No primeiro dia disseste logo que querias morrer. Que nada te prendia, que nada te impediria, que te sentias a mais, que estavas farto. Era Inverno, Dezembro frio, a música alta, sempre a mesma no mesmo pub, os bancos de veludo baixos, quatro joelhos colados e dois ginger ale a dividirem a mesa com o capacete, as luvas, a tralha toda da mota, o teu ouro. Tu querias morrer. Talvez não já, não sei, mas o aviso estava feito. Ameaça velada a ensombrar a conversa, uma dor que não sabias bem de onde vinha, mas que não cabia dentro de ti. Sufocava-te, enlouquecia-te a necessidade de evasão. Um cutelo entre ti e a vida. Eras tão novo e já tão farto. Mas eu era ainda mais nova, que poderia eu saber? Só que tu querias morrer. Porque mo disseste. Logo ali e tantas vezes depois. Nunca duvidei por um segundo. Tu ias morrer. Era o nosso segredo. O primeiro beijo.
Passou o Inverno, um, dois, três, o Verão, três, quatro, cinco, as estações todas tantas vezes e uma tempestade que te despiu, que te desmoralizou, mais ainda, e quase te matou. Meses e meses a pedir-te para não morreres, não já, eu a chorar, tu a rir. Aquele riso que me dizia ao ouvido: tens de estar preparada, tens de estar preparada. Mas eu não estava. Tu estavas à espera que eu crescesse, eu estava à espera que tu esperasses por mim. Eu espero por ti, dizias. Esperávamos os dois como se fosse possível algum dia termos a mesma idade. Para nada daquilo parecer pecado. O amor. E a morte. Os dias inteiros no rio, à varanda, em cima da ponte, em sítios sem nome. Tu do lado de fora da janela a gritar Parabéns no dia do meu aniversário. Tu a desceres a escadas a correr para pegares em mim ao colo no meio da rua. Dias inteiros de mãos dadas, infindáveis noites sem dormir naquele teu abraço apertado. Colecção de segredos que não parava de aumentar. Como o desejo.
Um dia disseste que só ainda não tinhas morrido por minha causa. Porque eu precisava de ti. "Não te posso deixar aqui sozinha", disseste. "Ninguém te entende como eu. Ninguém se entende como nós." Ninguém me entendia como tu. Nós entendíamo-nos. Mesmo. Tanto. Tudo. E ninguém entendia como. Como podia amar-te, e amar-te tanto, se quase todos te odiavam - como se a cega fosse eu e não eles. Como podia defender-te no que todos te atacavam. Como o meu mundo parava quando tu vinhas do nada. E como eu te adivinhava, vinha a tua mota ainda ao longe, tão longe que não era possível ouvir e eu sabia. Como soube no dia em que a ambulância passou que eras tu. Como soube no dia em que o telefone tocou que eras tu a notícia. Mas antes disso, como só tu me fazias rir, como só tu me fazias não ter medo. Como só tu me fazias faltar às aulas durante o dia e fugir de casa a meio da noite. Só para falarmos durante horas e horas. E como tu me protegias, sempre e sempre. "Queres que lhes bata?" Sorrias, despias aquele casaco de pele a pesar toneladas e embrulhavas-me como quem embrulha uma princesa frágil. Ainda que o frágil fosses tu, tu a tremer, tu a disfarçares a ressaca, tu desaustinado nas ruas escuras onde tantas vezes te fui encontrar. Mas tu sorrias, sempre, não te zangavas, sorrias e vinhas. Dizias: "Não podes andar aqui sozinha". E eu respondia: "Não estou sozinha, estou contigo". E ficava tudo bem, eu via-te, sorria, tu sorrias. Era quase fácil esquecer que ainda querias morrer.
Um dia fiz-te um desenho num caderno de uma aula a que não fui. Um desenho a lápis que tu completaste com uma caneta. Escreveste o teu nome, porque o desenho eras tu. Abraçaste-me e perguntaste: "Nunca me vais esquecer, pois não?" Se tu prometeres não morrer, não. Foi o nosso último Verão. Depois, perdemo-nos, primeiro às prestações, depois de vez. Porque eu tinha de sair dali, e tu sabias. Só não sabias que contigo nunca teria conseguido. Alguma vez me terás perdoado? Alguma vez terás entendido o que te disse? E um dia o telefone tocou. A tua testa fria. O último beijo.
Passaram onze anos, hoje. A ausência não é uma imagem desfocada que segue num único sentido, para lá, até desaparecer. A ausência é coisa que vai e volta, às vezes mais desbotada, às vezes mais violenta. A ausência às vezes é tão viva que ainda olho para trás, ainda vou aos mesmos lugares, ainda te ouço rir. E às vezes ainda volto para trás quando tento subir as escadas do sítio onde estás. E ainda sonho contigo, sabes? Mas os sonhos dizem-me sempre a mesma coisa, és tu a falar, dizes que já não estás. E eu queria tanto que estivesses aqui agora. Queria tanto as nossas conversas, o teu abraço, a tua protecção, queres que lhes bata?, queria tanto saber como seria agora que finalmente cresci e não teríamos de esperar mais. E ainda hoje não entendo porque não me ligaste, porque não me chamaste. Se não tivesses ido embora, ainda hoje guardaríamos os segredos um do outro. Eu teria continuado a guardar a tua vontade de morrer se tu não tivesses quebrado a promessa. A promessa de que nunca o farias.
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