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domingo, dezembro 07, 2014

Mário Soares faz hoje 90 anos. Tanto para agradecer.


Esta conversa à mesa foi escrita antes de rebentar o caso da detenção e suspeitas de corrupção de Sócrates e o seu cortejo de pequenos e grandes escândalos. A conversa vinha a propósito dos 90 anos de Mário Soares, este domingo, e a publicação a 27 de novembro de um livro de escritos políticos do tempo do exílio de Paris, "Cartas e Intervenções Políticas no Exílio". Posteriormente, pedi-lhe que comentasse o caso de Sócrates, quando não se sabiam ainda as acusações ou outras peças processuais senão as das fugas de informação. Mário Soares respondeu: "Não vou por agora dizer mais nada. Disse o que tinha a dizer no 'Diário de Notícias'". Onde escreveu: "O que foi feito a um ex-primeiro-ministro, com enorme aparato lesivo do segredo de Justiça, não pode passar em vão". E, rematando a nossa segunda conversa: "Estou, como calcula, muito maldisposto com tudo isto e extenuado".

Fica irritado quando as pessoas lhe dizem que tomaram elas chegar aos 90 anos assim e que ele está muito bem. "Pois, mas quem tem 90 anos sou eu e não é fácil. Não gosto nada de ter 90 anos". Esta a máxima queixa física que se lhe ouve. Pergunto-lhe se não está a ficar pessimista com o estado do país, ele que sempre foi um otimista. "Pessimista? Nada! O estado do país é uma infâmia! Mas há de mudar, os portugueses são ótimos!" Sempre lhe ouvi esta frase, "os portugueses são ótimos", às vezes transformada em "os nossos jovens são ótimos". Ouvi-a muitas vezes quando fizemos um programa para a RTP chamado "O Caminho Faz-se Caminhando", a frase do poeta espanhol António Machado (da geração de 27) que ele tanto gostava de citar na política quando ainda era um político ativo.

Almoçámos num dos seus restaurantes favoritos, um restaurante popular. Bebe um moscatel como aperitivo enquanto espera, porque chega sempre antes de toda a gente, incrivelmente pontual como foi toda a vida. E, dantes, incrivelmente maldisposto quando os outros não respeitavam a pontualidade. Hoje, está mais calmo em matéria de horários. Escolhe uma costeleta com batata frita e grelos salteados, com uma sopa. "A primeira coisa que vou comer é uma sopa". Há uns anos, lembro-me de um repasto num restaurante fino no Douro, e de outro repasto finíssimo em Espanha, em que a cozinha tendia para o molecular, versão copiada do género inventado por Ferran Adrià. Soares resmungou o tempo todo, suspirando que aquele estilo não era o seu, clamando por um prato vital, cheio, tradicional. Em casa, mandava sempre fazer uns petiscos de que gostava, como pataniscas de bacalhau ou peixinhos da horta.

É por isto que gosta deste restaurante, lá se diz na entrada Comida Tradicional Portuguesa. "A melhor comida do mundo", na opinião dele. Meia garrafa de vinho branco gelado, alentejano, porque eu vou comer garoupa. "Bebemos o que quiser, eu prefiro branco, mas se gosta mais de tinto..." Mete-se com o empregado, "o baiano", "um grande amigo meu", porque os brasileiros lhe lembram um dos seus países queridos, o Brasil. Agarra o braço do "baiano", que é do interior da Baía e já sabe os gostos dele, adianta serviço. "O senhor doutor costuma comer a sopa, vou trazer." "Sopa de rúcula? O que é isso, rúcula? Sopa de rúcula? Nunca ouvi falar! É bom?" Todos o tratam com respeito e com afeto e de outras mesas chegam pessoas a cumprimentá-lo como se o conhecessem de sempre. "Este não conheço de lado nenhum, mas ele parece que me conhece a mim, é natural". O baiano convence-o de que a sopa de rúcula é excelente. "Venha a sopa de rúcula, que raio de nome!"

