segunda-feira, janeiro 08, 2007

Do aborto. E da hipocrisia.

Um problema de saúde obriga-me há alguns anos a visitar o ginecologista com apurada assiduidade. Aliás, os ginecologistas, no plural - quando um está de férias em qualquer lugar exótico tenho sempre o outro. Não é um capricho; é o que tem que ser. Dois homens, amigos de longa data, a trabalhar em cidades diferentes. Médicos irrepreensíveis cuja longevidade do acompanhamento acarreta já algum afecto e muitas, muitas histórias. Uma-consulta-uma-história. Que nunca escrevi. Porque não.
Mas no encalce do segundo referendo sobre a despenalização do aborto é-me inevitável a partilha de uma história que ouvi numa dessas visitas, e que me leva a não ter grandes dúvidas sobre a vitória do "não" a 11 de Fevereiro próximo e sobre a perpetuação da hipocrisia reinante neste país. Faço este preâmbulo para que fique bem claro que a história é real, que estará longe de ser inédita, e que pulula, impune, aqui e ali, mascarada do melhor verniz.
Um dos ginecologistas mantinha uma qualquer tertúlia semanal e de café com companheiros da classe, mas de especialidades diferentes. Conta-me que eram conversas animadas pelas questões da ordem do dia e das convicções de cada um. Numa tarde de 1998, em plena contagem decrescente para o primeiro referendo sobre o aborto em Portugal, discutia-se inevitavelmente a questão. Um dos parceiros defendia as vantagens de o assunto continuar como está, ou seja, com mulheres a irem parar ao banco do Tribunal quando a interrupação da gravidez é descoberta. Ou a rumarem clandestinamente a Espanha. Ou à mesa de um boteco mais ou menos grotesco de uma rua escondida onde uma anacrónica parteira ou enfermeira lhes trata literalmente da saúde.
A argumentação, conta o médico, estava mais centrada no princípio moral do que propriamente na ciência ou em saber quando é que o feto é ou não um efectivo ser humano. Dizia o colega que esse tipo de utentes - as mulheres - seriam na sua grande maioria pessoas mal formadas de classes desafavorecidas ou adolescentes incautas. E que não seria possível, na era do preservativo e do não-tabu sexual, ser conivente com esse tipo de comportamento imprudente. Seria necessário educá-las, mas nunca à custa de uma morte. O fervor da discussão terá levado o homem a abandonar a tertúlia. Não só essa como as que se seguiram. Até um dia.
Até ao dia em que entrou no consultório do ginecologista, julgando este que seria para se desculpar e eventualmente fazerem as pazes. Não era. Era para lhe pedir que fizesse um aborto à mulher. Uma adolescente? Não, obviamente! Uma mulher mal formada de classe baixa? Também não. Uma mulher de 40 anos, no auge da carreira, com dois filhos, e a quem não convinha um terceiro. Não tocaram na conversa que motivou a discórdia entre ambos. Mas o ginecologista confessa que aguardou durante vários dias um cartão ou um telefonema que emitisse um sinal de redenção.
O sinal chegou no dia em que fumava um cigarro à janela. Lá em baixo, no meio de uma manifestação contra a despenalização do aborto, alguém empunhava um cartaz com um braço e erguia o outro na sua direcção, acenando-lhe. Era o homem, sem qualquer laivo de vergonha ou arrependimento, que semanas antes havia pago um aborto à mulher.

3 comentários:

  1. Não coloco em dúvida a veracidade da história.
    Primeiro. Sendo a história verdade, parte-se do princípio que este tipo de atitude (do tal “colega”) é normal e vulgar? Podemos extrapolar, através da história de um caso, para um povo todo?

    Segundo. Num casal, existe um homem e uma mulher. Se a mulher quiser abortar, mesmo contra a vontade do marido, o homem deve abandonar as suas convicções pessoais? Isto é, é líquido que o “colega” levou a mulher ao aborto porque estava convencido que seria a melhor solução? Não passa pela nossa cabeça pensarmos que a mulher lhe teria dito que “queria resolver o problema”, mesmo contra a vontade dele, pois não?
    A mulher do “colega” não tinha vontade própria? Num caso destes, o “colega” deveria abandonar a mulher ou violentá-la psicologicamente porque não concordava com ela?

    A “solidariedade” para com alguém, mesmo discordando, é sinónima de “acordo total”? Tudo o que se faz na vida de um casal, é sempre de comum e absoluto acordo? Não existem divergências? Um homem deixa de ter vontade própria e convicções porque a sua mulher tem uma opinião contrária à dele?

    Vou mais longe…e admitindo a cumplicidade ideológica dele, o que não é líquido (embora implícita na história, da forma como foi contada): um homem que andou na guerra, forçado pelas circunstâncias da vida que lá o colocaram, e matou inimigos, deve ser considerado incoerente e hipócrita por defender a paz?

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  2. Esta história que contas (à qual cheguei pelo Cibertúlia) lembrou-me a frase contemporânea de uma mocinha que conheço, defensora do "Não" em 98, perante uma amiga minha que defendia o "Sim" pelos motivos mais que divulgados e razoáveis. Dizia ela:
    -Sim, se eu precisasse fazia uma aborto; mas faz-me impressão pensar que vou na rua e vejo uma placa a dizer "Clínica de Abortos".
    Perante tão brilhante argumentação a minha amiga ainda hesitou, mas optou por não lhe bater - a única contra-argumentação que lhe ocorreu...

    A hipocrisia é desconcertantemente descarada!

    (e, a propósito do comentário do bom garfo, estas histórias não se generalizam, multiplicam-se...demais!)

    Até à próxima...

