[Marius Filipoiu]
Eventualmente, alguns de nós sobreviverão para um dia contar a verdade.
Não somos a Islândia, onde faliram três bancos de uma assentada só, onde o povo rasgou a Constituição e julgou políticos. Não somos a Irlanda, onde os maus investimentos imobiliários delapidaram a banca. Não somos a Grécia, que parece ter polido as contas para aderir a esse gigantesco bluff que é a União Europeia. Não somos a Espanha, cuja bolha imobiliária também rapou os bancos. Não somos Chipre, um paraíso que Bruxelas descobriu agora ser fiscal. Somos Portugal, triste mas bom aluno, pobre mas bem comportado, grândolado mas triturado. Também não seremos a Estónia.
Somos todos diferentes, mas todos judeus. Nós, islandeses, irlandeses, espanhóis, gregos, portugueses, cipriotas, (estónios?). Somos judeus sem dinheiro para extorquir (tanto, pelo menos), mas igualmente perseguidos pela Alemanha, que já não é nazi, mas continua a expiar os pecados dos povos através de uma espécie de incineração pós moderna. No séc. XX, os alemães exterminaram milhões de pessoas num terrirório que hoje equivale a 35 países europeus. Menos de cem anos depois, ei-la, com o mesmo complexo de superioriadade racial, a repetir a receita, a matar e a sorrir.
O que aconteceu a Chipre diante do olhar impávido de toda a gente foi o mesmo que sucedeu na Solução Final nazi: eliminação, extermínio, genocídio. Estamos a assistir ao início do fim da União Europeia às mãos dos mesmos assassinos de outrora, os alemães.
No dia 17 de Março, o Público publicava uma pergunta em duas páginas: "E se o Holocausto foi pior do que pensamos?" Nesse trabalho, investigadores do Museu do Holocausto em Washington explicavam que até agora conseguiram identificar 42.500 campos de concentração, prisões, ghetos e centros de trabalho forçados criados pelos nazis entre 1933 e 1945. Deborah Lipstad, uma das historiadoras, exclamava ao jornal: "Se alguém me perguntasse quantos destes lugares existiram, eu teria dito sete mil, oito mil, dez mil - quinze mil no máximo. 42.500 é um número que nunca me tinha passado pela cabeça." A verdadeira história do Holocausto está longe de estar toda contada. A da derrocada da União Europeia, mais longe ainda. Entre elas, de comum, só um país, a Alemanha.
Dizer que a resolução para Chipre é justa - há até quem lhe chame moral - porque são em primeiro lugar os accionistas dos bancos os principais punidos e depois os depositantes maiores (101 mil euros é um depositante maior?!) os tolhidos, é uma mentira terrível. Não seria se aquele povo não tivesse a partir de agora de enfrentar a vaga de austeridade que provavelmente o irá matar. Como está a matar-nos a nós. Teresa de Sousa citava hoje, no Público, Nils Pratley, editor financeiro do Guardian: “A Alemanha está a dizer a um país para descobrir outra ocupação”. E quem diz ocupação diz outro lugar no planeta. A Alemanha está a dizer o mesmo a todos os países que está a resgatar, estranho verbo a que urge mudar o significado. Porque resgatar significa salvar e salvar não significa desemprego a disparar, PIB a afundar, dívida pública a piorar.
Quando Angela Merkel diz: "Chipre pode contar com a solidariedade dos outros países europeus para suportar as suas dificuldades ao longo dos anos vindouros", isso soa a sucedâneo do convite alemão aos judeus: "Venham aqui, pequenos pecadores, tomar banho nesta câmara de gás." Quando o ministro das Finanças alemão diz que as críticas à Alemanha se devem à "inveja" dos outros países, percebe-se que a Alemanha não aprendeu nada, nada!, com a História. Aquilo para que não estávamos preparados era para vermos um português, Durão Barroso, aliado de uma Alemanha assassina. Também não estávamos preparados para um Eurogrupo de mentecaptos, é verdade. Mas quando Deborah Lipstad diz que os campos de concentração eram tantos, mas tantos (e ainda não estão todos identificados) que era impossível que houvesse uma só pessoa na Alemanha que não soubesse o que se estava a passar, ficamos imediatamente a pensar no mesmo em relação à Europa e aos seus líderes. O que está a acontecer é tão escandalosamente óbvio, que é impossível que ninguém antecipe o desfecho da história. E escandalosamente triste que ninguém a trave.
Eventualmente, alguns de nós sobreviverão para um dia contar a verdade.
