sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Henry Miller: O sorriso ao pé das escadas


Prefácio: Quem já não sentiu o medo de viver a alegria do presente e entender esse estado de espírito com a angústia do prenúncio da tristeza que vem a seguir, como se houvesse um fiel da balança para equilibrar os pratos da tristeza e da alegria, do sofrimento e da felicidade, e como se não fosse possível viver arrastadamente uma só? (António Marques Leal)

Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo de extraordinário. mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah!, eis o truque mais difícil de todos. (...) Bem pequena a compreensão de qualquer um quando o destino estava em jogo! Ser palhaço era ser um peão no xadrez do destino. Na pista, a vida não passa de um mundo de espectáculo, feito de cambalhotas, bolachadas, pontapés - um nunca acabar de fintas e contra-ataques. E era através deste meio, desta vergonhosa folia que uma pessoa conquistava os favores do público! O idolatrado palhaço! O bem-amado palhaço cujo privilégio especial consistia em reviver os erros, as loucuras, as idiotices, todas as incompreensões que angustiam a espécie humana! Ser a própria inépcia era algo que mesmo o mais imbecil dos imbecis poderia apreender. Não compreender as coisas, quando tudo é tão claro como a luz do dia; não dar pelo truque, embora repetido milhares de vezes; tactear como um cego, quando todos os sinais indicam a direcção exacta; insistir em passar pela porta errada, apesar do aviso de Perigo!,; avançar para dentro do espelho em vez de contorná-lo; espreitar pelo lado errado de uma carabina, de uma carabina carregada! - nunca as pessoas se cansam destas coisas absurdas, pois há milénios que os seres humanos se enganam no caminho, há milénios que todas as suas buscas e interrogações desaguam num beco sem saída. O mestre da inépcia tem como domínio o tempo inteiro. Acontece que só se dá por vencido perante a eternidade...

Epílogo: Em nenhuma outra época da história da humanidade esteve o mundo tão repleto de sofrimento e de angústia. Mas apesar disso, aqui e além, deparamos com indivíduos que não estão contagiados, tingidos pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos independentes e livres. Para eles, o mundo não é o que a nós parece. Vêem-no estranhamente com outros olhos. Ousamos dizer deles, que morreram para o mundo. Vivem, no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um eterno hino de alegria. (...) Como o palhaço, vamos fazendo as nossas piruetas, aparentando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer, pois nunca fomos e nunca somos. Estamos sempre na relatividade de vir a ser, separados, desligados sempre. Sempre do lado de fora da vida. 

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