Não estava ali à mão, no início do caminho de Saramago, a mulher que, contou Violante, filha única do escritor, o haveria de tornar “mais acessível, mais aberto, capaz de derramar os sentimentos e de abandonar a sua habitual atitude de defesa”. Não estava ali à mão Pilar, espanhola de Andaluzia, jornalista de 36 anos; ele já com 64 e com dois casamentos – nem poderia, que tudo o que é determinante na vida do autor de “Memorial do Convento” aconteceu tarde. Mesmo a literatura. Publicou o primeiro livro aos 25, seguiram-se 19 sem escrever.
Sobre essa mulher a “quem se confiou como a qualquer outra pessoa não seria capaz” , escreveu ele, no seu blogue, em Março do ano passado: “Graças à sua inteligência, à sua capacidade criativa, à sua sensibilidade, e também à sua tenacidade, a vida deste escritor pôde ter sido, mais do que a de um autor de razoável êxito, a de uma contínua ascensão humana. Faltava, mas isso não podia imaginá-lo eu, a idealização e a concretização de algo que ultrapassasse a esfera da actividade profissional ou que dela pudesse apresentar-se como seu prolongamento natural.”
As declarações de amor de Saramago a Pilar – mulher que a escritora e amiga íntima do casal, Nelida Piñon, definiu como “mulher da Bíblia, como se diz das criaturas de têmpera forte, e sempre generosa, fiel, convicta” – foram uma constante ao longo dos 23 anos que partilharam. Declarações de amor e de gratidão pela segunda vida que lhe concedeu. Depois da pneumonia que primeiro o atirou durante meses a fio para a cama de um hospital e depois, temporariamente, para uma cadeira de rodas, o autor publicou “A viagem do elefante” e consagrou-o. "A Pilar, que não me deixou morrer”. Em “Pequenas Memórias”, o mesmo gesto: “A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”.
Dificilmente outro nome próprio poderia condizer tanto com o papel de uma mulher na vida daquele homem: ela é secretária, conselheira, companheira de convicções políticas (também marxista e comunista), ela é tradutora para espanhol dos seus livros e do seu blogue, ela é sua advogada de defesa (“Saramago é um ser excepcional, a sua dimensão é distinta e o seu perfil não é o habitual, por isso há tanta gente que não o entende”, disse como quem coloca um ponto final na polémica à volta de “Caim”). Pilar preside à Fundação Saramago depois de ela própria ter procurado e organizado o acervo que garantirá a preservação da memória da obra e do homem.
“Temos uma parceria para a vida”, afirmou recentemente, cúmplice também na devoção. Tanto assim é que Pilar é hoje nome de rua na rua que se cruza com a de Saramago, em Azinhaga, ribatejana terra natal do escritor. Foi a 3 de Junho de 2008. Ele considerou o acontecimento como o seu “terceiro casamento”. Ela desejou que “todos os enamorados do mundo se encontrem e dêem um beijo naquela esquina”. Na esquina onde as ruas José Saramago e Pilar del Rio se encontram.
Eles encontraram-se muito antes. Em 1986. Portugal vivia as eleições presidenciais mais disputadas de sempre. Freitas do Amaral à direita; Mário Soares à esquerda. Ganhou Soares à segunda volta e o país aderiu à então Comunidade Europeia. Foi numa tarde desse ano que Pilar, ao passear por Sevilha, entrou numa livraria e leu meia dúzia de páginas de “Memorial do Convento” (1982). Não sabia quem era Saramago, nunca tinha ouvido falar, mas ficou tão impressionada que comprou todos os seus livros. Devorou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” noite adentro e sentiu necessidade de agradecer ao autor que lhe tinha proprocionado aquela viagem. “Foi uma comoção muito forte e decidi fazer o que não tinha feito nunca, senti a necessidade de seguir aquele itinerário lisboeta, senti que tinha a obrigação moral de dizer a José Saramago o que tinha experimentado. Um autor só acaba a sua obra quando o livro é lido e entendido. E eu queria dizer-lhe: completou-se o ciclo, li-o e entendi-o”.
Encontraram-se então em Lisboa, no hotel Mundial. Cumprimentaram-se com um aperto de mão, passearam pela cidade e falaram de quase tudo. E tudo lhes dizia que eram iguais. Depois, ela foi embora. “Com uma estranha paz”. Trocaram livros e críticas pelo correio e, um dia, ele quis voltar a vê-la. Foi assim durante vários fins-de-semana, ele a apanhar o autocarro de Lisboa para Sevilha. Casaram menos de dois anos depois. Ela veio para Lisboa. "Não me custou nada a adaptação. Quando vim para cá, vim para minha casa", haveria de contar mais tarde. Mais tarde ainda, em 1993, na ressaca da publicação e respectiva controvérsia em torno de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" (1991), foram ambos para Lanzarote. Casa que passou a ser também dele. Deles.
“Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 63 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me. As coisas que vocês consideram importantes não são tão importantes. Eu ganhei um Prémio Nobel. E daí?", disse em 2008 numa entrevista ao New York Times. O Nobel da literatura, único em Portugal, fora-lhe atribuído - a ele escritor autodidacta e tardio - há exactamente dez anos.
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