quarta-feira, abril 01, 2009

Mário Soares na primeira pessoa


"Sou um homem de esperança.
Tenho esperança, em primeiro lugar, no povo português. E depois, na condição humana, independentemente daquilo em que cada um crê. Esperança na espécie humana, no Homem, nessa coisa singular e extraordinária que é saber distinguir o bem do mal. Tenho esperança numa utopia que nos conduza a um mundo melhor, com mais liberdade e menos violência, em que possamos dialogar mais e combatermo-nos menos, esperança numa utopia que nos faça a todos iguais. E tenho esperança no progresso, na evolução contínua da humanidade. E da medicina, que quase conseguiu vencer a dor. Física. Agora é preciso vencer a dor espiritual, o medo, a angústia que tantos têm da morte.

A morte não me é familiar, no sentido em que não me aflige. Não penso nela. Sei que todos vamos ter de ser confrontados com esse problema, todos vamos ter que desaparecer um dia. E os que têm a graça da fé têm um privilégio sobre os outros nessa passagem da vida para a morte. Mas eu não tenho fé - nem medo da morte. Dizem que a crença é uma graça divina – não fui tocado por essa graça, ainda. Até hoje, não fui. A morte, para mim, não é um mistério. Não me aflige que para lá da vida seja o Nada. Como não me aflige o que houve antes de eu estar, como dizia o meu pai, na “ordem dos possíveis”, isto é, quando ainda não tinha sido gerado. Não sabemos o que houve antes de nós nem o que haverá depois de nós. Acredito que seja o Nada, não sei. Sou essa circunstância. Não tenho dúvidas nenhumas de que quando morrer vou para debaixo da terra. Só espero morrer com a mesma dignidade com que tentei viver toda a minha vida.

Tenho 84 anos, bem vivos e bem vividos. Durmo bem, sem comprimidos, felizmente. E não me arrependo de nada. O meu cérebro está a funcionar - não digo inteiramente, mas funciona (ri) -, o espírito crítico mantém-se e estou suficientemente lúcido para saber que tenho que aceitar a morte quando ela chegar. Isso é uma maneira de mostrar coragem. Porque na vida é preciso ter coragem, fazer escolhas, ter dignidade em todas as circunstâncias, mesmo quando querem desmoralizar-nos ou tornar-nos indignos. Podemos ajudar o nosso cérebro a funcionar bem até ao fim. Quando isso acontece, quando o conseguimos, é uma grande felicidade. E podemos fazer o bem, praticar o bem, independentemente de sermos crentes ou não, religiosos ou não.

Não tenho fé, mas tenho esperança. E, como S. Paulo, à caridade prefiro o amor. O amor pelo próximo, pelo nosso semelhante. Tenho formação iluminista, sou racionalista: não sou capaz de chegar a uma verdade a não ser pela evidência, pelo experimentalismo. Não nego a existência de Deus - sou agnóstico e não ateu. A diferença é que não nego a existência Dele; custa-me apenas aceitar Deus como homem à nossa semelhança. Racionalmente, não me entra no espírito. Não obstante isso, insisto, tenho esperança. Esperança na política. Na política com P grande. Porque, para mim, a política nunca teve interesse material, nunca foi uma forma de ganhar a vida, pelo contrário. Sempre foi actividade nobre do espírito humano com vista ao bem dos outros. É nessa que acredito.

É um mistério saber porque nascemos e porque morremos. Não sei se um dia esse mistério será revelado, mas sei que isso não nos obriga a acreditar na transcendência. Por isso é que sou agnóstico. Tenho dúvidas profundas sobre isto.

Porquê as dúvidas?

O meu pai era religioso e eu adorava-o. A minha mãe era menos. O meu pai até costumava dizer, com alguma graça, que ela só se lembrava de Santa Bárbara quando trovejava. A minha mãe era ribatelana, o meu pai leiriense, nasceu perto de Fátima. O meu pai, grande conspirador contra a ditadura, porque esteve preso e foi deportado, esteve muito ausente enquanto fui criança, na minha criação. Quando regressou a casa, teria eu nove anos, sentou-se, um dia, ao meu lado, na cama, e perguntou-me se eu sabia o Pai Nosso - não sabia. Se sabia a Avé Maria - também não sabia. Tentou rezar comigo, mas já era um pouco tarde.

No entanto, sempre tive um certo fascínio pela religião. Participei em muitos eventos ecuménicos e aprendi muito. Eu era sempre um dos não crentes de serviço. O debate entre as diferentes religiões é muito difícil, como é entre crentes e não crentes, mas faz-se e é possível."

[Mário Soares, hoje, no II Seminário Nacional subordinado ao tema "Hospital, lugar de esperança", organizado pela Coordenação Nacional das Capelanias Hospitalares, no Hospital S. João, no Porto.]
PS.: À saída do hospital, uma senhora com 70 anos, ou mais, percebe que é Mário Soares quem está a entrar no carro e chama por ele, grita, insiste em dar-lhe um beijo, abraça-o. A cena não dura mais de quinze segundos. Já ele partira quando ela, como que a justificar-se dos risinhos de quem ali estava, disse alto: "Tenho uma casa, devo-a a ele, foi ele que ma deu. Se não hoje não tinha nada. Homem bom."

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