O ódio tem melhor memória que o amor. O aforismo de Balzac pode ajudar a explicar por que razão o anúncio do regresso de José Sócrates ao circo mediático incendiou hoje o país que se dividiu entre petições contra e a favor do regresso, com vitória clara para os que o não desejam, mas não chega para explicar a memória selectiva dos portugueses, que é de tal forma selectiva que, lamento dizê-lo, é quase ignorante.
Se Durão Barroso abandonasse a liderança da Comissão Europeia como abandonou a liderança do país e emergisse na estação pública a perorar sobre a crise europeia - e haverá tanto durante tanto tempo para dizer sobre a crise europeia -, alguém levantaria uma unha? Ninguém! E no entanto, como tão bem recordou Fernando Sobral há umas semanas no Jornal de Negócios, Durão Barroso não foi um "homem invisível" no Governo, nem tem as mãos limpas na crise actual. Longe disso. Apesar disso, os portugueses, vá lá saber-se porquê, decidiram absolvê-lo ou retirá-lo da História, como se a história de um país, de sucesso ou fracasso, fosse resultado de governações avulsas e não da continuidade de políticas de sucessivos governos, das quais ninguém neste país nos últimos trinta anos saiu impune.
Memória selectiva. A maioria das pessoas escolheu rasgar todos os actores políticos e guardar na memória apenas a legislatura e meia de José Sócrates para a poder diabolizar e sobre ela destilar a dor das condições que agora sente. Como se seis anos bastassem para chegarmos onde chegámos. Não é possível branquear a responsabilidade de Sócrates na situação do país, mas convém não branquear o resto também, tudo o que lhe antecedeu e o que agora se lhe sucede. Houve erros antes dele, e há erros agora. Muitos. Querer ver em Sócrates o monopólio de tudo o que correu mal é o pior dos erros.
Além disso - e este é talvez o lado mais hilariante - não se pode branquear que a contratação de Sócrates como comentador político para a RTP passa mais pelo Governo do que pela direcção da RTP. O Governo, podendo estar enganado, acredita que a aparição de Sócrates na televisão lhe será favorável, uma vez que concentrará nele o ódio do país libertando assim o Governo da ira do povo. Tenho muitas dúvidas que Sócrates volte para se enterrar, sobretudo depois da derrocada a que estamos a assistir na União Europeia. Tenho muitas dúvidas que um homem que esteve dois anos a assistir de fora ao empobrecimento do país e ao desnorte da Europa, um homem que sempre disse que não governaria com o FMI, um homem que nunca ninguém poderá dizer o que teria feito se o parlamento tivesse aprovado o PEC IV (queira-se ou não, o PEC IV será sempre uma pedra no sapato), um homem que entretanto viu os bastidores dos últimos meses da legislatura esclarecidos num livrinho pequenino, histórico, épico, insuspeito, porque escrito por gente de direita, chamado "Resgatados", um homem que foi tão enxovalhado e humilhado pelos que prometiam salvar o país e afinal o estão sepultar, tenho muitas dúvidas que este homem volte para se enterrar. Tenho mesmo muitas dúvidas, mas veremos.
Curiosamente, quem mais está com os portugueses que rejeitam Sócrates é o próprio PS, que hoje há-de ter tremido quando ouviu a notícia. Sócrates não volta para colocar em causa a liderança de Seguro, mas a esforço zero mostrará que Seguro é uma nulidade, que é vazio absoluto. Seguro parece um autista, sem ofensa para os autistas, nem ódio suscita, só raiva e pena. Desconfio que, de uma só penada, Sócrates, a quem vaticinaram a eternidade como moribundo político, matará Seguros e Passos. E se isso servir para que novos actores políticos surjam, mesmo dentro do PSD, sobretudo dentro do PSD, que no PS não se vislumbra nada de jeito, então, o regresso já terá valido a pena.
De qualquer forma, neste contexto, discutir o percurso de Sócrates é errar o alvo. Porque o que verdadeiramente surpreende nesta história é que as pessoas que têm enchido as ruas do país, cantando a Grândola e gritando o direito a serem ouvidas, viva a democracia!, sejam provavelmente as mesmas pessoas que agora querem cercear o direito à liberdade de expressão de um ex-primeiro-ministro, por muito mau que o possam ter considerado. E se todos os ex-políticos maus ficassem votados ao silêncio, as televisões estavam bem tramadas para preencher os espaços dedicados à política. Dirão que passaram dois anos, que é pouco tempo de deserto. Qual seria então o tempo correcto? O ódio tem melhor memória que o amor. É pena, porque o ódio turva o raciocínio. E se todos os males do país tivessem origem em Sócrates, como explicar então o que está a acontecer à União Europeia?
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