"(...) Um texto recente de um teólogo contemporâneo, Christoph Theobald, intitula-se “O cristianismo como estilo”. E, de facto, o cristianismo não é uma ideologia. Não é no plano ideológico que nós o encontramos. O cristianismo é um estilo no sentido em que ele é a expressão de um modo de ser, de um modo de viver. É uma decisão histórica por um determinado estilo de vida, uma determinada vivência, que depois se torna uma marca. É muito interessante reflectir sobre isso, mesmo a partir do texto bíblico.
Há uma parábola de Jesus em que parece que Jesus está a falar do ponto de vista dos mercados, de uma lógica da procura do lucros, que é a parábola dos talentos. Aquele senhor que sai em viagem e distribui de forma diversa talentos pelos seus colaboradores: a um dá cinco, a outro dá três, a outro dá dois, e a outro dá um. Todos vão multiplicar os talentos, vão investir, vão criar coisas novas com aquilo que receberam. Mas aquele que recebeu só um talento faz este raciocínio: eu sei que ele é um homem severo, que quer recolher onde não semeou. Por isso, o que vou fazer é enterrar este talento, conservá-lo intacto, e quando ele voltar e pedir-me o talento, vou entregar-lhe o talento que recebi.
Nós vivemos hoje, epocalmente, historicamente, um período depressivo como sociedade. Temos medo do futuro, estamos apreensivos com o presente, com o que virá. E a nossa lógica social ou pessoal é muito a de decidirmos que não nos estão a ser oferecidos cinco talentos, nem três, mas apenas um talento. E a questão é: o que é que nós fazemos com isso? De facto, a grande tentação é a de enterrarmos o talento. E porque é que o homem enterra o talento? Enterra o talento porque a representação que ele tem do seu Senhor é de alguém severo, intransigente, que não o compreende, que não o apoia e que de forma muito intrusiva acaba por querer o que ele não pode dar. Então, ele enterra simplesmente o talento e desiste. Desiste de viver, desiste de apostar.
Nós sabemos que todos os outros são elogiados pelo Senhor, mas este é repreendido. E aquele talento é-lhe retirado. Porquê? Porque o pior que nos poderia acontecer seria interiorizarmos, no tempo actual, uma representação do presente, do futuro, daquilo que é a vida, como sendo uma vida severa que nos quer tirar aquilo que não nos deu. Porque aí, nós simplesmente desistiremos de ser.
O cristianismo como estilo desenvolve-se em circunstâncias que nem sempre são as circunstâncias ditas favoráveis ou aquelas que reúnem todas as condições necessárias para nós fazermos a aposta. É Pascal quem define o cristianimo como uma aposta. Quais são as condições que cada um de nós requer para fazer da sua vida uma aposta? Uma aposta fecunda, uma aposta em vista da plenitude?
Lembro o testemunho de uma mulher, ela era judia, mas muito próxima do cristianismo, Era uma mulher que nas horas mais sombrias do século XX, aquando da invasão dos nazis, ela tinha possibilidade de fugir, tinha amigos na clandestinidade que a aconselhavam e a pressionavam a fugir, mas ela resistiu e impôs-se contra esses amigos dizendo: "este momento para o povo judeu (pena no Holocausto) é um momento de tal forma misterioso que não posso isentar-me de participar nele até ao fim, até ao fundo no seu destino." Ela recusa passar à clandestinidade. E mais: faz um gesto absolutamente insensato, insolente, ofecere-se como voluntária para o campo de concentração. Depois, é feita prisioneira, e ela também morre em Auschwitz.
Mas a história desta mulher e o caminho de descoberta que ela faz noutros momentos mais frágeis, mais duros, mais sem salvação do século XX, é uma coisa que se torna numa parábola da própria esperança. No fundo, que imagem é que nós interiozamos e que imagem é que ela interiorizou? Eu penso que também a ela só lhe foi dado um talento. E contudo ela fez daquele talento uma história de vida.
De maneira que o estilo cristão não depende dos tempos, não é apenas uma coincidência com o nosso tempo. O cristão é chamado a não coincidir com o seu tempo, o cristão estabelece ele próprio uma crise, porque o cristão é chamado a sinalizar a iminência. A iminência de uma realidade outra. O cristão é chamado a ser sentinela de uma outra realidade em todos os tempos. Em todas as circunstâncias. Se nos conformamos apenas com o tempo não seremos capazes de exercer a nossa função de fermento, de inspiração, no próprio tempo. E estes tempos que nós estamos a viver, tempos maus, tempos duros, estes tempos precisam de inspiração, precisam daquilo que João Paulo II, na profética carta que preparava a entrada no terceiro milenio, dizia ser a fantasia da caridade. Desafiar os cristãos a terem, a reinventarem, a ousarem a imaginação, a fantasia, a ousadia, a pensar aquilo que pode ser a caridade.
