Um homem trabalha há dez anos sem contrato, sem nada, de sol a sol, para ganhar quatro dólares por mês. Tem vários filhos que alimenta com folhas de sabe-Deus-o-quê. Em dez anos de trabalho não ganhou para comprar um fato, quanto mais uma televisão. Vive sem luz, sem água, sem nada, no meio do mato, no Congo. Mas acredita, porque a Unicef e as ONG's deste mundo lho garantem, que um dia terá uma vida melhor. Em dez anos, teve a confirmação de que Deus existe no dia de excepção em que comeu dois centímetros de carne cozinhada.
Um homem exibe uma bebé sentada num banco, inerte, os olhos abertos de tão secos, de tão feridos, não conseguem sequer piscar. O pai despe-a sem pudor, mostra as chagas, incluindo as do ânus da criança, subnutrida, jackpot de carências. Despeja-ao no mesmo lugar, explica que em breve morrerá. Encolhe os ombros, é assim. Ali, toda a gente já perdeu tanto de tudo.
Um homem tinha quatro filhos, sobrou um. Os outros morreram à fome. Com quatro dólares por mês, não há milagre que lhe valha. Nem a ele nem aos outros homens como ele, tantos.
Um homem, branco, tem o olhar preso numa galeria de arte. Admira fotografias de trabalhadores negros numa plantação de cacau. Conta orgulhosamente que comprou várias daquelas imagens para a sua colecção. É o proprietário do terreno; os protagonistas das fotografias são os escravos. Perguntam-lhe, ao branco, por que razão os filhos dos seus trabalhadores são subnutridos se as suas plantações são tão abundantes. "É natural", responde. Sorri. Tanto lhe faz.
Um homem, italiano, apetrechado de Cannons e objectivas e Vaios e telemóveis de última geração, fotografa cadáveres, mulheres violadas, crianças a um passo da morte. Trabalha para a France Press. Perguntam-lhe por que razão não fotografa os desfiles ou as festas daquele povo. "É a lei do mercado, só o sofrimento vende", responde. E ele está ali para vender, é um profissional. Insistem nas perguntas, querem saber se ele retribui aos personagens que não raras vezes valem prémios de fotografia, de jornalismo e lhes catapultam, a eles, repórteres fotográficos, a carreira. Se lhes retribui pelo menos com alguma coisa por cada 50 dólares que ganha por fotografia. "Não". Obviamente. Alguém tinha dúvidas?!
Uma mulher, asiática, óculos escuros, blusa imaculada, cabelo brilhante, desfila numa tenda de refugiados de onde brotam logotipos da Unicef e de semelhantes samaritanas organizações. Perguntam-lhe o porquê de tantos logos? Hesita, responde: "Visibilidade, claro". Sorri.
Um homem, branco, fato e gravata, conferência internacional-barra-cocktail-barra-feira-de-vaidades, anuncia não sei quantos milhões fresquinhos de ajuda humanitária para África. Perguntam-lhe se aquele dinheiro vai realmente subtrair em igual proporção a pobreza e se essa pobreza não poderia ser usada como recurso natural daquele território, algo para exportar, já que tanta gente no mundo parece gostar de a consumir. O homem baralha-se, gagueja, ofende-se. O que diz e nada é a mesma coisa. Dizer o quê?!
Todos os dias!!! Todos os dias há milhares de pessoas que ganham dinheiro porque todos os dias há milhões que morrem à fome. E nada disto é pornográfico! Nada disto é chocante! O mundo inteiro vê, comove-se ou não, contribui ou não e segue. Como se a pobreza extrema de alguns fosse o único certificado da riqueza de outros. E isso a tornasse necessariamente irreversível. Mas que um artista holandês, Renzo Marteens, tenha filmado isto, denunciado isto, questionado isto, já choca toda a gente. "É o objecto mais pornográfico que vi em toda a minha vida", ouviu-se no domingo passado, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, depois do visionamento do documentário orgulhosamente vetado no Indie (ou no Doc Lx, já não sei) e inserido agora no Alkantara Festival.
Renzo tentou explicar, provocando e provocando e provocando, com um cinismo épico, que a pobreza é ela própria um recurso, que quem ver pobres tem de pagar aos pobres para os ver. E que eles deviam ganhar dinheiro com isso até esgotarem o recurso. Produziu um documentário bizarro, perturbador, sem qualquer preocupação estética, mas real. Demasiado real. Não é um trabalho jornalístico, como alguém disse - e essa nunca foi a sua pretensão. Mas, claro, é mais fácil atacar o método do que discutir o resultado. Porque o resultado põe-nos a todos, ocidentaizinhos, em causa.
"Enjoy the poverty" está longe de ser um objecto pacífico. É de uma crueldade sem limites. Mas por uma única razão: para o conseguir realizar, Renzo Marteens criou, por um lado, falsas expectivas. Explicou aos fotógrafos locais que poderiam ganhar muito mais a fotografar os pobres seus conterrâneos do que os seus casamentos. E eles acreditaram. Acreditaram até que poderiam vir a ter carteira profissional e vender aquilo para o mundo. E por outro, porque explicou àquelas pessoas que a vida delas nunca há-de melhorar, que têm de aprender a ser felizes sabendo que serão sempre pobres. E isto é superlativamente cruel. Roubar os sonhos, a esperança é roubar o futuro. Mas também é corajoso. E independentemente disso, é a verdade. E a pura da verdade, às vezes, é muito cruel. Explorar a pobreza é muito mais cruel do que o documentário. E o que ele mostra ainda é mais. E fica a moer, a moer...
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