sexta-feira, abril 16, 2010

Ana Teresa Pereira: Se nos encontramos de novo


Mesmo quem nunca teve coragem para ler a Ana Karenine, saberá de cor a primeira frase dessa obra emblemática, dizem, de Tolstoi: "As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira." Eu também ainda não tive coragem para ler o livro e também sei de cor a frase - e também a acho genial. Mas prefiro outros inícios. Prefiro os inícios, alguns, de Ana Teresa Pereira. Prefiro o início de "Se nos encontrarmos de novo": "Talvez seja possível amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, do olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala."

Mesmo quem nunca leu José Luís Peixoto e só consegue vagamente identificar-lhe a face, achou que podia escandalizar-se quando o primeiro-ministro deste país não reconheceu aquele que é hoje uma das mais cumpridas promessas da literatura portuguesa contemporânea. A pergunta dirigida por José Sócrates ao escritor na celebração dos cem dias deste Governo, em Fevereiro - "Como é que você disse que se chamava? Jorge?" - ficou quase tão célebre como algumas citações dos clássicos. Não reconhecer o rosto de um escritor tem muito que se lhe diga - mas pode dizer mais do escritor do que do leitor. Eu nunca saberia reconhecer Ana Teresa Pereira. Ignoro-lhe por completo a cara. E no entanto é isso, também, que ajuda a que essa mulher madeirense seja o misterioso e terrível fenómeno solar que é. Uma escritora com uma obra superlativamente bela de que só muito de vez em quando se ouve falar.

A sua obra é a história, quem sabe se autobiográfica, da alma. E é uma história de amor pela arte: Mondrian, Rothko, Bonnard, Rembradt, Rublev, Van Gogh, Monet, Degas, Ticiano, Turner, os impressionistas todos da pintura; Iris Murdoch em primeiríssimo lugar, mas também Henry James, Emily Bronte, Ibsen, Rupert Brooke, Rilke, Charles Dickens na literatura. Livros e quadros. Sempre. Bach, Mozart, Haydn, Pizzetti na música; Vincente Minnelli, Tarkovsky, Sokurov, Ingrid Bergman, Katherine Hepburn, Robert Mitchum no cinema. A lista é exaustiva, precisa, sugestiva, minuciosa.

"Se nos encontrarmos de novo" é isto tudo. Mas é mais. É uma história de Amor, claro. E da impossibilidade do amor. Ou do amor que nasce quando o resto morre. É sobre o que fazer com ele, com esse amor, quando tudo renasce. E ressuscita por causa dele. "Um amor que só precisa da presença do outro para existir". É uma história de demónios, de fantasmas, de monstros que amam demasiado para poderem ser santos, de medos expiados a meio da noite, no meio da praia, "com um mapa nos joelhos para não nos perdermos", de setas de papel enviadas para ninguém, "setas atiradas para afastar o medo", de torres, reinos, contos de fadas e castelos de areia. É cheio de contradições. Como a vida.

É sobre os encontros que nos mudam a existência. "Podemos chamar alguém com tanta força, mesmo sem o sabermos, que essa pessoa vem do outro lado do mundo ao nosso encontro. E a nossa vida é feita desses encontros." E de como ficam inacabados, incompletos. E como, se calhar, só podem fazer sentido porque ficam assim, interrompidos. É sobre o que continua depois de desaparecer. É sobre "morrer procurando". É sobre o primeiro amor ser o último. E o último o único. "Vivemos fechados no nosso mundo, e um dia descobrimos que existe mais alguém, é isso apaixonar-se, tomar consciência da realidade de alguém além de nós. Sair da caverna e descobrir o mundo". É sobre ter alguém à nossa espera quando se regressa do inferno. E isso ser um milagre. É sobre ter procurado alguém a vida inteira, amá-lo ainda antes de o ver e depois isso ser mesmo verdade, ele existir mesmo. "É uma coisa terrível cair nas mãos de um deus vivo". É sobre "as lágrimas das coisas", o sofrimento, a vulnerabilidade. O caminho, de que "o amor e a perda fazem parte".

