era muito bom, muito bonito."
O que verdadeiramente a incomodava eram os passeios partilhados com a mãe - uma pintora que desistiu de o ser -, no Chiado, em Lisboa. Fascinadas ambas por moda, vestiam-se a rigor para irem às compras. Malas, luvas, chapéus, nada era deixado ao acaso. "Mas havia sempre gente a pedir na rua. Os homens, uns malcriados, beliscavam-nos o rabo, e cheguei a ver alguns a masturbarem-se no meio da rua. Uma vergonha. Aqui, seria impensável uma coisa dessas."
Parte para Londres em 1952 e matricula-se na Slade School of Art. "Foi esta escola que me safou", garante. "Em Portugal, ensinavam-nos a desenhar chávenas e pires, e depois tínhamos que fazer a sombra com lápis e borrar com o dedo, coisa que, quando se vem para a escola de arte, sabe-se que não se faz." Não foi para Londres por ter sido educada para ser artista. "Nada disso. Nunca fui educada para ser coisa nenhuma. Nunca me disseram: "A menina tem que ser isto ou fazer aquilo." A única coisa que os pais lhe pediam era para se portar bem. Foi embora para não ver o seu crescimento cerceado pela política ditatorial de salazar, que haveria de pintar mais tarde.
É na Slade School que aprende o amor, ao conhecer Victor Willing - o Vic, diminutivo impregnado de nostalgia nas palavras dela. O pintor, sete anos mais velho, e cuja obra haveria de sofrer forte influência de Francis Bacon e Alberto Giacometti, era casado. "Mas a mulher estava lá longe, no campo, e ele estava a estudar", desculpa ela. "Começamos a andar juntos... a andar não", rectifica, "a dormir juntos, o que é diferente. Andar andávamos muito pouco, a não ser para ir ao restaurante indiano, onde comíamos, passar cheques sem cobertura." O humor que imprime ao discurso mascára a verdade, impossibilitando a descoberta do que é dito a sério ou a brincar. Estava "extremamente apaixonada por ele", confessa. Admirava-o verdadeiramente. Até hoje, aliás. "Ele era muito bonito, dançava muito bem, era uma pessoa muito... hip, não sei como se diz em português."
E Bacon, actual vizinho de sala na Tate Britain, como era? "Era nosso amigo, mas era... he was a dandy", sussurra. "Era homossexual, muito homossexual. Conheci-o através do Vic, naquela época do Soho. Era um grande pintor, o maior pintor inglês. Trouxe a pintura inglesa para o século XX, fê-la contemporânea." À voz determinada sucede um discurso mais baixo, quase segredado. "Ele trabalhava de manhã, ao meio-dia ia beber, e no dia seguinte estava pronto para trabalhar às sete da manhã, mesmo que a mão lhe tremesse. Trabalhava sempre, divertia-se sempre, bebia desalmadamente, e tinha muita piada. Não havia ninguém igual a ele. Os outros todos também bebiam, mas depois não conseguiam fazer o que ele fazia. Admiro-o imenso. E o Vic também o admira."
A ardência que a uniu a Vic, de quem fala impreterivelmente no presente, culmina numa gravidez que a faz regressar repentinamente a Portugal. "Tinha de contar ao meu pai." Vic chega 36 horas depois. E sugere: "Bom, vamos mas é beber copos." Estava um calor imenso, recorda a pintora. "Andámos a noite inteira a beber Coca-Cola e a conversar." A resolução seria inevitável. "Que queres fazer com isso?", pergunta-lhe o pintor apontando para a barriga, já pouco discreta. "Eu gostava de ter a criança", responde-lhe. "Então, vamos embora. Estás a ficar gorda. Vamos para Paris e eu compro-te uns fatos maiores." Paula Rego teria 20 anos. Nessa noite regressaram ao Estoril, numa viagem de carro inesquecível. "Fomos em silêncio, a ouvir ópera o caminho inteiro."
Nasce Caroline. Vic prescinde de Londres. Babado, acaba por estabelecer-se na Ericeira, onde assume de vez a relação com a pintora. À segunda gravidez, decidem casar. No período que vivem em ortugal, entre 1957 e 1963, completam o leque de três herdeiros - hoje, todos artistas. "A minha filha Victoria é actriz, o meu filho é um realizador cheio de talento e a Caroline está a começar a escrever argumentos para filmes." Mas a vida profissional parecia correr na proporção inversa dos afectos. Pelo menos, para Victor. Enquanto Paula Rego beneficia de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian - "A Gulbenkian tem sido um pai e uma mãe para mim; ajudou-me sempre muito." -, o marido, que havia ficado íntimo de Bacon, pinta muito pouco, e o pouco que pinta destrói. "Voltamos para Londres porque ele não arranjava trabalho e as coisas não se vendiam bem. Em Londres, sempre ensinava." Nesse ano, ela é convidada a leccionar Pintura na Slade School.
Mas o tempo haveria de ser curto para o que ambos desejariam. A obra de Vic, já no final dos anos 70, é produzida sob o diagnóstico de esclerose múltipla, doença degenerativa de que viria a sucumbir em 1988. O pintor pinta as suas próprias alucinações, fruto dos medicamentos que toma para combater a doença. "Pintou até ao fim", emociona-se Paula Rego, que nunca se deixou vencer pela perda da dor iminente, que nunca perdeu a vontade de pintar - "Isso não se perde, não se pode perder!". Reconhece: "Uma coisa destas nunca passa. É muito difícil exorcizar a dor. Por mais quadros que se pintem." E ela tem alguns consagrados a esta fase. "Algumas pietás, pintadas se calhar de forma inconsciente, mas que têm a ver com o Vic."
