terça-feira, fevereiro 22, 2011

Geração Parva?


Aviso à navegação: O Expresso da Meia-Noite (EMN), na Sic Notícias, às 23 horas de sexta-feira, é de longe e sem a mais pequena hesitação o meu programa preferido da televisão portuguesa. Salvo raras excepções, expõe o mais pertinente assunto político-económico nacional da semana; salvo raras excepções, apresenta painéis equilibrados e com informação de valor acrescentado; salvo raras excepções, é moderado pela dupla mais eficiente do meio; sem excepções, é o único território televisivo onde se discute de facto, sem aquela inquinada sombra partidária mais ou menos comum  a todos os programas de debate. Ou seja, é sempre bom mesmo quando é menos bom. Foi o caso da última sexta-feira.

O tema, mesmo se me pareceu vagamente improvável ali, era muito bom - a geração que supostamente se auto-designou parva (ou precária ou subestimada ou Deolinda ou à rasca...). Actual e fervilhante. O painel, caso raro, era desequilibrado, espécie de três contra um (Vicente Jorge Silva, jornalista e autor da expressão "geração rasca?"; António Dornelas, sociólogo; e Pedro Lomba, jurista, contra Tiago Gillot, dos precários inflexíveis). Suscitou logo dificuldade em entender a escolha dos convidados. O tempo, pouco mais de 45 minutos, previsivelmente escasso para o tanto que haveria a dizer. A quantidade inenarrável de afirmações aberrantes ali proferidas é que já era previsível, como se supõe em discussões destas. Finalmente, os moderadores, caso raríssimo, não levavam informação objectiva que servisse de base à discussão. E era imprescindível que o tivessem feito. Era obrigatório.

Ricardo Costa começou logo por esclarecer que tinha convidado os Deolinda, mas que a banda não aceitara. Não aceitou - e bem. Não percebi a relevância do convite.  Os Deolinda são o mensageiro ou amplificador de uma mensagem. Só. Estrearam nos Coliseus, há pouco mais de um mês, a canção "Parva que sou" e a canção, a avaliar pela esmagadora e meteórica vaga de identificação com uma letra que diz "que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar", insuflou a ideia de que alguma coisa vai mal aqui no reino. Mas a canção é o que menos importa. De repente, estar a assistir ao EMN e, ao mesmo tempo, estar a ouvir discutir se o poema é bom ou mau, se a música é melhor ou pior do que outras da banda, fez-me sentir que estava a ter alucinações. Ou que a minha televisão estava a ser boicotada pelos vizinhos.

A canção não importa, mas importa saber por que razão tantos se identificaram com ela (serão todos uns desmiolados?! Uns mentecaptos?!). E importava lançar, logo à cabeça, e até por uma questão de honestidade, meia dúzia de números, que são vastamente conhecidos, ainda por cima. Por exemplo: num país em que existem 609 mil desempregados (os tais 11,1%), 68,5 mil são licenciados (cerca de 40 mil inscritos no centro de emprego). A maioria tem menos de 34 anos, é do sexo feminino e da área das Ciências Sociais. O número cresceu 6,5% em relação ao ano anterior e mais do que dobrou na última década [dados do INE relativos ao último trimestre de 2010]. Depois, sobre a geração quinhenteurista ou mileurista (e muitos referem-se à etiqueta com cinismo, como se fosse mais do que aceitável): os recém licenciados com menos de 25 anos recebem, em média, um salário líquido de 729 euros, menos 8,3% do que há dois anos [Jornal de Negócios]. Estes números, que são aqui da paróquia, são passíveis de extrapolação. A OCDE estima que, já no próximo ano, o desemprego jovem possa atingir os 21% na Europa. Não sei se os jovens deveriam cantar "parva que sou, blá blá, blá", mas... deveriam sorrir?! Mesmo?! Ou serão todos só uns preguiçosos que não querem trabalhar?! Será mesmo?!

Ricardo Costa e Nicolau Santos optaram por não levar qualquer espécie de estatística para a mesa. E, assim sendo, a informação foi desinformação. Larachas de mesa de café. Que sabe sempre bem (a quem aprecia o género), mas a muito pouco. Sobretudo quando não se está na mesa de café. Mas pior do que a desinformação é a caricatura. Essa foi a parte verdadeiramente intolerável. Deplorável.