Ashley e Byrne. Ashley e Tom. Ashley e Ed. Ashley e Kevin. Ashley e... É sobre o imenso labirinto até se encontrar a saída, quando há saída. "Todos os caminhos são caminhos solitários, todas as procuras são procuras solitárias. Mas há os encontros que temos ao longo do caminho, e esses encontros são fundamentais, podem fazer-nos ir mais longe. Podem fazer-nos perder o rumo."

"Seria quase um milagre estarem juntos outra vez, encontrarem-se de novo. Se nos encontrarmos de novo, disse Ashley para si mesma, então poderemos sorrir." Era um bilhete de despedida. É sobre ter valido a pena, mesmo quando já nada parecia valer nada. "Eu estou apaixonada, como se fosse o princípio de qualquer coisa. E pratiquei a morte todos os dias da minha vida. E todas as vidas ficam inacabadas."

"If we do meet again, why, we shall smile."
(Júlio César)

quinta-feira, abril 15, 2010

[Nan Goldin]
"Assim é a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva põe as mais fundas raízes à mostra, a torrente leva consigo de roldão a desgraça e o riso; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia, onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam atónitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade..."
Raul Brandão in Os Pobres

quarta-feira, abril 14, 2010

STUPID IS THE RELENTLESS PURSUIT OF A REGRET-FREE LIFE. The world is full of smart people. Ask around. There are all kinds of people doing all kinds of smart things with other smart people, each one smarter than the last. That is smart. WE'RE WITH STUPIDS. Smarts may have the brains, stupids has the balls. SMARTS MAY HAVE THE PLANS, BUT STUPIDS HAS THE STORIES. Smarts may have the autority, but stupid has once hell of a hangover. To be stupid is to be brave. When you risk something, that’s stupid. It’s not smart to take risks. It’s stupid. Stupid stands alone. Smart hides within the safety of huddled masses. The stupid aren’t afraid to fail. Why? Because they're stupid. Smart critiques, stupid creates. If you want to do something that’s never been done before, don’t go to the guy with the spreadsheet and the blueprints — go to the guy with the imagination and the weed. You can't out smart stupid. THE STUPID ARE THE ONLY ONES BRAVE ENOUGH TO DO WHAT NO ONE IN THEIR RIGHT MIND WOULD DO. THE STUPID, YOU SEE, KNOW THERE ARE WORSE THINGS THAN FAILURE — LIKE NOT EVEN TRYING. BUT TRY THEY DO,TALLYING UP THE IMPOSSIBLE ODDS AND GOING AHEAD AND DOING IT ANYWAY. STUPID IS THAT SOMETHING GREATER. Stupid is that uncertain thing that might go wrong still. Stupid is STORMING the Bastille and throwing open the jail cell doors. Stupid is the idea of networking every computer, everywhere. Stupid is hopping the night train to Prague with 17 Euros in your pocket. Stupid is actually going up and talking to that girl at the end of the bar rather than just talking to your buddy about how you should go talk to that girl at the end of the bar. Stupid is singing songs about Mordor. Stupid is jumping the Snake River Canyon on your glorifi ed crotch rocket. Stupid is deciding to drop out of university so that you better build shit in your parent’s garage. Stupid is still pursuing the electric car dream some 118 years later after it began. Stupid was the fi rst notion that maybe you didn’t have to paint things how they looked, but how they made you feel. Stupid was the idea of building a transcontinental railroad where no people, let alone towns, even existed. Stupid is wreaking havoc with your typeface to the point of illegibility. Stupid is the first guy who realized you could extract and synthesize the humble coca leaf in to a fine, white snortable powder. Stupid is concerning yourself with defending the innocent presumed guilty. Stupid was the very first realization of the bikini. Stupid was thinking beyond the position missionary. Stupid is setting boot to moon dust. Stupid is accepting the last-minute invitation out even though you could really use the sleep.

