domingo, fevereiro 20, 2011

Rodrigo Affreixo: Que bem se está no Porto!*

[Becas, no Passos manuel, o indestronável melhor bar do Porto]

Viver no Porto é um luxo. É por isso que muitas pessoas de bom senso nunca deixaram de morar aqui. Tem a dimensão ideal: é uma cidade suficientemente grande para nos garantir algum anonimato e suficientemente pequena para nos permitir calcorrear o seu centro a pé. Às vezes é irritante por ser tão pequena, por as pessoas serem sempre as mesmas, circulando pelos sítios tal como nós, por tudo se saber sobre toda a gente... Mas, por outro lado, é tão bom sair sozinho e saber de antemão que se vai encontrar sempre alguém conhecido quando se chega a qualquer lado... Porém, essa sensação de aldeia desaparece quando reparamos, por exemplo, no cosmopolitismo da nossa programação cultural. Estabelecendo uma relação de escala com o número de habitantes, quem dera a cidades de maiores dimensões que o Porto, por essa Europa fora, terem uma tão variada oferta, e de tanta qualidade. Vive-se bem no Porto, do ponto de vista de consumo cultural.

Tive a sorte de ter 20 anos no início dos anos 80, e assisti a tudo desde o início. Aí terá começado uma movida que ainda perdura, mas entretanto as coisas evoluíram mesmo muito. As galerias de arte e os clubes nocturnos, por exemplo, contavam-se pelos dedos. Se queríamos ver filmes fora do circuito comercial, tínhamos de ser sócios de um cineclube. Era tudo muito pouco, mas já a tentar ser muito bom. E era muito criativo e estimulante também: se queríamos ter acesso a algo tínhamos de trabalhar para isso. Alguns bares não eram apenas bares, como o Anikibobó, que foi um autêntico pólo da cultura alternativa da cidade, anos a fio. Nos anos 90, as coisas evoluíram e começaram a crescer. Primeiro com a Fundação de Serralves, depois com o Teatro Nacional São João (TNSJ), depois com o Rivoli - Teatro Municipal (período Isabel Alves Costa), a culminar no Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Da formação de público às obras de requalificação na cidade, há definitivamente um Porto anterior e um Porto posterior a 2001. A iniciativa deixou-nos, de sobremesa, a Casa da Música (CdM).

Se compararmos o que temos hoje no Porto com o que há em Lisboa, com 300 e tal quilómetros de distância entre as duas cidades, não nos podemos queixar muito, até porque contamos com o trio Serralves/TNSJ/CdM, cuja fasquia de qualidade é única em Portugal. O que é que falta mais? A Cinemateca Portuguesa. É uma das melhores do mundo e está sediada em Lisboa. Paciência, também tem de ficar alguma coisa na capital... Proclama-se muito a criação de uma cinemateca autónoma no Porto. Mas não sei se iria ter público, sinceramente. Hoje em dia, os portuenses não parecem muito interessados em descobrir os clássicos do cinema. Avalie-se o número de espectadores que acorrem a uma sessão de cinema em Serralves, ou no renascido Cineclube do Porto no Passos Manuel, ou na sala-estúdio do Teatro do Campo Alegre, para sondar o potencial da coisa. Mas, se for criada, obviamente será bem vinda.

O que é que o Porto tem mais que Lisboa não tem? Lojas únicas, com coisas importadas que não chegam lá. E uma dinâmica nocturna que não tem comparação. Lisboa tem o Bairro Alto, onde toda a gente está praticamente na rua, à volta de bares improvisados em todo o tipo de pequenos espaços devolutos; e depois tem o superlativo Lux, um excelente clube em qualquer ponto do planeta. E pouco mais. A Norte, o investimento na noite sempre foi maior e mais cuidado. Só agora é que começam a aparecer barzitos sem grande investimento, sobretudo dedicados a vender bebidas em copos de plástico para o lado da rua, aproveitando a onda "botellón" que tomou de assalto a zona Leões/Clérigos. De resto, não faltam pólos dignos de atenção.