No ano da morte do marido, Paula Rego apresenta a retrospectiva da sua obra na Serpentine Gallery, em Londres, e na Gulbenkian, em Lisboa. "Não me lembro de nada. Não tinha disposição para estar em Portugal. Ainda estava cheia do Victor. Era tudo ainda muito recente."
Vic pintava em casa; e ela fora, "num daqueles ateliers alugados em comunidade". Ao fim do dia, enrolava a tela para, eterna menina insegura, desenrolá-la em casa, frente à cama do marido, e colher a sua opinião. "Sobre aquele das criadas, que me custou nem queira saber quanto, e onde está representada a Graça Morais, que estava a passar férias em minha casa, ele olhou e disse: "Tens aí umas figuras muito bem pintadas, mas a parte de trás é horrível. Pinta tudo a partir de fora." E ela pintou. "Ficou muito melhor, porque as figuras começaram, a mexer."
Nunca se intimidou com a avalancha de perguntas que fazia desaguar no leito de Vic. "Tinha muita confiança nele. Nunca tive ciúmes, porque ele tinha muito talento, era um excelente pintor, sem medo de arriscar. Era muito melhor artista do que eu. Era e é. Aprendi muito com ele." Um dia, ele revelou-lhe a regra da segurança: "Tu és a tua melhor amiga." E, quando estava a morrer, reforçou: "Tem sempre confiança em ti."
Depois de perder Vic, Paula Rego teve que descortinar truques para superar a sua ausência. "Tive que falar por ele para mim própria." Mas houve quem a ajudasse. "Há sempre pessoas, que aparecem na nossa vida, que são presenças extraordinárias. É como os animais mágicos nas histórias de fadas. As pessoas vão nas florestas perdidas e aparece um boi mágico para ajudar: "Senta-te em cima e eu levo-te".
Enquanto Vic viveu, foi Lila que o ajudou a pintar. "Ela mostrava-lhes as cores e ele escolhia". Lila é uma enfermeira de Viseu, emigrante há muitos anos em Londres, recomendada pela amiga Julieta. "Sempre que eu precisava de uma au-pair para os meus filhos, ela arranjava. Foi ela que me sugeriu a Lila para tomar conta do Vic."
A enfermeira tornou-se amiga da pintora e uma das suas modelos de referência. "Ela é excelente. Temos uma ligação profunda. Dependo dela, porque ela traz para aqui coisas, sabe pôr-se muito bem, é um trabalho extraordinário. Ouvimos música, divertimo-nos imenso." Às vezes, a pintora entusiasma-se e distrai-se. "Quando não pinto como deve ser, a Lila diz logo: "O que é preciso é trabalho. Faz-se até ficar bem". E continuam. "Quando estamos juntas, o trabalho é muito mais parecido com brincar, porque nós, quando falamos inglês somos uma pessoa; quando falamos português somos outra. Não é que a Lila conheça as histórias todas, mas basta-me dizer-lhe: "Vamos agora fazer a formiga rabiga e o pinto calçudo", e ela entende. Em Inglaterra não posso dizer isso. Ninguém, sabe o que é."
É na língua portuguesa que as ideias lhe assaltam a imaginação. Ao contrário, "para fazer conferências, o que é raríssimo, felizmente, é muito mais fácil falar em inglês, porque aprendemos a linguagem sobre arte na escola inglesa. fazer e falar sobre a coisa é diferente."
Com Ana, a "Mulher dos Bolos", é diferente: "Ela trabalha em minha casa; só a usei uma vez. Mas já usei muitas pessoas portuguesas. As figuras da Celestina, que está no Porto, são todas portuguesas. Cá há muitos. Gosto do aspecto da cara, da rigidez. É mais interessante a fisionomia dos portugueses do que propriamente dos ingleses." Para Peter Pan e Capitão Hook (personagens de um quadro recente) usou, obviamente, ingleses.
Da encenação que está agora a montar no atelier, Paula Rego nada autoriza ainda a revelar. Pinta Portugal, quase sempre. Mas dificilmente pintará o Portugal contemporâneo. "Não estou lá. Não vou às boîtes, não tomo drogas. O lado mais cosmopolita é igual aos outros. Não é tão interessante. Até os políticos, que não conheço, são todos iguais." Mas continuará a pintar "os pequenos parlamentos das famílias. Não entro na casa das pessoas, mas entro na minha todos os dias, ou já lá estive. É tudo igual. You should only do what you really know". Cita a eterna regra da escola, para reclamar o estatuto de quem já não se sujeita a regras: "Sempre me disseram que não podia fazer Roma a arder. Hoje, se quisesse, até podia fazer." E revela, satisfeita: "Depois dos desenhos das mulheres, dos macacos, das couves, da coelha grávida, dos bichos, das óperas, das famílias, da mulher-cão, vou pintar bonecos. Agora, estou na fase dos bonecos."
Seria a mãe imprudente quando dizia que ela era inconsciente? "Não, ela sabia o que dizia, conhecia-me muito bem. Continuo a não saber se o que fiz é bom ou mau." Pega numa borracha e começa a esfregá-la na cadeira, escondendo outra vez o rosto e contorcendo o corpo. "Não sei se são boas ou más", repete. "Não sei se é um disparate. mas também, se for, paciência".
(A partir de uma entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada na Grande Reportagem a 27 de Novembro de 2004)
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