STUPID IS WHISTLING WHILE YOU WORK. Doing is deceptively simple: BEING STUPID MEANS LISTENING TO YOUR HEART VERSUS LISTENING TO YOUR HEAD. LISTENING TO YOUR HEART IS HARD. YOUR HEART SAYS ‘YES’ AND YOUR HEAD SAYS ‘NO.’ YOUR HEAD ALMOST ALWAYS SAYS ‘NO.’ Say ‘no’ and you stay in your climate-controlled, hermetically-sealed comfort zone full of hundreds of channels, none of them showing a damn thing good. Say ‘yes’ and you might have to actually get out there and do something. Only by ignoring the chorus of ‘don’t’s, ‘can’t’s and ‘won’t’s can you come up with something wholly and completely unique. Sometimes that’s just a wholly and completely unique way to fail, but at least it’s something. Getting your ass kicked by the tag team of trial and error? Now this way goodness lies. Happy Accidents. Unintentional Consequences. Penicillin. Put another way, if you succeed right out of the gate, you probably weren’t trying hard enough. If at first you don’t fail — try, try, try again. BECAUSE THE FACT IS, IF WE DIDN’T HAVE STUPID THOUGHTS WE’D HAVE NO INTERESTING THOUGHTS AT ALL. But don’t get us wrong: STUPID AIN’T DUMB.

We’re asking you to turn against all your pre-programmed, screaming DNA directs you to be. We get it. People have fear. People have fear for a reason. After all, being stupid isn’t all it’s cracked up to be. Not only is failure an option, it’s pretty much a given. Sucks for you. The trick is just not fearing it. Or fearing it, but not letting on that you’re absolutely, positively terrified. Like the way you do with scorpions and handles on public toilets. But sometimes the reason for that fear doesn’t always make sense – not when the reward is so great and the risk is so (relatively) small. Sure, you might get hurt. But you might not. Or you might get hurt and getting hurt might be the best thing that ever happened to you. Getting hurt just might be the thing that makes you gnash your teeth and gird your loins and do the heretofore undoable — fighting back against That Wretched Unknown. Only then will you discover that That Wretched Unknown often cowers like a pussy.

The next time you desire to act but there is that automatic, omnipresent and looming voice of self-doubt booming forth telling you, DO. “DON’T BE STUPID,” GET HURT. Enjoy a good fail now and again. Accept that there is no such thing as an original idea and then go inadvertently stumble upon some. BE STUPID!

terça-feira, abril 13, 2010

Casa vazia


Chegou a casa pouco depois do entardecer. A casa vazia, muda e às escuras. Tal e qual como ela se sentia: vazia, muda e às escuras. Sentia-se como se tivesse acabado de ser desalojada de um lugar do qual se apropriara indevidamente. E tinha. Apropriado e sido desalojada. Nova mensagem no telemóvel. Não, nada de especial. Mensagem a recordar o jantar, o mundo lá fora, a vida a continuar. Impossibilidade terrível uma vida que continua quando devia cessar. Pediu para começarem sem ela. E deixou-se cair na cama. Chorou até esgotar a última lágrima abraçada aos poemas. Releu todos outra vez, pela milésima vez, como quem ata uma corda áspera à garganta até perder o ar. Até deixar de doer. Não perdeu o ar e aquilo ainda lhe doía quando acordou. Tanto! Sabia lá que poderia ser assim tanto!... Ela não lhe entregara o corpo; consagrara-lhe o coração. E ele deixou-o cair.

segunda-feira, abril 12, 2010

sábado, abril 10, 2010

Han Suyin: A colina da saudade


"Era a pausa depois do amor. Estávamos estendidos entre as altas ervas, na encosta da colina, aquecidos por um generoso sol. O céu, por sobre as nossas cabeças, estendia-se até ao infinito. Rochas de granito, fetos e mirto anão por todos os lados nos envolviam. E o mar azul, enrugado, solitário, sem uma única vela na infindável tarde primaveril começava mesmo ali, no sopé da colina. Falávamos calmamente, libertos de nós próprios. Palavras prudentes, circunspectas. Falávamos daquilo que nesse momento não tinha poder para nos causar sofrimento. Lucidamente especulávamos sobre a ausência, sobre a nossa separação, sobre os nossos universos que se fragmentavam mais e mais. Em nossas vozes desincarnadas e calmas assumíamos a palavra que só emerge nos humanos após o amor.