(Ando com com o Holocausto dos pobres na cabeça há dias a fio, dias a fio a pensar que a Alemanha está a repetir a Solução Final. Hesitei em publicar a comparação, tive medo do exagero, mesmo se é exactamente o que penso. Até que hoje, Viriato Soromenho-Marques fez a mesma exacta comparação no DN. A posição do professor cauciona a minha. Pelo menos, eu sinto-me assim, caucionada. Ou deveria dizer assustada?)
Fica o texto de Soromenho-Marques, notável como sempre e, sim, assustador:
Quando as tropas norte-americanas libertaram os campos de extermínio nas áreas conquistadas às tropas nazis, o general Eisenhower ordenou que as populações civis alemãs das povoações vizinhas fossem obrigadas a visitá-los. Tudo ficou documentado. Vemos civis a vomitarem. Caras chocadas e aturdidas, perante os cadáveres esqueléticos dos judeus que estavam na fila para uma incineração interrompida.
A capacidade dos seres humanos se enganarem a si próprios, no plano moral, é quase tão infinita como a capacidade dos ignorantes viverem alegremente nas suas cavernas povoadas de ilusões e preconceitos. O povo alemão assistiu ao desaparecimento dos seus 600 mil judeus sem dar por isso. Viu desaparecerem os médicos, os advogados, os professores, os músicos, os cineastas, os banqueiros, os comerciantes, os cientistas, viu a hemorragia da autêntica aristocracia intelectual da Alemanha. Mas em 1945, perante as cinzas e os esqueletos dos antigos vizinhos, ficaram chocados e surpreendidos. Em 2013, 500 milhões de europeus foram testemunhas, ao vivo e a cores, de um ataque relâmpago ao Chipre.
Todos vimos um povo sob uma chantagem, violando os mais básicos princípios da segurança jurídica e do estado de direito. Vimos como o governo Merkel obrigou os cipriotas a escolher, usando a pistola do BCE, entre o fuzilamento ou a morte lenta. Nos governos europeus ninguém teve um só gesto de reprovação. A Europa é hoje governada por Quislings e Pétains. A ideia da União Europeia morreu em Chipre. As ruínas da Europa como a conhecemos estão à nossa frente. É apenas uma questão de tempo. Este é o assunto político que temos de discutir em Portugal, se não quisermos um dia corar perante o cadáver do nosso próprio futuro como nação digna e independente.
Fica o texto de Soromenho-Marques, notável como sempre e, sim, assustador:
Quando as tropas norte-americanas libertaram os campos de extermínio nas áreas conquistadas às tropas nazis, o general Eisenhower ordenou que as populações civis alemãs das povoações vizinhas fossem obrigadas a visitá-los. Tudo ficou documentado. Vemos civis a vomitarem. Caras chocadas e aturdidas, perante os cadáveres esqueléticos dos judeus que estavam na fila para uma incineração interrompida.
A capacidade dos seres humanos se enganarem a si próprios, no plano moral, é quase tão infinita como a capacidade dos ignorantes viverem alegremente nas suas cavernas povoadas de ilusões e preconceitos. O povo alemão assistiu ao desaparecimento dos seus 600 mil judeus sem dar por isso. Viu desaparecerem os médicos, os advogados, os professores, os músicos, os cineastas, os banqueiros, os comerciantes, os cientistas, viu a hemorragia da autêntica aristocracia intelectual da Alemanha. Mas em 1945, perante as cinzas e os esqueletos dos antigos vizinhos, ficaram chocados e surpreendidos. Em 2013, 500 milhões de europeus foram testemunhas, ao vivo e a cores, de um ataque relâmpago ao Chipre.
Todos vimos um povo sob uma chantagem, violando os mais básicos princípios da segurança jurídica e do estado de direito. Vimos como o governo Merkel obrigou os cipriotas a escolher, usando a pistola do BCE, entre o fuzilamento ou a morte lenta. Nos governos europeus ninguém teve um só gesto de reprovação. A Europa é hoje governada por Quislings e Pétains. A ideia da União Europeia morreu em Chipre. As ruínas da Europa como a conhecemos estão à nossa frente. É apenas uma questão de tempo. Este é o assunto político que temos de discutir em Portugal, se não quisermos um dia corar perante o cadáver do nosso próprio futuro como nação digna e independente.
Totalmente de acordo com o que penso sobre a situação da Europa.
ResponderEliminarE totalmente triste também.
No meu blogue, pus um texto do New YOrker com o elucidativo título "European Pirates ride Cyprus".
Talvez um dia no futuro sejam os mesmos EUA do séc. XX a salvar os europeus desta DesEuropa maldita.