sábado, março 05, 2011

Inês morre. E o amor?


Vimos o amor lendário de "Pedro e Inês" em 2003 coreografado por Olga Roriz. Vimos aquele amor ser destruído por força exterior, Inês em dor a dançar naquele lago, naquele lago a amar, nele a morrer. O amor de Pedro e Inês como um poema. Belíssimo. Vimos, no mesmo ano, "A Castro" encenada por Ricardo Pais, o mesmo amor, a mesma dor, a mesma Inês, ali no corpo de Maria de Medeiros, a partir de um poema de António Ferreira. Inês no bosque a que sempre se associa Inês, Inês e a dor, Inês e a terrível perda de Pedro, Pedro e o desejo de vingança. Vimos, no ano seguinte, o "Ensaio sobre a cegueira" encenado por João Brites. E antes já tínhamos lido o livro de Saramago e depois acabámos por ver Blindness de Fernando Meirelles. E dessa tripla cegueira ficou-nos só, ou sobretudo, a cegueira do soco dado por Brites, o director do Teatro O Bando. Porque foi ele que naquelas três horas claustrofóbicas e escuras nos fez chorar e nos deixou completamente mudos e sem ar. 

Pode parecer despropositada a malha da associação, e se calhar é, mas foi com estes fios soltos, ou com estas pistas, ou com esta memória de sensações anteriores, que ontem entrámos no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, para assistir à estreia nacional* de "Pedro e Inês". Era a mesma Inês, a mesma história de amor que nos preenche o imaginário, o mesmo João Brites que nos rendeu, ainda que ali pela mão do encenador russo Anatoly Praudin (mas também a nossa experiência com encenadores russos é inesquecível, ainda que nem todos sejam genialmente Anatoly Vassiliev...), os mesmos actores de quem já sabíamos que o céu é o limite. A única pessoa de quem não sabíamos rigorosamente nada era do autor do texto, um Miguel Jesus que teria adaptado a história. E foi do autor do texto que recebemos a benção que só textos assim podem dar. O texto, que é infinitamente mais do que pura narrativa dramatúrgica, é um poema de uma grandeza e de uma beleza desmedidas, um poema como um perfume que se não esquece, o cheiro do sangue, da solidão, da contradição, da cegueira, do poder, um cheiro que fica agarrado à pele porque contém tudo. E a tudo, tanto, o que já se disse e escreveu e imaginou sobre o amor de Pedro e Inês, o amor perfeito, o amor eterno, ele acrescentou o que ninguém nunca ousara: os bastidores do amor. O amor nas suas contradições, nas suas tentações, nos seus defeitos, nos seus desvios, na sua não exclusividade. O amor no que ninguém dele quer ouvir, o amor na sua finitude. E com isso deu-nos uma nova Inês. Humanizou-a.

Porquê? Porque desconstruíu aquela Inês, aquela ideia do amor mais-do-que-perfeito?, perguntámos-lhe, ainda a quente, ainda aturdidos. "As pessoas acham que o amor é um grito de vida. Eu não", respondeu-nos. Miguel Jesus, é preciso respirar fundo, abrir a boca de espanto, tem só 27 anos. Só. Não é possível perder de vista quem se estreia a escrever assim, a dizer assim o amor. E a culpa. O texto é o personagem principal de uma peça em que tudo - actores, personagens, cenário, música, figurinos, tudo mesmo - é de tal forma violento e exímio e ao mesmo tempo clarividente e cínico, mas mais ao mesmo tempo ainda, tão pleno e justo e acertado, que não se recupera facilmente de uma peça assim. Praudin veio encenar o amor que nem a morte poderia destruir, como se aquele amor fosse exclusivo de um país que não é o dele. No fim, inquirido sobre se os seus olhos vêem o mesmo que os de Miguel, disse: "Eu sei que quis dizer alguma coisa, mas não sei dizer o que é. Só sei que, o que quis dizer, quis dizê-lo com o coração e não com a cabeça." A única forma de dizer com verdade.
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Se não se pode matar o amor, mata-se o objecto amado. Mas se ele não morresse, sobreviveria o amor? O amor só resiste se alguém morrer. É na cristalização da memória imaginada que ele cresce. E só há dois caminhos: morre-se quando nos arrancam o coração à dentada ou sobrevive-se e deixa-se morrer o amor. O amor mata? 

* Sinais do centralismo que abunda neste país. A peça, genialíssima, estreou ontem, em Guimarães. Ontem, no suplemento cultural do Público, nem uma linha. Hoje, no suplemento cultural do Expresso, linha nenhuma. "Pedro e Inês" chega a Lisboa em Junho. Esperemos que honra lhe seja feita nessa altura.

1 comentário:

  1. é um espectáculo surpreendente e muito rico... com um texto genial e uma série de interpretações à altura do texto e para lá dele em alguns momentos! foi um prazer a que tive o privilégio de ter direito por ser um Vimaranense muito atento, porque de outra forma não saberia da sua realização no CCVF.

    Aconselho vivamente!

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