«Pode ser que venha a escrever alguma coisa a teu respeito, mas não por agora. Neste momento a alegria que há dentro de mim é tão grande que me contento em vivê-la; o saber-te sempre presente em mim enche-me de alegria. Se tu me deixasses, então talvez, e mesmo por outra razão, talvez pudesse escrever um livro a teu respeito (...). Desenterrarei todas as minhas recordações, porque sou uma profanadora nata. E fá-lo-ei antes que o amor que te tenho desapareça tão inelutavelmente como a maré que deixa a praia molhada, juncada de inúteis destroços, antes que a natureza implacável feche a ferida que me tiveres feito e falsifique a emoção das palavras que tivermos pronunciado. Antes que me seja preciso reabrir as cicatrizes para fazer verter sangue, essas insensíveis cicatrizes da tristeza e da alegria. Contarei como nos amámos e como lutámos para não sermos destruídos pelos pequenos nadas da existência. E como ele nos destruíram e como nós os esquecemos. Tal como toda a gente. Porque somos, nem mais nem menos que quaisquer outros amantes efémeros e imperfeitos num mundo eternamente inconstante.»

«Que retórica!", disse Marco. «Achas então que os outros sentem na sua carne tanto prazer e tanta felicidade como nós? Pensas seriamente que um tal amor possa ter fim? Pois eu não, não creio.» E olhou à sua volta, como se procurasse confirmação. Mas nada havia senão mirtos, altas ervas, fetos, a encosta, o mar, e nós, dourados pelo sol que nos banhava.

«Querido amor, mesmo as horríveis gentes barrigudas deste mundo supõem amar como nós e também para sempre. Todos os amantes têm a mesma ilusão; supõem-se, a si, únicos e as suas palavras imortais.»

«Talvez não passe de uma ilusão», concordou Marco, «mas é a única verdade que tu e eu possuímos. Por conseguinte gozemo-la enquanto pudermos. Porque também pode ser, bem-amada, que tenhamos pouco tempo - muito pouco tempo - para nos amarmos.»

quarta-feira, abril 07, 2010

A lua

[Olivia Bee]


"Ontem a lua soltou-se, declinou e caiu fora do cenário - que perda incrível; parte-se-me o coração só de pensar nisso. Não há coisa alguma, na ordem dos ornamentos e decorações, comparável à sua beleza e acabamento. Devia estar mais bem presa. Se ao menos a pudéssemos ter de volta...

Mas claro que ninguém sabe para onde é que ela foi. Para além disso, quem quer que a apanhe esconde-a; sei-o porque é o que eu própria faria. Acho que sei ser honesta em todos os assuntos, mas já começo a perceber que o centro e o núcleo da minha natureza é o amor belo, a paixão do belo, e que não seria seguro confiarem-me a lua que pertencesse a outra pessoa, se essa pessoa não soubesse que eu a tinha.

Poderia desistir de uma lua que encontrasse à luz do dia, por causa do medo de que alguém me estivesse a observar; mas se a encontrasse no escuro, tenho a certeza que acharia algum tipo de justificação para não contar a ninguém. Porque eu amo luas, são tão bonitas e românticas. Oxalá tivéssemos cinco ou seis; nunca iria para a cama; nunca me cansaria de as mirar, deitadinha no musgo..."

Mark Twain in Os diários de Adão e Eva

terça-feira, abril 06, 2010

Stendhal: O vermelho e o negro

Ele bem dizia que seria compreendido em 1900! Em 1900, fim do século XIX?! Em 2010, em pleno século XXI! Dirá bem do livro, mas muito, muito mal de nós. "O vermelho e o negro" foi escrito há 180 anos; poderia ter sido escrito hoje de manhã. É o retrato fidelíssimo de uma sociedade cuja ambição, de tão cega, substitui as escadas pelo elevador. O retrato de uma sociedade separada por corredores intransponíveis, e cujas aparências são tudo, mesmo quando traídas pelo fervor da paixão. O livro de Henry Beyle, verdadeiro nome do senhor, não é sobre a sociedade parisiense; é sobre o mundo quase todo. O dito desenvolvido, pelo menos. Não chorei no fim, como me tinham garantido, porque desde o início não empatizei com Julien Sorel, mas, sem querer exagerar, este é bem capaz de ser um dos melhores livros que alguma vez li.

