terça-feira, agosto 06, 2013

Pedro Santos Guerreiro: Diálogos entre mudos e surdos


[Editorial com potencial para estragar o Verão. Ou só um banho de realidade.]

Ainda estávamos a aprender a dizer Subir Lall quando anunciaram nova mudança na troika, pela Comissão Europeia. Ainda ninguém terá decorado o seu nome, mas já sabemos mais do que pensa John Berrigan antes de entrar do que de Jürgen Kröger depois de sair. E o que Berrigan diz é tão surpreendente quanto esclarecedor: a política europeia tornou-se a arte de manipular a opinião pública.

Jürgen Kröger não deixa saudades. Não deixa ódios. Não deixa alegrias. Não deixa nada. O alemão não tinha força na Comissão. Nem na troika, que sempre foi comandada pelo FMI e teve uma só pessoa poderosa: Poul Thomsen. De resto, a troika executou assessoria técnica e negociações delegadas pelos seus chefes da Comissão, FMI e BCE. Não é crítica, é constatação. Mas agora as coisas estão a mudar.

O FMI está de "saída" da Europa, o que os europeus perceberiam bem se fossem não europeus. O FMI não é eleito por povos, mas tem países como accionistas. Aí se joga também o poder entre emergentes e decadentes, entre hemisférios Norte e Sul, entre pobres e ricos - e mesmo entre os ricos da América e os ricos da Europa. Como disse António Borges, a mera sucessão de Strauss-Kahn por Lagarde prejudicou a influência europeia. E países de África e da América Latina nunca perceberam por que razão o dinheiro estava a ir para o continente mais rico do mundo, a Europa. Esse tempo acabou.

A Comissão Europeia não parece maçada. A chamada do FMI nos resgates não foi consensual e a tese que domina é de que agora a UE já aprendeu o que precisava com o FMI sobre resgates, pelo que já não precisa de gente de fora. Na verdade, o que a Europa parece estar a dizer é de que quer fazer as coisas à sua maneira sem o FMI a fazer perguntas.

O FMI não sai coberto glória. O célebre relatório interno sobre a Grécia mostrou que a troika mentiu ao povo grego. Os modelos não se adaptaram a uma moeda única, onde a desvalorização cambial foi substituída por desvalorização interna, sobretudo salarial. Mas o FMI também mandou em Portugal por falta de comparência. A Comissão Europeia mandou a receita das reformas e ficou à espera. Depois, como uma conversa inadvertidamente escutada entre os ministros das Finanças português e alemão revelou, o importante era Portugal cumprir ou fingir que cumpria, para que os alemães não questionassem. A ajuda viria pela calada. Como veio. Como virá.

John Berrigan (um irlandês que em rigor se chama Sean Berrigan) pensa assim. O Negócios ouviu uma aula do novo membro da troika há três meses em Oxford com afirmações claras. O vídeo e declarações estão no blogue da nossa redacção, o "Massa Monetária". Vale a pena ler e ouvir. Afinal, é este o pensamento que domina em Portugal, mesmo se pensando mais por nós do que em nós.

A parte mais interessante respeita a um tema que soa técnico, a União Bancária, mas é muito menos técnico que político. Como diz Berrigan, a União Bancária "será provavelmente a maior transferência de soberania para o centro, até diria que superior à criação união monetária", em que "estamos a tentar transformar autoridades nacionais em denunciantes." Não é coisa pouca. Aliás, "sejamos claros: se não revertermos esta fragmentação nos mercados [de crédito], o mercado único está ameaçado, assim como a recuperação da periferia".

A aula de 50 minutos de Berrigan não é um excitante concerto de rock and roll, mas é uma exposição arrepiante pela simplicidade sobre como é que a "coisa" funciona. A "coisa" é a política europeia. É aliás surpreendente ver que muitos preconceitos são mesmo verdadeiros. Incluindo sobre alemães, holandeses ou finlandeses. Há a percepção "em alguns Estados de que os empréstimos a outros Estados-membros não são empréstimos, mas bolsas que não voltam. (…) Apesar de termos tentado explicar às pessoas nestes países que estão a ganhar dinheiro com estes empréstimos, isso não está a funcionar". De facto, diz, "há um ajustamento doloroso a acontecer que nem sempre é reconhecido nos países do Centro, onde há uma percepção de que nada está a acontecer, e de que os empréstimos estão a sair sem que os países façam o que devem".

Outro preconceito confirmado é o do amadorismo das soluções europeias: "Muitas vezes temos de tomar decisões depressa, por vezes muito depressa, e depois temos de reparar essas decisões com o tempo. Um bom exemplo é o FEEF [primeiro fundo da Zona Euro que financiou Portugal] que inventámos quatro horas antes de Tóquio abrir e depois passámos seis meses a tentar substituí-lo com o que queríamos desde o início, que é o MEE [o actual fundo]".

Disto se percebem muitas coisas, da estupidez do "bom aluno" ter sido acrítico ao mito do "bom professor" ser sempre crítico. Mas sobretudo percebe-se que a Europa não sabia o que andava a fazer e não há a certeza de que o saiba agora. Não estranhamente, o BCE tem sido a instituição mais aplaudida pelos mercados - talvez porque pareça mais distante aos povos. E no entanto, entra-nos pela vida adentro.


Bem-vindo, senhor John Berrigan. Como se diz no seu país, a Irlanda, "nós não somos a Grécia". Somos europeus - eles também e, afinal, vós também. Ou resolvemos isto juntos ou não resolvemos, só revolvemos.  

[Hoje, Jornal de Negócios]

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