terça-feira, junho 29, 2010

O casaco verde II

[Howard Schatz]


Conheceram-se em Janeiro. Ela só sabia porque ele sabia. Ele sabia porque foi um dia frio. Ela não se lembrava porque a capital era recreio e ressaca, não era sala solene com advogado dentro a ensaiar-lhe uma defesa que não pedira. A sua inocência era tão óbvia que ser o defensor o primeiro a duvidar dela não era só ofensivo, era uma subversão idiota. Tão idiota como ele haveria de ser. Nunca se tinham visto. Mas já tinham falado as vezes suficientes para ela nutrir por ele um ódio suculento. Aquela voz grave e firme ao telefone a puni-la por ter deixado passar a fase de instrução, reduzindo as possibilidades de absolvição, fora a gota de água. "Como podia alguém flanar tão inocente sobre o real? Como podia alguém pairar tão indiferente sobre o mundo do problema?", inquietava-se ele. Era um homem zangado, seguramente com ela, mas provavelmente também com o mundo. Deveria ter uns 60 anos, talvez mais, e tratava a classe que deveria defender como um bando de mentecaptos irresponsáveis. Sim, odiava-o. E estava decidida a ignorá-lo, a ele e ao processo, em doses iguais. Ela queria ir a julgamento; ele queria evitá-lo. Como poderiam entender-se?!

Naquele dia, sob intimação dele, encontraram-se. Ela ia metida dentro de um casaco verde comprido. Comprado talvez numa loja romântica de Berlim ou Nova Iorque, efabulou ele. Enfiada nuns óculos escuros para não se lhe tocar, pensou ele outra vez, decidido a ajuízar e a etiquetar todos os sinais da arguida a quem, desde o início, decidira retirar o direito à presunção de inocência. Mas quando a porta se abriu e os olhares se cruzaram, ambos sentiram o choque do embate. Ambos pensaram estar diante da pessoa errada. Ele não tinha 60 anos, teria sequer 30?! Tinha ar de menino a brincar aos crescidos no escritório da família, a gravata a condizer com a camisa, os olhos azuis ou verdes, claros como o cabelo, parecia uma figura de Miguel Ângelo acabada de cair do tecto da Capela Paulina. Um Saulo imberbe em busca da luz da verdade. Ela teve de morder a boca para não rir, teve que pensar em coisas trágicas para conseguir levá-lo a sério e, mesmo assim, perguntou-lhe se poderia abolir o Dr. no trato. Ele assentiu. Mas afundou os olhos no chão, nos papéis, olhava para ela como quem espreita pela porta da fechadura. A tranquilidade dela, que ele leu como atroz irresponsabilidade e desprezo pelo empenho dele, era exactamente a mesma. Mas daquele homem velho e ressabiado nem sombra. Voltou a estragar tudo quando disse que apresentaria um requerimento para não irem a jogo. Ela discordou, queria mesmo ir a julgamento; ele continuava a tentar evitá-lo. Tinha medo do que dizia ser a franqueza das palavras delas a entrar no mundo dúbio dos homens, naquele ringue torto e falso que ela desconhecia. Talvez desconhecesse, mas conhecia a verdade e não tinha medo. Por que raio haveria ele de ter?

O julgamento foi adiado e eles nunca mais se viram. Nem falaram. E o tempo passou. Muito. Um ano? Talvez dois. Passou sem custar. E um dia o telefone tocou. Ela viu, não atendeu. Tocou várias vezes até que decidisse atendê-lo. A insistência cheirava outra vez a crime. Que teria feito desta vez? Ainda não tinha atendido e já só se ria. Lá vinha outra vez a figura de Miguel Ângelo brincar aos crescidos. Aboliram o dr, mas ainda se tratavam por você. Ele pergunta-lhe se pode ser por tu. Pode, claro. E, pela primeira vez, o advogado parece querer realmente defendê-la, mas já não lhe parece, a ela, advogado. E já não é. Embora seja.

Voltam a encontrar-se, agora a Norte. Uma, duas, várias vezes. Ela já não leva o casaco verde, mas ainda é de casaco verde que ele a vê, que a distância cria imagens mais fortes que a realidade. Quer dizer-lhe coisas que o tempo não permite, nunca, coisas que ela intui, quase sempre. Conta-lhe histórias de encantar, dos avós, dos pais, da menina dos olhos dele, do bebé, traz-lhe relatos de golos multiplicados em jogos nocturnos, golos que fizeram dele o melhor marcador, de viagens de vespa nas manhãs de chuva do Chiado, o cheiro das oliveiras a perder de vista no calor do Alentejo. Música, a dele que é dela. Como o resto, os valores, as convicções, os ideais. Papel químico um do outro. E fá-la genuinamente rir, proeza rara. "A desculpa dos sapatos não serve. Não depois de o teu salto ter ficado preso duas vezes em 20 minutos no pavimento". A desculpa para não viver em Lisboa. "A dos transportes também não. Em Lisboa há táxis como os daí e um metro de categoria". Conversa de tolos. Riem. Se vivessem no mesmo bairro e partilhassem o dia-a-dia, seriam amigos de sangue. Mas o campeonato não é o da amizade simples. E ele só não pede respostas porque a coragem, como o tempo, não permite. Mas as perguntas estão todas lá, implícitas. E ela sabe. E queria poder dizer-lhe o quanto lhe quer bem, o quanto gostaria de nunca o perder de vista, o quanto lhe custou o dia em que os olhos dele não apareceram enxutos e como os dela também ficam assim quando o lêem - e se ele poderia ganhar a vida a escrever! E como seria incapaz de o magoar. E como, apesar disso, sabe que o faz. Porque não possui nenhuma resposta capaz de o fazer feliz nem nenhuma que não soe a chavão assassino. No corredor de um egoísmo em que se não revê, cala e eclipsa-se. E espera ser desculpada. A paixão é um purgatório cuja purificação raras vezes dá acesso ao céu. Ele sabe. Ela também.

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