"Não é o amor que se encarrega da fortuna dos jovens dotados de talento como Julien; prendem-se com um abraço invencível a um grupo e, quando este triunfa, tudo o que há de bom na sociedade chove sobre ele. Desgraçado do homem de estudo que não pertence a grupo algum; censurar-lhe-ão até os pequenos êxitos bastante incertos, a alta virtude triunfará roubando-o. Senhor, um romance é um espelho que se passeia ao longo de uma estrada. Tão depressa reflecte aos nossos olhos o azul dos céus como a lama dos lamaçais da estrada. E o homem que leva o espelho no seu alforge será por vós acusado de ser imoral! O seu espelho reflecte a alma, e vós acusais o espelho. Acusai antes o caminho onde está o lamaçal, e mais ainda o inspector das estradas que deixa empoçar a água e formar o lamaçal..."

sábado, abril 03, 2010

Stuck


Esta rapariga anda zangada com o mundo. E, pelos vistos, sem dinheiro. Pôs-se a cantar para espantar os males. A música, Stuck, é de fugir. Mas a letra é de ficar. Um bocadinho, vá. E que não fosse! Lindsay Lohan, como se sabe, neste blogue, pode tudo. We love her!
I wasn't looking but I found you,
I wasn't ready but you got me anyway,
I wasn't looking but I had to
And now it seems like I can't never look away
I'm going down down down
I'm not myself when you are around
Not matter what I do
It's too fast, too slow
This won't last but I should go
But I can't help it
I can't, I am stuck stuck stuck
I can try to run but I am out of luck,
It doesn't matter where I go, I feel stuck,
Sticky fingers, sticky hands, sticky…
I'm stuck stuck stuck
And I ain't going I'm stuck
I didn't listen but I heard you
I wasn't there and yet you swept me off my feet
And there is no one I can turn to
Yeah, I can run but you have got me on the peak,
I'm not okay,
Once again my heart got in the way,
Not matter what I do
It's too wrong, too right
Try to reason, tried to fight
But I can't help it
I can't, I'm stuck stuck stuck!!!

Em contra-ciclo, as usual...


A maior parte das pessoas, se soubesse o que sabe hoje, teria feito tudo ao contrário. E se o tempo pudesse andar para trás, ficaria feliz com a inóspita possibilidade de trilhar um caminho diferente. Mas, sobretudo, claro, com a possibilidade de repetir a juventude, que é sempre tão esplendorosa e imaculada... quando vista à distância. A maior parte das pessoas, se pudesse, ofereceria de bom grado a alma ao diabo para ter 18 anos a vida inteira, pele esticada, bíceps no lugar, no peito as ambições todas ainda por vir: a carreira, o poder, o prestígio, o luxo, as casas, os carros, tudo no plural, tudo o que a sociedade nos formatou para desejarmos. A felicidade na proporção do que o dinheiro pode comprar. O mundo inteiro na palma da mão. De preferência, com uma legião de lacaios por perto, naturalmente.

Não sabendo nada do hoje move a maioria, eu daria tudo (menos a alma) para ter já 60 anos, usar chapéu de palha ao nascer do dia, ter só dois vestidos no armário, pés descalços ao entardecer, retirar-me tranquilamente deste circo e viver o resto dos dias numa casa de pescador no Alentejo rodeada de livros e pessoas, poucas, que não sabem o que são gadgets, nem ferramentas topo de gama, nem redes sociais, nem trampolins profissionais, nem atropelos e afins. Viver só do que dinheiro nenhum pode comprar. O céu inteiro na palma da mão. De preferência, com uma legião de estrelas por cima. Cadentes também, naturalmente.

sexta-feira, abril 02, 2010

"There is no goodbye, Chunky Rice."