UMA VIDA CHEIA
Anda nisto, a viagem da vida, há nove décadas. Com muito gosto. Fundador do Partido Socialista. Fundador, ou um dos pais fundadores, da democracia portuguesa nascida da revolução de abril. Foi sempre um europeísta e um internacionalista. E sempre reclamou o título de patriota. "Como é que se pode não ser patriota quando se gosta de Portugal?" Sempre lhe ouvi estas palavras.

Já não viaja tanto como dantes, desde a doença (uma encefalite, infeção aguda do cérebro) e tem pena. Nunca foi a Timor, o único lugar onde se fala português onde não foi. "E agora já não irei". A Fundação Mário Soares alberga um arquivo de Timor. Nem vai já a Paris, para onde viajava todos os outonos. Paris sempre foi a sua cidade, a do exílio, das memórias, das amizades políticas, da cultura francesa, das livrarias donde regressava carregado de sacos, dos jornais e revistas de cujos diretores era amigo (como o do "Nouvel Observateur", Jean Daniel) dos bouquinistes do Sena e dos bons restaurantes e vinhos. De "mon ami Mitterrand". Depois da doença foi lá "por causa de um livro que lá publiquei em francês. E antes disso, fui porque sou presidente de um prémio que atribuímos ao Presidente da República ainda ele não era Presidente, o Hollande. Ele pediu-me para ir entregar-lhe o prémio e eu fui. Estava melhor do que estou hoje. Correu lindamente".

Que avaliação faz do mandato de François Hollande, que é geralmente considerado uma desgraça? "Eu digo o mesmo. Não estou contente com o mandato do Hollande". Obama é o seu favorito, "uma grande figura, aquele Congresso de direita não o deixa governar, são antidemocratas". "O Hollande é um socialista, eu conheci-o no tempo do Mitterrand, ele levava a pasta do Mitterrand". Quando lhe digo que Hollande não foi treinado por Mitterrand, um grande sedutor, para lidar elegantemente com as histórias de mulheres, e que a história de alcova em que se meteu é lamentável e deu cabo dele, Soares acena com a cabeça. "Pode ter dado cabo dele mas também deu cabo dela. Uma mulher furiosa, nada mais". Haveria gente mais interessante para ter ficado com o trono do Partido Socialista? "Havia, a filha do Delors, Martine Aubry. Ativíssima. Não sei se ela é candidata ao que quer que seja, mas é uma socialista autêntica". E Manuel Valls, o primeiro-ministro francês, que sugeriu retirar a palavra Socialista de Partido Socialista? "Uma besta! Não podia continuar como primeiro-ministro. Eu escrevi um artigo nessa altura sobre isso em que dizia que aquele tipo devia ir para a rua imediatamente. Um Presidente que é eleito como socialista e que tem um primeiro-ministro que diz que quer deitar o socialismo fora! Eu demitia-o, evidentemente. É infeto que Hollande o mantenha".

SOCIALISMO DE BOA SAÚDE
Será o socialismo uma relíquia? A verdade é que existe uma crise grave dos partidos socialistas na Europa. "Nem em todos. O futuro é socialista. Porque este estado de coisas, estes regimes em que os tipos de direita fazem tudo o que querem às pessoas, não se pode manter". No caso de Espanha, abre uma exceção de caráter para Mariano Rajoy. "Não acho que seja um vigarista. Pode ser um homem pouco inteligente, se quiser, mas tem a vantagem de ser galego e os galegos são amigos de Portugal". Quando lhe digo que em Espanha o PSOE não tem já um Felipe González, ele responde que não, mas "tem um tipo extraordinário e um grande socialista, o Pedro Sánchez. Tenho a melhor opinião dele". Não acha nada que o socialismo vá acabar, pelo contrário. "O socialismo é fundamental para que a União Europeia continue. A UE foi feita com dois partidos, o Democrata-Cristão e o Socialista. E a União vai continuar". A posição alemã e a intransigência quanto ao défice, com os planos de austeridade, são "coisas que será bom discutir à distância, quando o tempo passar e se vir o resultado. Eu não gostaria de calçar os sapatos da sra. Merkel porque a Alemanha está em decadência. O que se passa na Alemanha é o contrário do crescimento económico". Não estará o capitalismo numa fase diferente, mais avançada, tecnológica, academicamente obscura, do que no tempo em que ele era o chefe do Partido Socialista?

