segunda-feira, setembro 26, 2011

Para acabar de vez com a cultura

O título é de um livro do Woody Allen. Não creio que ele, ou nós, imaginássemos que quando este livro foi escrito e a palavra cultura era um bilhete de identidade, esse mundo estivesse em vias de extinção. Cresci num mundo, poderia dizer, controlado pela cultura. Comíamos cinema clássico e filmes russos e alemães com sete horas (não eram pera doce), papávamos Bergman ao pequeno-almoço, e ninguém podia chegar à puberdade sem ter lido pelo menos um romance de Tolstoi e Dostoievski, de Stendhal e Flaubert. As meninas tinham de chorar com Alexandre Dumas e a Dama das Camélias e os rapazes tinham de ir aos pássaros e beijar uma Becky Thatcher (não é parente da Mrs.) com a leveza do Tom Sawyer. Passávamos uma tarde a preguiçar com Huckleberry Finn no Mississípi. mark Twain foi um pai para a literatura e para nós. Fomos caçar baleias com Melville.

Tínhamos de saber distinguir entre a sonoridade melancólica de Chopin e a alegria cantante de Mozart, entre quintas e nonas fossem as Beethoven ou as de Mahler. E tínhamos de saber distinguir Cole Porter e Irvind Berlin, John Ford e Howards Hawks. Tínhamos de saber as subtilezas de Nietzsche e Schopenhauer para participar numa discussão onde entrasse a palavra niilismo (e a palavra niilismo estava sempre a romper conversas) e tínhamos de saber a diferença subtil entre o materialismo histórico e o materialismo dialéctico. O cânone e a vulgata. Alguns de nós lemos "Das Kapital" (nunca passa de moda) e outros leram o proibido Livro Vermelho do camarada Mao. Ele há gente para tudo, como dizia o avô Maia. Eu falei n'"Os Maias"? Adorámos.

Havia que discutir política usando autores como Steinbeck e Caldwell à mistura com Hobbes e Burke e discutir política do género usando autores como Baldwin e Steinem. Havia que ver o Holocausto pelos olhos de Ophuls filho (havia o pai, Max) e argumentar colocando na mesma frase os nomes de Goethe e Weimar contra os de Hitler e Goebbels (hoje, à luz da nossa intimidade com o pensamento e o banco alemão, dá muito jeito). Os iniciados citavam Walter Benjamim e Schiller. Entre outros. E falavam do Aufklaurung. Romantismo? Antes o de Lord Byron que o do tolo Bernard Henry-Lévy.

E havia a poesia francesa, desaparecida em parte incerta. Toda a gente sabia o que se tinha passado nas masmorras da Sade e Casanova e entre Rimbaud e Verlaine em Bruxelas (não tinha a ver com subsídios e comissões) e toda a gente tinha lido "As iluminações" e "As flores do mal" (este é Baudelaire). Toda a gente tinha escolhido entre o "Prufrok" de Eliot e os "Cantos" de Pound (não é parente da moeda), entre a ilegibilidade de Joyce e a xenofobia de amis (o pai). Toda a gente venerava Conrad. E Becket. E Pinter. Toda a gente que quisesse ser moderna, bem entendido. As mulheres bebiam o protofeminismo de Virginia Woolf e os homens que apreciavam mulheres e touradas, caça grossa e boxe, subir o Kilimanjaro e pescar no mar alto, comiam Hemingway às colheradas. Toda a gente sabia, evidentemente, por quem dobravam os sinos (é por nós que eles dobram).

Podia continuar por aí fora mas não quero entrar nessa, como se diz em brasileiro. A nostalgia já não é o que era, dizia a Simone Signoret. Teria de falar da educação francesa pelos filmes de Duras e da educação sentimental pelos livros do Scott Fitzgerald. Teria de falar do Kubrick e do Fassbinder. Do Cézanne e do Gauguin. Do Van Gogh e do Monet. Não quero maçá-los.

Chamava-se cultura europeia. Os americanos praticavam-na (Henry James anyone?). Com a marca do modernismo e da "angst" e solipsismo do século XX. Sartre e Camus, Kafka e Musil. Thomas Mann. Tínhamos de subir "A Montanha Mágica". A cultura europeia, como bem escreveu o checo Milan Kundera, era na matriz uma cultura literária, a dos inventores do romance (já sei que os chineses tiveram romance uns séculos antes de Rabelais mas não sabem quem é o Homero e estou um bocado farta de chineses).

O último filme ("Meia-noite em Paris") de um judeu culto de Nova Iorque, educado pela cultura europeia (e, sendo judeu, parte construtiva dessa cultura), é uma homenagem irónica ao mundo extinto. À nostalgia (oh diabo, e os italianos? O "Amarcord" do Fellini? O Visconti? O Rosselini?). Extinto pela tecnologia, que é arrogantemente ignorante, e pela crise, que nos faz perder horas a coçar a cabeça à procura de tostões e a pensar que os economistas financeiros são pessoas com importância (leia Pessoa). Eu sei que a cultura já não é o que era. Deixemos que um bando de cretinos mande em nós. Cretinos? A definição é de Michel Houellebecq em "la carte et le Territoire". Talvez o último romance europeu do último romancista europeu.

Clara Ferreira Alves, Sábado passado, na Única

1 comentário:

  1. Não obstante um certo travo amargo no final, é de um sorriso generoso esta crónica. Obrigado.

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