"I am a turtle. My home’s on my back. And yet I feel the only home I’ll ever have is in the space where our roads merged and traveled along together... for a time."
Craig Thompson, Good-bye, Chunky Rice

terça-feira, março 30, 2010

A musa


Amas a musa. Ama-la quase desde sempre e vais amá-la dessa forma perdida, rendida, cega, até ao último dia da tua vida. Ama-la, mesmo temendo amá-la mais do que ela a ti, dúvida que carregas, mas que nem sequer te pesa. Ama-la apesar dos desvios, das arestas, das injustiças, das tempestades. Ama-la com um medo terrível que ela te deixe, que ela te troque. Não irias suportar vê-la com outra pessoa. Por isso, vais aguentando, apagando o que corre mal, reconstruindo o caminho, porque sabes que a vida é assim: se não te deixares engolir pelo pesadelo, se o souberes enfrentar, é porque terás estado à altura do sonho. E a vida, acreditas, vai-te compensando por isso, mantendo-te casado.

Inconscientemente, acreditas que o amor se pode reter, rentendo a pessoa que se ama. Porque não saberias o que fazer contigo, ao amor que sentes, se perdesses o alvo desse amor. Porque se o perdesses, ao olhar para trás, sentirias que a tua vida não fez sentido, porque toda a tua vida foi dedicada a essa mulher que te corta a respiração, a mulher do uniforme curtinho, das pernas morenas, dos pés lindíssimos, dos lábios voluptuosos, vermelhos, molhados. E tu amaste tanto, construíste tanto, partilhaste tanto, aguentaste tanto, superaste-te tanto, perdoaste tanto, fizeste filhos lindos, foste tão feliz, viveste tanto, dedicaste-te tanto, acreditaste tanto, amaste tanto... o que irias fazer a isso tudo, não é?

Tu nunca traíste a musa. Nunca! Nem mesmo quando, nos últimos capítulos, acumulaste namoradas ou amantes ou (a)casos ou o que quer que seja que lhes queiras chamar. O teu coração nunca esteve lá, nas outras camas, nos outros (a)braços, o teu coração nunca vacilou. Nem sequer foi tua a ideia do swing nem das ménages nem do resto. Por ti, experimentarias tudo o que há para experimentar, mas apenas com ela, com a tua musa. Descobriste o amor da tua vida aos 15 anos, já passaram mais de 40!, e tu nunca duvidaste. Tiveste a certeza que era ela ainda antes de saberes sequer o que era o desejo, ganhaste-a aos vinte e tal, mas antes disso já lhe dedicavas poemas, canções, e se a musa nunca vacilasse, tu passarias muito provavelmente a tua vida inteira a viver para ela em exclusividade. Sem nunca olhares para o lado, sem nunca provares outro sabor. E a seres tremendamente feliz com isso.

Tu não sabes, ou não queres saber, mas tu não vives com o amor da tua vida. Já não vives. Vives com o amor que sentes pelo amor da tua vida. Parece a mesma coisa, mas é tão diferente. Porque o amor, tu sabes, para ser da vida, não pode ser como o teu parece ser: intermitente, ausente, apagado, silencioso. Olho para ti e vejo-te a olhar para o tecto em vez de te ver olhar para o céu. Olho para ti e vejo-te com um corpo morto no colo, que te recusas a enterrar. Não consegues ser feliz com ele; menos ainda conseguirás ser feliz sem ele.

segunda-feira, março 29, 2010

Why should we live with such hurry and waste of life?