O empreendedorismo e a livre iniciativa como inimigos declarados do contrato social? "Não! Você acha que há livre iniciativa num Governo como o português ou o espanhol?" Bom, eu quero dizer com isto iniciativa privada. "Ah! Isso é uma coisa diferente! Ah! Muito diferente! Nada de livre".

Os socialistas ou se reformam ou morrem, é a tese da direita, e não só da direita. "Coitada da direita! É preciso acabar com a direita! É isso. Já lhe disse que quem fez a Europa, a União Europeia, foi o socialismo democrático e a democracia cristã. O que existem agora são partidos que historicamente não fazem sentido".

Quando lhe pergunto qual é que ele acha que é o pior governo da Europa, com exclusão da Hungria, que é um caso que roça a autocracia, ele diz que "o Governo português é muito mau, é péssimo!" Também não modera a crítica ao Presidente da República, que acha irremediavelmente comprometido com o caso BPN. "O Eanes, o Sampaio e eu nunca fomos assim". O Presidente já disse que não haveria eleições antecipadas, ponto final. Ou seja, mais um ano deste Governo? "Se calhar... ele o disse".

Digo-lhe que quando ele usa palavras mais violentas ou desbragadas para criticar certos políticos de direita, a reação é acusá-lo de estar muito velho e não saber o que diz. "Bom, a verdade é que eu estou realmente muito velho!" Muita gente está a ser atacada por delito de velhice e não perceber o mundo em que vivemos hoje. "Já reparei nisso. O ataque aos velhos. Estão no seu direito. Um dia também vão ser velhos e não é nada fácil!"

ORGULHO NA FUNDAÇÃO
Fica enervado quando lhe digo que é atacado por causa da Fundação Mário Soares, que é acusado de ter atacado o Governo quando lhe retiraram parte do subsídio público da Fundação e diz-me que nunca foi nada disso e que a Fundação não depende disso. "Fiz a Fundação com o dinheiro, as doações que me deram para uma campanha eleitoral, e que não usei. Não gastei. Fui [ter com os doadores] para o devolver, está aqui o vosso dinheiro, mas eles não o quiseram de volta porque já estava nas escritas deles. Ora eu não ia ficar com o dinheiro. Disse que ia criar uma Fundação, desde que eles assim o entendessem e ficassem membros fundadores da Fundação. A Fundação nunca gastou esse dinheiro com que se fundou, nunca tocámos nesse dinheiro. Se tivermos amanhã uma dificuldade de dinheiro, esse dinheiro está lá, faz parte da Fundação. A Fundação não depende de nenhum Governo. Agora se quer falar disso a sério, tem de me deixar contar a história toda, não uma parte dela. Estou muito orgulhoso do trabalho da Fundação". Anos atrás, lembro-me de o ouvir dizer que todo o dinheiro que recolhia do intenso trabalho quando se retirou da política, nomeadamente livros e programas de televisão que fez, investiu na Fundação a que chamava "uma amante muito cara". Diz que não se lembra de me dizer isso e que a história da Fundação não pode ser assim contada, num restaurante.

