terça-feira, julho 27, 2010

Project: runaway

Ainda falta muito? Papá, ainda falta muito para chegarmos? Sentia-se outra vez aquela menina insegura, mimalha, sentada entre os dois bancos de trás do carro a perguntar pelo fim do caminho - e de tudo quanto a impacientava. E o pai respondia-lhe naquela voz antiga, segura como tronco de árvore, de uma bondade à prova de terramoto. Está quase, amor, está quase. E antes que voltasse a questioná-lo, iludia-lhe o tempo com histórias, com jogos. O nome das terras, dos escritores que nasceram naquelas terras, das casas em que viveram, dos livros que escreveram. O tempo passava. Ainda falta muito para deixar de estar doente? Ainda falta muito para ser dia? Ainda falta muito para ser Verão? Ainda falta muito, papá? Não, amor, está quase, vais ver. E ela via, acreditava. Acontecia. Há quanto tempo já não acontece? Há quanto tempo, papá? Porque é que nunca mais passa? Porque é que nunca mais é amanhã? E isto deixa de doer? Porque é que já não há histórias que iludam o tempo e o tempo não passa? Ninguém precisa de saber, dizem-lhe, ninguém precisa de saber que, a seguir, o teu projecto é ter um espaço de observação de chuva de estrelas no Alentejo. Mas há quanto tempo não vê ela uma estrela cadente? Há quanto tempo não pede um desejo? O desejo de que o tempo passe. Observa gatos, são mestres em cuidar-se, recolhem-se à privacidade, lambem as feridas, lambem o pêlo, põem-se lindos e voltam todos lampeiros, dizem-lhe. Ela observa gatos, recolhe-se, lambe as feridas e o pêlo. Mas não acontece nada.

1 comentário:

  1. Bem escrito.
    Vamos deixando de conseguir iludir o tempo, mas às vezes, percorrer o caminho (e não apenas o destino) pode também ser um fim em si mesmo.

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