Vicente Jorge Silva (VJS) é um jornalista que prezo, muito e por mil razões. A principal, claro, por ter inventado uma coisa chamada Público. Apesar disso, ou por isso mesmo, o discurso foi preocupante, de um desapontamento brutal. VJS tem 65 anos, foi co-fundador e director do referido jornal durante uma porrada de anos, o que lhe há-de ter valido, quando saiu, uma confortável indemnização. É actualmente comentador regular da Sic (um salário) e colunista do Sol (dois salários) e, disse, reformado (três salários). VJS, a quem coube a primeira intervenção, afirmou, sem o menor pejo ou sentido do ridículo: "Também eu sou um trabalhador precário". Estava lançada a hipótese de catástrofe no debate. Daquele e de todos os outros (incluindo os que nascem como ervas daninhas nas redes sociais) sobre o assunto. Estava explicado por que razão ninguém quer entender as razões desta gente. É que eu não conheço de lado nenhum o Tiago Gillot, mas aposto que ele não se importaria de ser precário na acepção de VJS. Nem eu.

Estava lançada a hipótese de catástrofe e apanhada a boleia para o que muitos querem fazer passar por conflito geracional. E é aqui que entra Dornelas, o sociólogo, o único que levava números e, por isso mesmo, os usou e bel-prazer da sua opinião: "Vamos lá relativizar, que isto não está assim tão mau", disse. "Em Portugal há um prémio monetário maior para a escolarização do que noutros países." Será por isso que não há um único dia em que não ouçamos dizer que os cérebros deste país estão a emigrar?! Mais de dez mil só para a Suíça só em 2009? 146 mil no início da década?! Era o equivalente a 15%; o Observatório da Emigração diz que já equivale a 20%. Significa um quinto dos licenciados. Será devido a um prémio monetário menor?! Volta Dornelas: "Se eu fizer as contas aos licenciados que não trabalham na sua área, são apenas 17,2%". Ah, bom, apenas! Portanto, esses 17,2% que se lixem. Genial! Ainda por cima, acrescentou, empolgado, "nem sequer começam a vida profissional com uma dívida à banca, como acontece lá fora!"

Ou então que pensem como Pedro Lomba (juro que não parecia o Pedro Lomba das crónicas do i e do Público), que "doseiem as expectativas!", porque "há uma coisa chamada realidade!". Não entendi, mesmo, por que razão Lomba estava ali. Se foi por ter escrito um texto sobre o assunto (e, nesse caso, porque não Rui Tavares, o primeiro?), se por pertencer à geração que se queixa, embora ele não se queixe. Gostava, já agora, que ele tivesse partilhado porque razão se não queixa, que tivesse partilhado o percurso, só assim a título de exemplo. E não, a geração do pai dele, ao contrário do que disse, não tinha que interromper os estudos para ir para a tropa. A geração do pai dele podia escolher, caso estivesse a estudar, completar os estudos antes de cumprir o serviço militar. Ainda assim, numa coisa teve razão. Disse ele: "Não se pensou minimamente no impacto dos cursos que foram autorizados durante anos. Há um problema político que mostra como na raiz deste problema está um conjunto de expectativas completamente desfasadas da realidade, expectativas irrealistas. As pessoas respondem a incentivos e racionalmente funcionam em função das oportunidades, das ofertas, dos direitos e vão querer preservar ao máximo a posição que têm. Para eles é muito difícil conceberem um mundo em que a economia já não suporta isso, em que já não é possível repetir o ciclo de vida dos mais velhos. (...) Na raiz disto está um conflito de expectativas criado por uma política que criou desequilíbrios profundos. E agora é difícil aos governantes corrigirem a situação."

Ora, era precisamente isto que eu tinha expectativa de ver ali discutido. Se não há solução e a culpa é das políticas e dos políticos, às tantas seria melhor cultivar um bocadinho mais de contenção quando se rotula esta geração, quando se diz que não quer trabalhar e que está mal habituada. Tiago Gillot, em desvantagem, limitou-se a constatar o óbvio: que "as qualificações têm menos relação com o tipo de vínculo que já tiveram" (os tais 17,2% ou os tais 729 euros); que a economia rejeita (ou não absorve, corrigiu Ricardo Costa) a qualificação"; e sim, sim, sim, "que há um discurso que se constrói como se a precariedade fosse moeda de troca da exuberância de direitos anteriores".

No meio disto tudo (e é só uma amostra de um debate que não me apetece transcrever, até porque mais-dia-menos-dia haverá de estar disponível no site da Sic), fiquei a pensar, com muito medo, no que quereria Vicente Jorge Silva dizer quando disse que "a preservação da liberdade paga-se com a precariedade"...

1 comentário:

  1. O nosso amigo Vicente Jorge Silva está noutro nível de consciência, só pode. Aquele debate foi um desastre. A canção dos Deolinda anda a pôr em evidência uma enorme incapacidade dos seres pensantes desta terra a lidarem com um problema destes como a precariedade. Para não falar na ignorância que todos manifestam ao tentar analisar uma simples letra. Um abraço ao meu amigo e genial letrista, Pedro Silva Martins.

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