O mau feitio não mudou com os anos e o bom feitio também não. Nunca foi homem de fundos rancores ou ódios. "Nunca tive mau feitio, sempre considerei os tipos com qualidade, mesmo quando não eram meus amigos ou eram meus inimigos no tempo em que eu tinha funções políticas. Qualidade é o que me interessa. O Eanes é um tipo de qualidade, como o Sá Carneiro era". Compara a postura deles com a de um membro do Governo sobre o qual conta uma história pouco exemplar que se passou com ele noutro restaurante. Pergunto-lhe se posso publicar a história com nomes e ele diz que não. "Pode mas não deve. Já tenho demasiadas coisas em cima de mim". Falo-lhe das coisas terríveis que escrevem sobre ele na internet, do falso e difamatório texto com a minha assinatura posto a circular todos os meses (desde há anos) e em que ele é atacado de uma forma soez e canalha. Truques de vingança e propaganda que não existiam no tempo em que ele era político. "A internet? Não leio. Não quero saber. Você quer que eu leia a internet? Nunca me preocupei com o que dizem sobre mim e não vou agora começar. O diz que disse não tem nenhum valor! Todos os dias sou confrontado com senhoras e cavalheiros que me vêm abraçar e dizer 'livre-nos dessa malandragem!' Todos os dias!"

A ENCEFALITE
"Estou numa fase da minha vida que é a última. Vou fazer 90 anos. Tive uma encefalite que me enfraqueceu". Uma infeção geralmente viral a que poucos sobrevivem e muitos menos na idade dele. O que assinala a sua robustez. "Tenho um bom coração, tudo aqui dentro do peito está em ótimas condições, impecável. Agora as pernas... as pernas chateiam-me. Fora as outras coisas". Cada dia é um ato de heroísmo naquela idade? "Não! Felizmente não. Os médicos sabem tomar conta de um tipo, sabem o que fazem. Quem me salvou foi o António Damásio, sou muito amigo dele. Houve duas pessoas que me salvaram, a primeira foi a Maria de Sousa, a que eu chamo 'a sábia' e que por acaso foi a minha casa naquele dia tomar o pequeno-almoço, vinda do Porto. Ela é como se fosse família. Disseram-lhe que eu tinha ido para o hospital e ela foi lá ter a correr. Eu estava em coma e ela entrou em contacto com o Damásio".

Digo-lhe que a família dele, a mulher e os filhos, praticamente acamparam nos cuidados intensivos e nunca o deixaram sozinho, quase me fazendo lembrar as famílias de ciganos que acampam no hospital para nunca abandonarem um dos seus. A lealdade da tribo. "A minha família, claro.

Reconciliei-me agora com a minha filha". Os rumores diziam que ele estava zangado com o filho, João, por causa dos apoios a Seguro e Costa e ele diz: "Fiz as pazes com a minha filha, com quem me tinha zangado por causa de certos cuidados médicos que tenho de ter e o meu filho foi o intermediário. Não estávamos zangados, nunca estive zangado com o João! A relação com a família é ótima, como sempre foi. É a família, e podem dizer de nós o que quiserem".

É extraordinário, dada a intriga e críticas violentas que correm à simples menção do nome Mário Soares, que nesta idade ele ainda seja considerado um inimigo político. "Sou o gajo que lhes atira mais às trombas, que quer você? E não digo mais nada, não quero falar mais de política. Porque sou um cidadão especial". Especial porquê? "Pelos cargos que desempenhei e pelas coisas que fiz. Sou um cidadão livre mas especial. Primeiro, desde os 14 anos que sou político. Segundo, desde sempre escrevi o que quis. E registei tudo aquilo que me disseram. Registei tudo. Tenho tudo escrito desde os meus 14 anos. Se quiser dar-me a honra de visitar a minha biblioteca para ver o que está guardado verá que está lá tudo o que escrevi desde os 14 anos, o que publiquei e não publiquei e tudo o que me responderam e disseram". A biblioteca, que ele arrumou há poucos anos no andar de cima da casa do Campo Grande, comprado para o efeito, é um verdadeiro arquivo da História de Portugal. Visitei-a quando Mário Soares andava a arrumá-la, empoleirado, ordenando temas e datas e mostrando os livros, as primeiras edições, com orgulho. Tem lá o seu escritório com vista para terraço arranjado com plantas pelo amigo Gonçalo Ribeiro Telles. Nunca vi estes registos, estes diários, e pergunto-lhe se não deveriam estar na Fundação Mário Soares ou mesmo, um dia, na Biblioteca Nacional. "Não estão, não estão nem num lado nem noutro. Estão na biblioteca da minha casa. E saiu na quinta-feira [27 de novembro], como sabe, um livro meu com tudo o que escrevi entre 1970 e 1974, esses registos". "Cartas e Intervenções Políticas no Exílio", editado na Temas e Debates pela sua velha amiga e editora Guilhermina Gomes, a diretora editorial. Estes são os anos em que estava em Paris. "Está lá tudo, nestes escritos, porque eu falei com toda a gente. É História. E tenho livros de toda a gente. Tudo o que me escreveram e disseram e tudo o que lhes disse e escrevi está lá". Estas são as verdadeiras 'Memórias', as que se pensava que nunca tinha tido tempo para escrever.