"The millions are awake enough for physical labor; but only one in a million is awake enough for effective intellectual exertion, only one in a hundred millions to a poetic or divine life. To be awake is to be alive. I have never yet met a man who was quite awake."
Henry David Thoreau

sexta-feira, março 05, 2010

Bullying em Mirandela II

[Recebi este comentário de um senhor chamado Carlos, a quem agradeço. Achei que devia ter a visibilidade de um post. Reproduzo-o com a devida vénia.]
Srs Directores da Escola, Srs Professores, Srs Funcionários, Srs do hospital que assistiram o Leandro, Srs da Associação de pais, Srs do ME e em geral a todos os que podiam ter ajudado, directa ou indirectamente, uma vítima inocente:

Se eu não tivesse feito tudo o que estava ao meu alcance para ajudar o pequeno Leandro. Se eu, por ter erguido uma barreira, tivesse impossibilitado um pedido de ajuda. Se me chegasse um relatório a dizer que na Escola não existiam casos de bullying, e eu não tivesse entrado em alerta, porque sei que em todo o lado há casos de bullying. Se um aluno meu tivesse sido hospitalizado por agressão, a mãe tivesse já vindo à Escola implorar ajuda, e enquanto se procura o corpito do filho eu viesse dizer aos jornais que na minha escola não há registos de casos...

Então, meus senhores, eu não conseguiria viver com a imagem da criança a fugir dos agressores, vendo durante anos, toda a gente a virar a cara ao lado sonhando com uma reforma dourada. De noit,e eu iria acordar com o pesadelo da minha culpa por omissão, no homicídio por negligência grosseira, vejo-o a despir-se, a gritar que não aguenta mais, a saltar, entrar na água gelada e sobretudo a despedir-se de todos nós enviando uma última mensagem, que cobardemente? eu fingi durante anos não perceber, e mesmo hoje mais não faço do que sacudir a água do capote.

Então, meus senhores, não aguentando o peso da culpa, eu me afogaria nas águas do Tua, procurando o perdão do pequeno Leandro e do seu irmão gémeo que a tudo assistiu impotente.
Que Deus vos perdoe que eu não posso.

Nota para o Leandro:
Apesar de nunca te ter conhecido, sinto que também eu, enquanto cidadão deste País atrasado, sou em parte culpado. Repousa em paz.

Carlos.

quinta-feira, março 04, 2010

Bullying em Mirandela

Ontem, Christian não foi à escola. No dia anterior, almoçou à pressa na cantina, saiu aflito para o recreio quando viu, mais uma vez, o corpo franzino de Leandro, primo e amigo de 12 anos, ser espancado por dois colegas mais velhos. Depois, perseguiu o rapaz que, cansado da tortura de quase todos os dias, ameaçou lançar-se da ponte, ali a dois passos. Perseguiu-o, impediu-o. Por fim, imitou-lhe os passos, degrau a degrau, até à margem do rio Tua. O primeiro estava decidido a morrer: despiu-se, atirou-se. O segundo estava decidido a salvá-lo: despiu-se, atirou-se.

Leandro morreu – é a primeira vítima mortal de bullying conhecida em Portugal; Christian agarrou-se a uma pedra para sobreviver. Antes, arriscou a vida a dobrar: digestão em curso em água gelada. Eram 13.40 horas. Ontem, não foi à escola. Os pesadelos atrasaram-lhe o sono. Acordou cansado, alheado, emudecido. Leandro não é caso único. Ele também já foi agredido.

Christian não é o super-homem; não é sequer rapaz encorpado; é um menino assustado, tem 11 anos, não terá 40 quilos, o rosto salpicado de sardas e tristeza. Os olhos dos pais pregados nele, os dele cravados no chão da sala. Não estava sozinho na luta. “Estava eu, o Márcio (irmão gémeo de Leandro), o Ricardo...”, este e aquele, os nomes dos amigos como um ditado, ele encolhido, no colo um cão minúsculo a quem insistentemente afaga o pêlo. “Não conseguimos salvá-lo, já estávamos tão cansados”.

O lamento sabe a resignação e à inquietação de quem veio de outra escola, em Andorra, Espanha, onde “há mais pequena coisa, os professores chamavam os pais”, recordam, “preocupados”, Júlio e Júlia Panda, pais de Christian, filhos da terra, Mirandela, no cume de Trás-os-Montes, retornados há pouco mais de um ano, trazidos com a crise e o desemprego. Vivem agora na aldeia de Cedainhos, a 15 quilómetros da cidade, lugar estacionado no tempo, onde vivia também Leandro e onde todas as casas, com laços mais ou menos próximos, são casas da mesma família.


