domingo, abril 19, 2009

Ressurreição de Susan Boyle


Entra no palco desajeitada, mão na cinta, a equilibrar-se nuns saltos que denuncia não estar habituada a calçar. Tal como o vestido, albino cor da pele, de um glamour antiquado, em clara estreia absoluta. A face rosada, o cabelo cinzento, sem brilho, sem escova, completam o quadro. "Sei que não sou bonita", haveria de confessar a escocesa Susan Boyle. "Tenho 47 anos e essa é apenas uma parte de mim". Revela a idade no bambolear de anca de quem ignora as balizas do ridículo, de quem desconhece que a crueldade dos adultos supera largamente a das crianças. Nos bastidores é alvo de chacota.

Susan Boyle, feia como sabe ser, deselegante como desconfia ser, confessa perante milhares de pessoas que assistem ao programa inglês "Britain's got talent", perante milhares de britânicos que assistem ao concurso em casa, perante um júri de rara hostilidade, que quer ser cantora profissional, que ambiciona ser - pasme-se! - como Elaine Paige, célebre actriz britânica que foi Evita em 1978 e a gata Grizabella no Cats em 1981. O público presente ri; em casa imagina-se o mesmo. O júri avança com aquele tique de quem dá o caminho todo aos tolos. E pergunta-lhe, com a condescendência que também costuma dar-se aos tolos, o que é que ela pretende cantar.

"I dreamed a dream", do musical "Os Miseráveis", responde. O júri continua a rir. O público também. É facil imaginar-lhes o pensamento. Ela ergue o polegar para trás da cortina, está pronta, podem soltar a música. Ela há-de soltar a voz. É a única que sabe o que ela vale. Começa a cantar: "I dreamed a dream in time gone by..." Menos de meio segundo depois, o público ergue-se numa onda crescente, instantânea de ruído, aplaude, ri, mais este riso é já diferente. Sabe a milagre. Às mulheres feias a maior parte da vida parece estar vedada. Se rasgam esse obstáculo, só pode ser milagre.

No fim daqueles dois minutos de absoluto arrepio, o júri dá a mão à palmatória. "Agora, já ninguém ri de si", reconhece Pears. Taylor completa: "Estavam todos contra si. Fomos todos cínicos". Cowell ironiza: "Soube no momento que você apareceu que iríamos assistir a algo extraordinário. E estava certo". Ela recebe os três "sim" necessários para passar, suponho, à fase seguinte. Bate com os pés no chão como uma criança. Uma mulher que nunca teve o privilégio de ser beijada ou tocada por alguém é ainda uma criança. Faz uma vénia, sopra um beijo. O público está todo de pé.

A história está toda aqui: http://www.youtube.com/watch?v=9lp0IWv8QZY&feature=related. Em sete minutos. A história da ressurreição de Susan Boyle. A mulher virgem, que entregou a vida à Igreja. Que perdeu a mãe e o emprego no último ano. E a história da nossa humilhante e preconceituosa pequenez. "Sei que não sou bonita, mas sei que sei cantar", disse ela. Não consigo ver o vídeo sem chorar, e já o vi uma dezena de vezes. Na net foi visto por um número que nem sei dizer: 34765348. Sirva ele para aprendermos alguma coisa.

1 comentário:

  1. Quando a Elaine Paige fez a Grizabella (por acaso, porque a primeira escolha, Judi Dench - !!! - partiu uma perna), era já a consagradíssima Evita do West End. Revê lá a bio da rapariga.

    (as coisas utilíssimas que eu sei!...)

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