Uma das grandes influências na sua formação política e republicana foi do pai, João Soares. Mas houve outros: "O Mário de Azevedo Gomes, o Hélder Ribeiro, o António Sérgio, talvez tivessem ainda mais importância do que o meu pai. Todos contribuíram". E Álvaro Cunhal? "Numa certa altura, sim, depois deixou de ter e depois tive de o combater. Sou muito diferente do Cunhal". Cunhal era ou não uma grande figura? "Não tão grande como dizem, era um leninista". Entre a gente que conheceu nos verdes anos, e nos maduros, os políticos nacionais e internacionais com quem privou, do amigo Mitterrand ao amigo Willy Brandt, e a gente que vê hoje deslizar pela política, nota uma grande diferença. Tem saudades desse tempo? "Não". Soares nunca quer falar do passado e detesta a nostalgia. O futuro sempre lhe interessou mais. "E assim continuo, o que me importa e interessa é o futuro". Na idade dele, seria de esperar que o futuro lhe importasse menos do que a memória. É uma forma de altruísmo pensar o futuro onde não se vai estar. Soares foi dos primeiros a interessar-se pelo estado do planeta, a sua preservação, e a preservação dos mares como património da Humanidade. No que foi ajudado pelo seu grande amigo, o cientista Mário Ruivo, uma autoridade em oceanos. Foi um ecologista quando ainda não se falava em alterações climáticas ou a ecologia era confundida com manobras comunistas de distração e manipulação. Verde por fora vermelho por dentro era o grito contra a ecologia. "Sempre me preocupei com o planeta, você não imagina o estado em que está este planeta! É fundamental salvar os oceanos e não estamos a fazê-lo, fartei-me de organizar coisas para isso. E o ano passado, com as marés de inverno, o litoral português desapareceu. A areia foi-se e este ano vai ser pior. É preciso impedir esta catástrofe".
E está confiante no futuro? Ou numa mudança política em Portugal? "Dentro de um ano este Presidente deixa de ser importante, o que não é pouco".

Uma das libertações da idade é que ele, que nunca foi paciente, pode dar inteira liberdade à sua impaciência. "Cada vez tenho menos paciência para certas coisas".

ADMIRAÇÃO POR OBAMA
Nesta altura da refeição ele mandaria vir, in illo tempore, um charuto. Ou fumaria, uns anos antes disso, um cigarro. O cigarro nunca pareceu nele um adereço natural. "Nem cigarro nem charuto, agora, e nunca engoli o fumo". Digo que está como o Presidente Bill Clinton, que diz que experimentou marijuana mas nunca engoliu. Mário Soares gosta de Bill Clinton, que conheceu, e da "madame Clinton". "Mas Obama é o meu favorito, sem dúvida. Um tipo de uma categoria excecional". A Administração Obama perdeu esta eleição intercalar. "Ele não perdeu as eleições, foram os democratas que perderam as eleições, o que é um bocado diferente". Regresso às derrotas dos partidos socialistas e sociais-democratas, que parecem nunca se terem recomposto da queda do Muro. "Não existem, ou melhor, não têm existido durante este período, mas vão ter de existir ou a União Europeia vai para o charco". Acha que existe uma hipótese de Marine Le Pen ganhar as presidenciais em França? "Existe, mas espero que não ganhe". Não acha que seja o fim da União Europeia se Le Pen ganhar, e aprecia Jean-Claude Juncker, está convicto de que ele segurará. "Conheço o Juncker muito bem, acho que ele impedirá a União Europeia de se partir". E se o Reino Unido quiser sair? "Oxalá, não tem para onde ir". E a ligação com a América, não será tudo o que precisam? "Os ingleses nunca deixaram que os americanos fizessem parte da Commonwealth, nunca criaram esse espaço como nós fizemos como espaço da lusofonia incluindo o Brasil. E nunca deixaram porque têm medo dos americanos".