Um palmo acima, na mesma rua, vive a avó, Zélia Morais. Tem a cozinha cheia netos, mais de dez, netos de todas as idades, os gritos inocentes dos mais novos a misturarem-se na dor dos outros. Sabe tudo ao mesmo fado. É a imagem da desolação, ela prostrada no sofá, o coração com febre. “O meu menino era tão humilde. Todos os dias vinha saber de mim. Todos os dias”, palavras repetidas, embrulhadas em falta de ar. “E agora?”

Agora, responde o filho Augusto, homem de meia idade, que a coluna prendeu a uma cadeira de rodas, “agora, nem que tenha de vender tudo, vou até ao fim do mundo para saber quem levou o meu sobrinho a matar-se”. A ameaça parece dura, dura um segundo, ele desfaz-se em pranto. “O meu menino sentava-se aqui comigo, conversava como adulto, era a minha companhia”. Os pais de Leandro também vivem ali; não estão. “Estão em casa amiga, passaram a noite no hospital”.


Ontem, Christian não foi à escola. Mas na escola dele – EB 2/3 Luciano Cordeiro, onde partilhava o 6º ano com Leandro –, o dia foi normal. Nem portas fechadas nem luto nem explicação. O porteiro do turno da tarde entrou às 15h, bem disposto. “Sou jornalista, queria uma entrevista”, ironizou. Tiro no pé. O JN estava lá. Perdeu o humor, convidou-nos a sair “já”. A docente que saía do recinto também foi avisada da presença da imprensa, inverteu a marcha, já não saiu. Havia motivos para baterem tantas vezes no Leandro? Responde Christian: “Todos batem em todos”.

segunda-feira, março 01, 2010

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

A estrada larga da alma

"A Estrada Larga. A grande casa da alma é a estrada larga. Nem céu, nem paraíso. Nem "acima", nem mesmo "dentro". A alma não está acima nem dentro. É um viandante a caminhar pela estrada larga. Não pela meditação. Nem pelo jejum. Nem explorando céu após céu, interiormente, à maneira dos grandes místicos. Nem pela exaltação. Nem pelo êxtase. Não é por nenhum destes caminhos que a alma se preenche. Mas só fazendo-se à estrada larga. Não através da caridade. Nem do sacrifício. Nem mesmo do amor. Não através das boas obras. Não é assim que a alma se realiza. Mas só através da viagem pela estrada larga. Da viagem em si mesma, pela estrada larga. Exposta a todos os contactos. Em dois lentos pés. Cruzando-se com tudo o que venha pela estrada larga. Na companhia dos que vogam ao mesmo compasso pelo mesmo caminho. Para nenhum destino. Sempre a estrada larga. Não tendo sequer direcção conhecida. Permanecendo a alma apenas fiel no trajecto a si mesma. Cruzando-se na estrada com todos os outros viandantes.

(...) A alma não deve acumular defesas à sua volta. Não deve retirar-se para procurar o céu dentro de si, em êxtases místicos. Não deve clamar por um Deus transcendente, pedindo para ser salva. Deve fazer-se à estrada larga, à medida que a estrada se vai abrindo ao desconhecido, na companhia daqueles cuja alma os leva para junto dela, nada realizando além da viagem, e das obras inerentes à viagem, à longa viagem de uma vida inteira rumo ao desconhecido, através da qual se realiza a alma, nas suas subtis simpatias..."

D.H. Lawrence sobre Walt Whitman e a sua "mensagem essencial". Whitman, o "bom poeta encanecido", o poeta americano na Totalidade e do amor livre, o poeta do Eu, morreu há 118 anos. O dia 26 de Março é uma boa altura para reler a sua poesia.

A função essencial da arte

"A função essencial da arte é de natureza moral. Nem estética, nem decorativa, nem de passatempo e recreio. Mas moral. A função essencial da arte é de natureza moral. Mas uma moral apaixonada, implícita, não didáctica. Uma moral que modifique o sangue e não o espírito. Que modifique primeiro o sangue. O espírito virá depois, por arrastamento."
D. H. Lawrence