Além do renovado Hard Club, que apesar de uma programação um pouco "démodée" é um excelente novo ponto de encontro para os apreciadores do rock, o espaço multifunções Passos Manuel também tem sido um laboratório permanente para várias áreas e camadas sucessivas de novas gerações, do rock mais alternativo à electrónica, do cinema ao teatro, com o Becas a prosseguir a aventura programática iniciada no Anikibobó. Neste registo multifunções, outros sítios têm aberto no Porto nos últimos anos, como o Maus Hábitos, o Plano B, o Armazém do Chá ou o Café au Lait. Neste momento, o Porto tem quatro bons clubes nocturnos, com uma fervilhante programação a nível de DJ's: o Gare, o Pitch, o Trintaeum e o renovado Indústria. Noutros sítios, como o Café Lusitano e o Zoom, libertaram a noite gay dos seus locais semi-clandestinos para lhe dar dignidade e sofisticação, a par de mais espaço, em ambientes abertos a outro tipo de clientes.

O regresso à Baixa como centro de lazer foi a melhor coisa que podia ter acontecido à cidade, tornando-a mais cosmopolita e habitada. É bom andar a pé na Baixa à noite e cruzarmo-nos com outras pessoas, e ver sítios abertos, e jovens alegres, pela noite fora. E de dia também. Novas lojas, novos conceitos, esplanadas com gente, bares cheios ao fim da tarde.

Neste momento, é bom viver no Porto. Está uma cidade gira e animada. Os Erasmus e os voos low-cost estrangeiraram-na e rejuvenesceram-na. Convém é não esquecer que toda esta animação se deve sobretudo à iniciativa privada, por parte da cidadania que não baixa os braços e arrisca. Vendo bem a coisa, não houve assim tanta diferença no processo, desde os anos 80: ainda há quem se organize e se mexa para que as coisas apareçam feitas. De resto, há fundações e organismos estatais que fazem o melhor que podem, e bem, enquanto uma das poucas iniciativas de Rui Rio como autarca, na área da cultura, foi ceder de mão beijada o Rivoli a Filipe La Féria para que este aí montasse os seus musicais da Broadway, anos a fio. Curiosamente, o encenador desapareceu do Porto há já uns meses e ainda ninguém apurou bem porquê. É que nem isto funcionou! E lá continua o Teatro Municipal vazio. Muito mais vazio do que quando lá tinha a lotação esgotada para as prestações de algumas das maiores companhias de dança do mundo. Na tal época em que, segundo as palavras do esclarecido presidente da câmara, "não tinham público porque os espectáculos eram maus". Mas não faz mal: hoje em dia, felizmente, vive-se bem no Porto, e do ponto de vista de consumo cultural talvez já nem precisemos assim tanto do Rivoli.

* Rodrigo Affreixo, jornalista e editor da secção "Palco" da Time Out Porto, no Ípsilon de 18 de Fevereiro.

4 comentários:

  1. Um bom exemplo de pacovismo chauvinista à escala lusitana e à moda do Porto mais umbigueiro. Nem o Júlio Dantas faria melhor. E este gajo deve ser bem viajado para ter tantas certezinhas... Pelo menos atá Valongo, carago...

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    1. Sr. Anónimo!
      "Tomara muitos" ter um bar como o Passos Manuel! Falo da música!
      As bebidas são iguais em todo o lado: Valongo, Ermesinde, Paris, Barcelona, Londres, Madrid. Lisboa!
      "A música do Passos Manuel é para todos, mas nem todos são para a música do Passos Manuel." (Eu)

      Isto é só para dar uma de intelectual!...

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  2. O Becas é o máiór, carágo! "Não há música como esta!" do Passos Manuel! É "fora da matéria", para uma imensa minoria! Provavelmente a melhor música do Puôrto!
    Havia um rival mas já "morreu": O 31 no Passeio Alegre.
    O Rui Trinta e Um ainda rola uns LPs, mas já não é a mesma coisa...
    Portanto, o Becas é que é o mandador! Como na chamarrita!...
    Becas, Parabéns e boa continuaçõm de bom som!

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