O Brasil tem recursos económicos que não temos, e no caso da PT não demonstrou grande solidariedade lusófona. "Os brasileiros têm grandes problemas, estão aflitíssimos. Isso da PT foi tudo uma estupidez. O modo como o Governo resolveu destruir o aparelho do BES prejudicou tudo o resto, não perceberam como o grupo era importante para a economia e deram cabo de tudo. E hoje toda a gente ficou danada, foi tudo mal resolvido. Atiraram tudo abaixo sem nenhuma vantagem para Portugal". Mas os administradores do BES não cometeram demasiados erros e trafulhices? "Claro que cometeram, e toda a gente parece que sabia disso e não se importava".

A situação de Portugal incomoda-o. A venda de ativos e centros de decisão nacionais, a alienação de bens a preços de saldo. "Hoje, Portugal não existe. Se for de Bragança ao Algarve a pé não encontra ninguém. Não há terras cultivadas, populações, vida. Estes gajos estão a destruir o nosso país, estão a vender tudo, só falta a TAP". Inconsciência do Governo? Aperto? Ideologia? "É também inconsciência. Falta de experiência". Atravessamos um momento de algum desespero? "Algum é favor. Desespero mesmo". Há um certo medo que faz recordar o marcelismo, o fim do regime. "O Caetano? O Caetano era outra coisa, não era como estes tipos, pode crer".

Nesta altura, Bagão Félix, que estava a almoçar numa mesa do mesmo restaurante, aproxima-se para cumprimentar "o senhor doutor". E cumprimenta-o pela excelente forma. "Na minha idade nunca se está em grande forma. Tive uma encefalite que me dá grandes lapsos de memória mas o que é interessante é que resisti quando toda a gente dizia que eu ia morrer!" Bagão Félix diz que o pai, com 94 anos, acaba de renovar a carta de condução. "Eu isso não faço, a partir dos 80 anos deixei de beber whisky e bebidas assim, deixei de fumar, deixei de guiar". Mário Soares era um péssimo condutor, há que dizê-lo, e um passageiro apressado e apreciador de velocidade. A mecânica nunca foi o seu forte.

SEM RANCORES
Estamos no fim do repasto, sem doces nem café. Pergunto-lhe se está um bocado amargurado com a pátria, se estas crises lhe roem os anos que lhe restam. "Nada! Não tenho amargura. O que me interessa é o futuro e no futuro o socialismo vai regressar, não tenho nenhuma dúvida. Acha que os bandidos e os mercados não vão mandar nisto para sempre?" Respondo que não me parece tão certo o triunfo do socialismo. Ou dos ecologistas. A China e os EUA, os dois maiores poluidores reunidos em cimeira recente, não vão deixar de poluir o planeta, e a Índia recusa-se a deixar de usar o carvão. Ou seja, o capitalismo nascente e o velho capitalismo americano não estão dispostos a deixar de ganhar dinheiro, como compete ao capitalismo. E a Rússia? "O Putin, ex-KGB, é um filho da mãe, muito diferente de Gorbatchov". E no Médio Oriente "nunca houve tantas guerras como há hoje". Das personagens políticas com as quais se correspondeu e conheceu e de quem foi amigo, destaca François Mitterrand, "um grande intelectual e amigo", Willy Brandt e Helmut Schmidt. "Estes, sim, eram grandes políticos alemães".

