terça-feira, setembro 06, 2011

Ivan Turgueniev: Cadernos de um caçador


Não sei quanto tempo dormi, mas quando abri os olhos toda a floresta estava inundada de sol e, em todas as direcções, através da folhagem que marulhava com alegria, entrevia-se e cintilava o céu azul vivo; as nuvens haviam desaparecido, enxotadas pelo vento, o tempo desanuviara, e no ar sentia-se aquela especial frescura seca que, enchendo o coração com uma sensação de energia, quase sempre prediz uma tarde pacífica e clara depois da intempérie do dia. Já queria levantar-me e voltar a tentar a sorte quando, de repente, os meus olhos apanharam uma imóvel imagem humana. Olhei com atenção: era uma jovem rapariga camponesa. (...) Gostei sobretudo da expressão do seu rosto: tão simples e meiga era, tão triste e cheia de uma infantil perplexidade perante a sua própria tristeza. Estava, pelos vistos, à espera de alguém.

(...) - Vai esquecer-se de mim, Víktor Aleksândrich, disse Akulina com tristeza.
- Não, porquê? Não te esqueço; só que não sejas parva, tem juízo, obedece ao teu pai... Ora, eu não te esqueço, não. (Espreguiçou-se com calma e voltou a bocejar.)
- Não se esqueça de mim, Víktor Aleksândrich, continuou ela, suplicante. - Sabe como gostava de si, dei-lhe tudo... Está a dizer que tenho de obedecer ao meu pai... Mas como posso obedecer-lhe se...
- Porquê? (Pronunciou-o como que a partir do estômago, deitado de costas e com as mãos debaixo da nuca.)
- Ainda pergunta porquê, Víktor Aleksândrich, sabe...
Calou-se. O homem brincou com a corrente de aço do seu relógio.
- Akulina, tu não és estúpida, disse ele finalmente. - Por isso, deixa de dizer disparates. Quero-te bem, está a entender? Claro que não és parva, não és de todo campónia, por assim dizer; e a tua mãe nem sempre foi campónia. Mesmo assim és inculta, portanto tens de dar ouvidos ao que te dizem.
- Mete medo,Víktor Aleksândrich.
- Mas que disparate, minha querida: inventas cada medo! O que é isto?, acrescentou, chegando-se a ela. - Flores?
- Flores, respondeu Akulina, desalentada. - Colhi algumas erva-de-são-marcos, continuou, um pouco mais animada -, é boa para os vitelos. E esta aqui é o picão, cura a escrófula. Oha só que florzinha maravilhosa; nunca na vida vi uma florzinha tão linda. Esta é a não-te-esqueças, este é o serpão... E estas aqui são para si, disse, tirando de baixo da erva-de-são-marcos amarela um pequeno ramo de cantáureas azuis, atadas com uma erva fininha. - Quer?
O homem estendeu a mão com preguiça, pegou nas flores, cheirou-as com indiferença e pôs-se a girá-las nos dedos, lançando olhares para cima com um ar de importância pensativa. Akulina olhava para ele... Nos seus olhos tristes havia um sem fim de terna abnegação, de submissão venerabunda e de amor. Tinha medo dele e não se atrevia a chorar, e estava a despedir-se dele, e a admirá-lo pela derradeira vez; o homem, no entanto, estava deitado, repimpado como um sultão, e tolerava a sua adoração cm uma magnânima paciência e condescendência. Eu, francamente, olhava com indignação para a sua cara vermelha em que, através de uma fingida indiferença desdenhosa, transparecia um amor-próprio satisfeito e saciado.

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