sexta-feira, março 08, 2013

Pedro Santos Guerreiro: Clara, Clarinha


Esqueça os caracteres chineses, que o mundo pós-Kennedy repete mas não pratica. A crise, a palavra crise, tem origem grega, o que também nada explica. A explicação não está noutros, está em nós. Se nos propusessem resolver a desdita matando alguém já teríamos aniquilado a espécie humana.

Talvez tenha sido na verdade matando que chegámos às portas da crise, desta crise que ainda não tem nome histórico mas já tem história para ter nome. Matando o que comemos quando queremos comer mais, mais que baste, mais que outros, mais que antes, mais que tudo. Matando o depois para ter já. Matando valores para ter preços. Tudo tem um preço. Um homem não tem preço? Uma multidão tem.

Não se tem medo das alturas quando só se olha para cima. Quando, finalmente, olhamos para baixo com terror, perguntamos “quem foi, quem foi que fez isto?”. Culpamos a desregulamentação como se fosse problema de lei. Apontamos aos mercados como a um matadouro. Dizemos que é ganância como se fosse coisa alheia.“Eu bem te disse que eles sempre acabam por ter ambições”, conclui a velha.

A velha é rica e está feia mas, ao contrário da dona Prudência de William Blake, não está solteirona nem é cortejada pela impotência: come carne de marido e bebe sangue de mundo. Por fastio. Por capricho. Por vingança. Por missão. Por consumição? A velha é superpotência, é a mulher mais rica do mundo, e regressa à cidade falida para a salvar, 45 anos depois de de lá ser escorraçada por gravidez não correspondida. Era ruiva. Saiu nova para uma velha profissão. Regressa velha para uma nova procissão. A procissão de um morto. A Clara, a Clarinha, a mais-que-tudo de quem não tem nada, quer um morto no caixão. O morto há-de ser o catita daquela cidade, cabrão que ela amou 45 anos antes e a trocou por mercearia, deixando-a com uma engenhoca nos braços como o engenheiro que sempre não era engenheiro de Alexandre O’Neill. O cabrão virou estimável, mas a mulher amar na palha não podia, menos ainda se por prazer. “Fungar, fungues tu ainda hoje no inferno com o Diabo a cavalo!”, dizia outra velha em Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro, ao ouvir o arfar e os gonzos a chiar no quarto ao lado. “Cabra! Grande coira! Não te emprenha o ladrão para saberes o que custam gostinhos!” A Clara, a Clarinha, foi prenha conhecer os gostinhos: vendeu-se a homens e depois comprou-lhes o mundo para dele fazer bordel e os bordéis, dizem os provérbios do Inferno de Blake, constroem-se com os tijolos da Religião.

A Religião benze a fronte, a Economia encolhe os ombros, a Justiça lava as mãos, a Política põe o corpo todo no fogo. O diabo do dinheiro já começou a barganha das almas, é uma questão de tempo. É esperar: o arrobo impulsivo da ética desabará com o que antevêem os olhos, que são mais que a barriga esfomeada. Se já houve mercador que em Veneza cobrasse por juro uma libra de carne, por que não haveria a Clara, a Clarinha, bem-vinda Clarinha!, de pedir corpo inteiro por um bilião?


É o Direito, expressão da Justiça na conveniência do seu tempo, que ensina a diferença entre actos e factos. Cedo a moral cederá e a dúvida já não será se o homem morre mas saber quem o mata. Um facto: um homem morre. Um acto: matá-lo. A multidão, que primeiro é alumiada pela recompensa, cega depois a propiciar a execução. Aqueles que Orwell viu transformarem-se em porcos vivem – e matam. (Já a imprensa, que tem o poder de descobrir, expor e nisso proteger, deslumbra-se com pouco se se acomoda na sala de jantar.) E assim uma multidão tem preço porque dilui a culpa e dissolve a autoria: num pelotão de fuzilamento nenhum soldado sabe que espingardas têm balas. “Um cadáver não vinga as injúrias” (Blake). Negócio fechado.


É claro que “A Visita da Velha Senhora” é uma peça para este tempo. As comparações são irresistíveis num território desocupado de poder como está (e vai sendo) Portugal. Falamos de uma cidade que empobreceu depois de lhe terem comprado “aparelho produtivo” para o desmantelar; a Velha Senhora põe e dispõe e tem até nome angélico; o resgate impõe condições austeras, as instituições torcem-se com a devida vénia. Eis uma cidade empobrecida que inventa uma nova prosperidade a crédito, feita do que se vende e não do que isso rende. “Toda a cidade faz dívidas a torto e a direito. E o bem-estar da colectividade aumenta com as dívidas.” Perdão? “Precisamos de crédito, precisamos de confiança e de encomendas!” Mais nada. Ou mais isto: o teatro como pedagogia não do “funcionamento” da economia mas da demagogia que ela viabiliza. Em “Santa Joana dos Matadouros”, que Bertolt Brecht escreveu durante uma crise que ficou com o nome histórico de Grande Depressão, há uma deslição de humanidade em cima de um explícito funcionamento da “economia de mercado”. Isto é: dos mercados.

Também Friedrich Dürrenmatt viveu a Grande Depressão mas foi depois da Grande Guerra que (também) ela provocou que escreveu sobre a Velha Senhora. Aqui, a economia não é amada, nem amante, nem mulher, é uma gaja sentada para jantar. Tem de estar. E quem faz por comovê-la não quer se não comê-la. Mas sabendo isto: o capitalismo não é amoral, essa desculpa não pode servir a quem lá ande. A quem toma opções morais. O que estamos dispostos a relativizar por dinheiro? Tudo? Nada?

Dürrenmatt apresenta “um mundo e não uma moral” e pede que, ao contrário do que dita o Fausto de Pessoa, nem tudo seja símbolo e analogia. Uma mulher também é uma mulher, um homem também é um homem, um amor também é um amor.

Um amor.

Não é por acaso que a peça de Shakespeare citada não é o Mercador de Veneza, é Romeu e Julieta. Mas Clara, a Clara, a Clarinha, não é uma Julieta de Verona que se mate por não respirar sem Romeu. Não é uma Zefa de Terras do Demo que peça a Alonso que a mate depois de traí-lo, para que nessa súplica de morte acabe recebendo perdão de quem a ama sob um xaile mais rico que o manto de Nossa Senhora. Não é uma Karenina que afinal amou sozinha, não é Eurídice que morra por Orfeu, não é Lucrécia mal casada que se abandone numa cama de mandrágora com o amante ardiloso disfarçado de vagabundo. Em Clara cresceu o negro e não o vermelho. É vingativa. É pusilânime. É boçal. É uma besta. Mas uma besta rica nunca é uma besta, é rica. É mais fácil trair uma ruiva que uma rica. É? Não, não é nada.

“A humanidade gira toda sobre o amor e a fome”, escreveu Anatole France, mas há homens saciados que têm tanta fome de si mesmos que por insuficiência se afastam do destino da corrida, que é a partida e não a meta. Não há nada mais triste que amar esta mulher ruiva que não sabe que, matando, morrerá.

Nota de Pedro Santos Guerreiro: este texto foi escrito a convite do São Luiz Teatro Municipal para o programa da peça “A Visita da Velha Senhora”, de Friedrich Dürrenmatt, numa encenação de Nuno Cardoso que estreou a 7 de Março de 2013. E é uma homenagem a Ricardo Pais, que encenou algumas das peças que cito, que ensinou o meio país onde eu estava a ver, e sentir, teatro.

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