Vai continuar a escrever no "Diário de Notícias", mas decidiu que não se mete mais em política. "Já tenho chatices que me cheguem, tenho de cuidar dos livros". Mas que é que lhe podem fazer? Que "chatices" pode vir a ter com os seus inimigos? Digo-lhe, a brincar, que não o podem deportar para São Tomé ou exilar em Paris. "Não, não podem, mas se pudessem neste momento não me dava jeito. Tenho de estar cá, em Portugal".

[Clara Ferreira Alves,  na edição da Revista do Expresso de 29 de Novembro]

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Personalidade do ano para imprensa estrangeira


O ex-Presidente da República Mário Soares foi distinguido pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal com o Prémio Personalidade do Ano/Martha de la Cal deste ano.

O galardão é um reconhecimento do contributo da personalidade premiada para a divulgação da imagem do país no exterior. “Os correspondentes quiseram, com este prémio, constatar o importante papel desempenhado por Mário Soares na democracia e na História de Portugal”, justifica a associação para a atribuição do Prémio Martha de la Cal.

Se a distinção reconhece a “longa e intensa trajectória política” do histórico socialista, que fez 89 anos este mês, ela ocorre nesta altura porque também assinala a “enérgica actividade” de Mário Soares nos últimos meses, mesmo apesar do seu internamento hospitalar em Fevereiro.
[Público]

Só em Portugal Mário Soares é tratado como um velho senil. Triste país!


sábado, dezembro 07, 2013

Este homem não existe!


"No dia em que completou 89 anos de idade, o ex-Presidente da República, Mário Soares, marcou presença em Viana do Castelo, “solidário” com a luta dos trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) e foi aclamado, pelas mais de 2500 pessoas que encheram o coração da cidade quando gritou bem alto:“Estou solidário convosco e, estarei solidário convosco até ao fim”.
[Público]

quarta-feira, abril 01, 2009

Mário Soares na primeira pessoa


"Sou um homem de esperança.
Tenho esperança, em primeiro lugar, no povo português. E depois, na condição humana, independentemente daquilo em que cada um crê. Esperança na espécie humana, no Homem, nessa coisa singular e extraordinária que é saber distinguir o bem do mal. Tenho esperança numa utopia que nos conduza a um mundo melhor, com mais liberdade e menos violência, em que possamos dialogar mais e combatermo-nos menos, esperança numa utopia que nos faça a todos iguais. E tenho esperança no progresso, na evolução contínua da humanidade. E da medicina, que quase conseguiu vencer a dor. Física. Agora é preciso vencer a dor espiritual, o medo, a angústia que tantos têm da morte.

A morte não me é familiar, no sentido em que não me aflige. Não penso nela. Sei que todos vamos ter de ser confrontados com esse problema, todos vamos ter que desaparecer um dia. E os que têm a graça da fé têm um privilégio sobre os outros nessa passagem da vida para a morte. Mas eu não tenho fé - nem medo da morte. Dizem que a crença é uma graça divina – não fui tocado por essa graça, ainda. Até hoje, não fui. A morte, para mim, não é um mistério. Não me aflige que para lá da vida seja o Nada. Como não me aflige o que houve antes de eu estar, como dizia o meu pai, na “ordem dos possíveis”, isto é, quando ainda não tinha sido gerado. Não sabemos o que houve antes de nós nem o que haverá depois de nós. Acredito que seja o Nada, não sei. Sou essa circunstância. Não tenho dúvidas nenhumas de que quando morrer vou para debaixo da terra. Só espero morrer com a mesma dignidade com que tentei viver toda a minha vida.

Tenho 84 anos, bem vivos e bem vividos. Durmo bem, sem comprimidos, felizmente. E não me arrependo de nada. O meu cérebro está a funcionar - não digo inteiramente, mas funciona (ri) -, o espírito crítico mantém-se e estou suficientemente lúcido para saber que tenho que aceitar a morte quando ela chegar. Isso é uma maneira de mostrar coragem. Porque na vida é preciso ter coragem, fazer escolhas, ter dignidade em todas as circunstâncias, mesmo quando querem desmoralizar-nos ou tornar-nos indignos. Podemos ajudar o nosso cérebro a funcionar bem até ao fim. Quando isso acontece, quando o conseguimos, é uma grande felicidade. E podemos fazer o bem, praticar o bem, independentemente de sermos crentes ou não, religiosos ou não.

