"Hei-de dizer-te, agora sem o pudor das palavras que tanta vez me reteve, como me comovia o som da tua voz, quando me lias alto, na cama, os artigos dos jornais estrangeiros que de antemão sabias poderem interessar-me. Quantas vezes me apeteceu interromper uma conversa séria ou um almoço rápido e quase silencioso para ir beijar um reflexo de luz nesse teu nariz muito levemente aquilino, de que tu não gostas, ou as tuas mãos finíssimas e hábeis em todos os momentos, a compor uma mesa, a desenhar com humor ou a consertar utensílios escangalhados. Porque tu és uma fada morena e discreta que não sabe que o é.
Quando, o que é raro, te tornas exuberante, fico sempre muito feliz, até porque o teu riso canta e a tua boca se entreabre como uma flor húmida, vermelha de alegria. Já te amava, Matilde, antes de te conhecer.
(...) A redução do meu horizonte de vida, a própria degradação do meu corpo fragilizado (ando cheio de manchas na pele, devido aos derrames) tornam-me mais egoísta (...) Todos os dias enceno a nossa festa a três. (...) Mas há intervalos, há a inevitável solidão de todo o ser humano, por muito que me esforce para lhe fugir. Vou morrer ciente de que morro, dialogando também dia a dia com a minha morte, medindo-a, antecipando-a, imaginando no antes e no depois, isto é, na remota hipótese de eu ser mais alguma coisa do que um fio transmissor, uma irrisória partícula deste grande ser colectivo, contínuo e incessantemente renovado que é a Humanidade."
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