quarta-feira, junho 23, 2010

António Lobo Antunes: Memória de Elefante

"De longe em longe cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa assim, que gosta de nós não apesar dos nossos defeitos mas com eles, num amor simultaneamente desapiedado e fraternal, pureza de cristal de rocha, aurora de Maio, vermelho de Velásquez. (...) Tu, pensou, tu escapaste sempre à derisão e à ironia em que procuro esconder a ternura de que me envergonho e o afecto que me apavora, talvez porque desde o princípio tenhas topado que sob o desafio, a agressividade, a arrogância, se ocultava um apelo aflito, um grito de cego, a mirada lancinante de um surdo que não percebe e busca em vão decifrar, nos lábios dos outros, as palavras apaziguadoras de que necessita. Vieste sempre sem que te chamasse, amparaste sempre o meu sofrimento e o meu pavor, crescemos ilharga a ilharga aprendendo um com o outro a comunhão do isolamento partilhado, como quando parti, sob a chuva, para Angola, e os teus olhos secos se despediram sem falar, pedras escuras guardando dentro como que um sumo de amor."

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