Não tenho fé, mas tenho esperança. E, como S. Paulo, à caridade prefiro o amor. O amor pelo próximo, pelo nosso semelhante. Tenho formação iluminista, sou racionalista: não sou capaz de chegar a uma verdade a não ser pela evidência, pelo experimentalismo. Não nego a existência de Deus - sou agnóstico e não ateu. A diferença é que não nego a existência Dele; custa-me apenas aceitar Deus como homem à nossa semelhança. Racionalmente, não me entra no espírito. Não obstante isso, insisto, tenho esperança. Esperança na política. Na política com P grande. Porque, para mim, a política nunca teve interesse material, nunca foi uma forma de ganhar a vida, pelo contrário. Sempre foi actividade nobre do espírito humano com vista ao bem dos outros. É nessa que acredito.

É um mistério saber porque nascemos e porque morremos. Não sei se um dia esse mistério será revelado, mas sei que isso não nos obriga a acreditar na transcendência. Por isso é que sou agnóstico. Tenho dúvidas profundas sobre isto.

Porquê as dúvidas?

O meu pai era religioso e eu adorava-o. A minha mãe era menos. O meu pai até costumava dizer, com alguma graça, que ela só se lembrava de Santa Bárbara quando trovejava. A minha mãe era ribatelana, o meu pai leiriense, nasceu perto de Fátima. O meu pai, grande conspirador contra a ditadura, porque esteve preso e foi deportado, esteve muito ausente enquanto fui criança, na minha criação. Quando regressou a casa, teria eu nove anos, sentou-se, um dia, ao meu lado, na cama, e perguntou-me se eu sabia o Pai Nosso - não sabia. Se sabia a Avé Maria - também não sabia. Tentou rezar comigo, mas já era um pouco tarde.

No entanto, sempre tive um certo fascínio pela religião. Participei em muitos eventos ecuménicos e aprendi muito. Eu era sempre um dos não crentes de serviço. O debate entre as diferentes religiões é muito difícil, como é entre crentes e não crentes, mas faz-se e é possível."

[Mário Soares, hoje, no II Seminário Nacional subordinado ao tema "Hospital, lugar de esperança", organizado pela Coordenação Nacional das Capelanias Hospitalares, no Hospital S. João, no Porto.]
PS.: À saída do hospital, uma senhora com 70 anos, ou mais, percebe que é Mário Soares quem está a entrar no carro e chama por ele, grita, insiste em dar-lhe um beijo, abraça-o. A cena não dura mais de quinze segundos. Já ele partira quando ela, como que a justificar-se dos risinhos de quem ali estava, disse alto: "Tenho uma casa, devo-a a ele, foi ele que ma deu. Se não hoje não tinha nada. Homem bom."

Soares é fixe

Há dois ou três socialistas neste país que admiro profundamente, quase cegamente, e que são os responsáveis por ser eu também socialista. Com orgulho, obrigada. Mário Soares é um deles, o maior deles. E, no entanto, Soares é diferente. Porque a admiração mistura-se, no caso dele, com uma espécie de devoção que só sinto por pessoas como, vá lá, o meu pai. Mas como amar um pai de forma total não é grande proeza, logo exemplo suficientemente claro, arrisco dizer que o discurso, não só necessariamente político, do líder histórico do PS está para mim como um concerto dos Tokyo Hotel para uma menina de 12 anos. Sem puxar os cabelos, mas com igual e tremenda comoção.

Hoje, no Hospital S. João, no Porto, Mário Soares falou da esperança que lhe compensa a ausência da fé, do amor que prefere à caridade, do que o move há 84 "vivos e bem vividos" anos. Falou da morte e do medo que dela não tem. Medo tenho eu (quantos de nós?) do dia em que isso lhe acontecer.