Para nós, esta hora não é apenas uma hora de restrição. Não é uma hora de abrandamento, é uma hora de aceleração. Não pode ser apenas a hora do medo em que enterramos o talento, mas esta é a hora para fazermos a aposta. E eu penso que no interior deste poli território social – e as redes sociais em que cada um de vós é um actor privilegiado dessa multiplicidade de expressões que a Igreja tem no campo sicial – esta é uma hora para fazer apostas. Não é hora do medo, não é hora de dúvidas. É hora da imaginação, do empreendedorismo, a hora de ousar passos novos, realidades novas, de uma forma muito testemunhal. Desde a capacidade de termos projectos em conjunto, de nos ajudarmos mais, de uma cultura muito mais de colaboração, de solidariedade, até de facto atitudes que podem surgir, este é um tempo de inovação. Este é um tempo em que a realidade se torna um laboratório para a caridade, para o amor, para a solidariedade, para aqueles valores que fazem parte do nosso ADN como cristãos,
Pensando no cristianimo como estilo, e usando as palavras de Sigmund Barth, o teólogo polaco, ele diz: "é preciso passar da cultura de consumo, da vida que se consome - e no fundo nós sabemos que estas duas últimas décadas foram do endeusamento do consumo, pensando que essa era uma fonte de felicidade, de progresso infinito, ilimitado, que no consumo é que nos realizávamos como pessoas - passarmos de uma vida que consome a um vida que não desiste de se consumar. A verdade é que nós consumimos experiências, consumimos bens, consumimos realidades, e a nossa vida fica adiada, fica por consumar.
Quando se diz que mais importante que consumir é consumar, há aí de facto um desafio a fazermos escolhas muito concretas de modelos de felicidade. No fundo, esta crise também é uma crise de modelos de felicidade. O que é para nós a felicidade? A realização pessoal? Que tipo de mulher, que tipo de homem somos? Que tipo de sociedade estamos a construir? Essa é a reflexão mais funda que é necessário fazer. E, sem dúvida, há aqui um trânsito que nós temos de operar.
Outro desafio importante tem a ver com a redescoberta do dom. O Santo Padre Bento XVI tem na encíclica social uma página admirável sobre a necessidade de redescobrir o dom, a lógica do dom, a circulação do dom. E a verdade é que nós proprios desacreditamos muito no dom, na força que o dom tem, que não é apenas de somar. O dom tem uma lógica de multiplicar. Os evangelhos estão cheios disso, como a experiência do pão que se multiplica. Um pão que se reparte em princípio fica mais pequeno. No entanto, ali, pelo contrário, quando se reparte multiplica-se, acaba por sobreabundar. Essa multiplicação é uma lógica interna ao dom. A experiência que fazemos do dom é que as coisas crescem, dão para muito mais. A sua finalidade torna-se muito mais clara. É a sua capacidade de chegar a todos, que é uma coisa da qual não podemos desistir, mas torná-se uma realidade efectiva. E no dom temos que fazer perguntas.
Lembro-me de uma conversa na televisão entre Manoel de Oliveira e Judite de Sousa. Ele colocava uma questão muito curiosa: "Imaginemos uma sociedade sem dinheiro, em que o instrumento de troca era o dom, a dádiva. Se calhar, como socidade no seu todo não podemos dispensar o dinheiro, mas se calhar a nível da família, das relações mais próximas, a nivel do nosso prédio, bairro, instituição, nós podemos encontrar formas colaborativas que não precisam de dinheiro, que tenham outras fórmulas de valoração, com divisão e partilha. E o que me parece importante é a ousadia das perguntas. Ou seja, não considerar que os modelos que nos serviram até aqui são o único caminho e que sem eles não conseguimos mais viver. Isso seria um engano. A vida sobrepõe-se aos próprios modelos organizacionais. É preciso encontrar novos modelos e ter ousadia de colocá-los em prática e de chamar a atenção para eles, iluminá-los."
*Na Semana Social, no Porto
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