domingo, março 17, 2013

Quando a memória não dói


Todas as histórias de amor são poalhas de ouro, intransmissíveis, impublicáveis, únicas, raras, especiais, e por isso mais bonitas que as histórias de amor dos outros. Nós achamos isto. Os outros obviamente também. Nos Beach House, música e amor coincidem, são sinónimos. Quando se fala da banda de Baltimore é de amor que está a falar-se. De amor em socalcos.

A história é antiga. Em Portugal, há sempre um de dois lugares onde uma história de amor pode nascer: em Coura, no festival; ou no Passos Manuel, no Porto. Os Beach House estrearam-se, como tantos e tantos, no Passos, em 2008, quando lançaram o segundo álbum 'Devotion'. Não estávamos lá, mesmo se em 2008 não saíamos de lá. Como não estávamos lá?! Bem, não estávamos.

Para nós, o caso tem três anos. Três anos, entre o desejo e a derrota, a sedução e o sangue do sonho, podem ser uma vida inteira. Começa em 2010, logo no início, quando uma voz que não era limpa nem rouca, nem grave nem aguda, uma voz que parecia ter pelo menos duas décadas de atraso, soprava numa canção de embalo: “You would slip from my mind in a matter of time”. A canção era um passeio no parque e soava a ameaça, mesmo se desenhada a pincel. Seria? Era. O início, ainda desconhecido, de uma história de amor. Não nos apaixonámos logo. Ficámos só com a sensação de que poderíamos apaixonar-nos se a voltássemos a ouvir. Não a procurámos, mas voltámos a ouvi-la. Por acaso. Rendemo-nos, claro, como quem recupera a inocência. Como quando tropeçamos num estranho e ficamos com a intrépida certeza de que se o voltarmos a ver tombaremos por ele. Foi assim.

Reconhecemos a voz de Victoria Legrand no Meco, num dia ao final da tarde, na hora dos mágicos cansaços, como no poema de Espanca. Nem sequer sabíamos quem ela era ou que estaria ali. Não sabíamos que ela era aquela que nos tinha avisado: You know, you know, we belong by the stream to the dawn, a que nos tinha enviado frases soltas, ao acaso, que se nos tinham alojado na cabeça como balas. Estávamos no parque, ao telefone, quando a reconhecemos ao longe. Era ela, aquela voz. Desligámos, entrámos no recinto a correr, como se corre para um amor que se não pode evitar ou perder. Aquele concerto foi um abraço apertado, doce, mágico, incandescido, comovido. Legrand, estacionada nos anos 80 (sempre havia duas décadas de atraso), blazer dois tamanhos acima, dobrado nas mangas, caracóis a esconderem-lhe o rosto, a voz como um íman a subir ao céu, dizia-nos que a alma é de prata, o coração de diamante, que há biliões de estrelas a abrirem-nos caminho, que é possível esquecer o amor que não queríamos deixar para trás e, mesmo se falhou, recordar as noites em que tudo corria ainda bem, juntar os cacos do coração e continuar.

O álbum era Teen Dream, o terceiro da banda, e tudo nele era um amor a morrer quando tinha acabado de nascer, um amor a arder na impossibilidade. Tudo nele era prenúncio de dor, da contradição de um amor sem fim, mas sem o qual teríamos de aprender a viver. Mas ela dizia que íamos superar e nós acreditámos. Saímos de lá em paz, a sorrir, abençoados nas asas daquele voo.

O que mais impressiona no passado recente dos Beach House é que Teen Dream e Bloom, editado em 2012, funcionam como dois volumes do mesmo romance. O primeiro, que era na verdade o terceiro, era uma espécie de broken heart syndrome; o segundo, que é o quarto, soa a dreambeat songs, mesmo se os dois continuam a falar de solidão, de ausência. Legrand talvez não seja propriamente uma sábia, nem um génio, a música que faz não é coisa nunca ouvida, mas não nos enganou. E mesmo se agora anuncia na maravilhosa Wishes que vai falar de um momento em que a memória dói, a verdade é que a memória já não dói. O vento não apagou o lume, mas poliu o fogo. Still wanna stay.

Reeencontrámo-la no Porto, em 2012, no Primavera Sound, numa tenda onde não cabia uma agulha. No Verão do ano passado, os Beach House já não eram um segredo, no limite eram um segredo dito aos gritos numa sala muda - toda a gente ouviu, toda a gente queria ouvi-los. A tensão aniquilou qualquer memória que pudéssemos guardar dessa noite. Por isso, voltámos hoje ao Hard Club, para a ressurreição do Meco, para reavivar o momento em que nos apaixonámos. Tanto!  Lá estava Legrand, vestida com bola de espelhos, sonhadora e sombria, pouco faladora (excepto para um improvável desafio: "Let's go to be rude?"), gestos quase lânguidos de tão melancólicos, a lembrar-nos o Verão quente em que o coração disparou. Ela ali a luzir num jogo de sombras e cordas como numa harpa em forma de labirinto. E a mostrar que Bloom nada fica a dever a Teen Dream. Completa-o, é a parte que faltava para o final feliz, a parte em que a ferida sarou. Já não há fantasmas, só o prometido céu estrelado em noite de Verão. Primeiro, ela suplicava, "não, tu não podes ir embora". Agora, sussurra: "tu estás aqui, nós ainda estamos aqui". E diz que não há mistério nenhum nisso, é só um paraíso estranho. Há sentimentos que podem mesmo durar para sempre. E nós voltámos a acreditar. Forever still. 

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