Dizem-me que só os posts dietéticos conseguem ter leitura. Mas é impossível emagrecer o número de citações da obrigatória e lúcida crónica que Eduardo Lourenço publica, hoje, no Público. Sobre o tempo de Mário Soares.
A propósito de lucidez, o ensaísta tem 83 anos; o político tem 81. Num país em que qualquer gato pingado, a partir dos 50 anos, já dá três tostões a quem lhe garantir uma reformita antecipada, isto dá que pensar. Sobretudo quando são esses pré-reformados que recusam votar em Soares por causa da sua idade. Quem não gosta de trabalhar, tem aversão a quem trabalha. E a quem luta. Até ao fim. É triste, mas é verdade. É o sinal de um país que recusa ter memória.
A propósito de lucidez, o ensaísta tem 83 anos; o político tem 81. Num país em que qualquer gato pingado, a partir dos 50 anos, já dá três tostões a quem lhe garantir uma reformita antecipada, isto dá que pensar. Sobretudo quando são esses pré-reformados que recusam votar em Soares por causa da sua idade. Quem não gosta de trabalhar, tem aversão a quem trabalha. E a quem luta. Até ao fim. É triste, mas é verdade. É o sinal de um país que recusa ter memória.
Escreve Eduardo Lourenço:
"Trazer para esta sociedade, mais do que nunca sociedade de espectáculo, o eco da antiga paixão portuguesa, quer a recalcada do antigo regime, quer a exaltada e exaltante das duas décadas após Abril, era uma aposta arriscada, para muitos perdida e, em todo o caso, objectivamente quixotesca. Filho desses dois tempos, de que foi actor político precoce e, depois, personagem histórico, Mário Soares ousou trazer de novo para uma arena pública, já longe desses tempos turbulentos, essa antiga paixão política, sem querer saber se estaria ou não fora de estação. Passada a surpresa, esta audácia quase juvenil do antigo Presidente da República foi recebida com cepticismo por muitos, com sarcasmo por outros e, sobretudo, como uma ocasião inesperada para ajustar contas antigas e menos antigas com o homem que, melhor do que ninguém, de entre os activos, se identificou e é identificado com a Revolução de Abril e, em particular, com o tipo de democracia que ela instaurou em Portugal."
(...) "o antigo mundo que foi, durante décadas, o do horizonte da luta política de Mário Soares, funciona em termos de repoussoir - e Mário Soares, mais fiel aos seus ideais de sempre do que se diz, aparece, em fim de percurso, mais à "esquerda" do que nunca o foi. Não alinhou na cruzada da família Bush contra o Iraque, não morre de amores pela nova ordem hiper-liberal americana e comparece nos "fóruns" onde essa nova ordem imperial e imperialista é contestada. É mais do que basta para o incluir, desta vez sem reticências, na esquerda que, desde jovem, foi o seu lugar matricial e que, agora, no tarde da sua vida, lhe serve ainda de escudo."
"É uma bela aposta a de Mário Soares, perdida ou ganha. Com a sua carga romanesca e a sua trama paradoxal. Mário Soares não é - nem a título histórico, nem ideológico - toda a esquerda portuguesa, mas nunca foi mais representativo dela, da sua utopia e das suas inevitáveis miragens, do que hoje, quando, aos oitenta anos, se apresenta como alguém, dentro dessa escolha, susceptível de incarnar ainda, melhor do que ninguém, essa velha aposta que entre nós nasceu com Antero e teve em António Sérgio, entre outros, as suas referências culturais, infelizmente mais vividas com sugestões poéticas do que propriamente políticas."
"Pela força das coisas, ou a mudança de tempos, é de temer que Mário Soares se tenha enganado de moinho. Os seus adversários neste combate inglório e soberbo foram sempre outros. Não só os que se lembram do seu militantismo juvenil, como os que não esquecem a sua conversão definitiva ao socialismo democrático, mas, sobretudo, os que nunca lhe perdoaram o ter lutado pela democracia em Portugal, antes e depois de Abril. É isso que a verdadeira direita não esquece. É muito mais gente do que se supõe. É a mesma que põe na sua conta, como uma mancha indelével, a absurda culpa de ter "perdido" uma África que ninguém "perdeu" senão ela."
"Mário Soares - querendo-o ou não - está no centro desse drama. Com coragem e quase provocação, revestiu-se, pelo seu passado e pelo seu carácter, do manto real da esquerda, pensando incarná-la como ninguém. A esquerda não o traiu, nem ele se traiu nela. O drama é que essa esquerda de que pela última vez se faz paladino é, ao mesmo tempo, uma realidade - embora ideologicamente recente - e uma quimera. "
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