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  3. Olá a todos,
    O ideal cívico compele-me a deixar-vos a minha opinião, velha de quase dois anos, mas à qual não retiro ou acrescento uma vírgula.

    Um abraço,
    Afonso Gaiolas

    Sexta-feira, Abril 22, 2005

    Referendo sobre o aborto, ou um aborto de referendo?

    Diz-se daqueles que, apesar de receberem contínuos sinais de recusa das fêmeas que tentam cortejar, apesar de engolirem mais sapos do que as margens da ribeira de Cobres albergam, se insinuam de tal forma insistentemente que a conquista do troféu se dá pelo cansaço, diz-se, dizia eu, que a façanha foi conseguida por "esmagamento".
    Serve esta analogia para ilustrar o que me parece ser o pensamento de alguns sectores da nossa sociedade face à problemática do aborto em Portugal.
    Merece o assunto as controvérsias de proporções bíblicas que proporcionou nos últimos tempos?
    Tudo isso e muito mais.
    Penso, contudo, que muito se tem rematado, mas continuamente ao poste, poucas vezes se discutindo o que realmente interessa debater.
    Vou começar pela própria palavra ABORTO - Acto ou efeito de abortar. Nunca o dicionário refere a aniquilação de um ser como significado da palavra, mas ao invés, define-a como a expulsão do feto antes do fim da gestação, ou ainda "o que nasceu (começou a ter vida exterior) prematuramente".
    Curiosa esta diferença conceptual de vida exterior e interior, tão curiosa que nalgumas comunidades que não a nossa, de desenvolvimento imaculado e mãos sempre limpas, se considera a contagem de ambos os períodos na idade das pessoas.
    Todos consideramos como o mais hediondo dos crimes a eliminação de um ser recém-nascido. Pois bem, construamos uma simples fita de tempo. No intervalo temporal D+x (sendo D o momento do nascimento e x qualquer período que escolhamos (1 mês, 1 ano, 10 anos, 100 anos, ...), a palavra assassínio estará sempre presente, se decidirmos aniquilar um ser humano em qualquer destas idades. Mais complexa se torna a análise se trocarmos o sinal da adição pelo da subtracção. A partir de que momento consideramos estarem reunidas todas as condições para que, em consciência, possamos afirmar existir VIDA? Pensar demasiado sem conhecimento científico suficiente, torna angustiante a busca de respostas. Confesso que foi o que me aconteceu. Tanto mais que a proliferação de artigos sobre o tema em causa só torna ainda mais nebulosa a formação de uma opinião. Uma fracção de segundo, um dia, dez, doze, dezasseis semanas ou nove meses?
    Defendo que as leis de um país se devem reger pelos valores morais que os seus cidadãos consideram ser os correctos, nunca se devendo ceder à tentação de resolver um problema com outro problema. Não me serve portanto o argumento da falta de informação, da má qualidade das instituições de solidariedade social que prestam a educação a quem não pôde ser acolhido por uma família, da inconveniência temporal, ou qualquer outro de cariz similar.
    Em coerência devo portanto afirmar que, sendo o valor da vida o mais importante na escala das pertenças individuais, a partir do momento em que cientificamente me provarem que a centelha existe, devem ser repudiados todos os actos contrários ao seu desenvolvimento e maturação.
    Pois, pois, centelha é muito vago...
    Estava só a tentar ganhar tempo para que o meu cérebro me ajudasse...
    Disse cérebro?
    Se trocarmos um rim, continuamos a ser nós próprios?
    Concordam que sim!
    Se trocarmos de coração, continuamos a ser nós próprios?
    Concordam que sim!
    E se trocarmos de cérebro?
    Eu convictamente penso que não. Acredito aliás que a verdadeira fonte de longevidade para os seres humanos reside na substituição de "componentes", preservando ao máximo o único insubstituível - o cérebro.
    Reside aqui portanto a resposta à minha pergunta.
    É verdade que no momento da concepção, potencialmente temos uma vida a ser gerada. Mas estamos ainda no domínio das células indiferenciadas, e a verdade é que, mexendo os cordelinhos certos, ou errados, conforme o ponto de vista, podemos gerar uma miríade de monstruosidades que com a vida nada têm em comum. Não considero portanto que os inúmeros bancos de embriões existentes pelo mundo sejam imorais, uma vez que a essência de cada ser individual ainda não existe - que o cérebro ainda não se formou.
    Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção. Assim sendo, em nome da coerência, até essa data (ou qualquer outra mais precisa que cientificamente seja acreditada) não deveria ser criminalizada, penalizada, ou sequer moralmente condenável a decisão de inviabilizar a evolução do embrião. Dentro deste período, englobar-se-iam os casos excepcionais já previstos na nossa legislação, exceptuando claro o risco de vida para a mãe. Para a análise de malformações, ter-se-ia que fazer um esforço, grande, é certo, mas realizável se bem direccionado no sentido de, por análise genética, se determinar o mais precocemente possível a sanidade de cada futuro ser humano.
    Tendo tornado clara a minha posição, resta-me tecer um comentário, necessariamente cáustico ao slogan "A barriga é minha, faço dela o que quiser!", e outras idiotices do mesmo calibre, que só tornam ridícula a posição de algumas mulheres, que pensam ser este o cavalo de batalha final contra a opressão masculina. É verdade que é o indivíduo do sexo feminino o veículo hospedeiro do novo ser que está a ser gerado, e que provavelmente é o acto mais nobre a que alguém poderá em toda a sua vida aspirar, mas isso não tira o direito e simultaneamente a responsabilidade do homem perante o seu filho. Deveríamos pois ver ambos os progenitores condenados pelo acto abortivo, se existisse o conhecimento da acção, mas pela mesma ordem de ideias, negar a unilateralidade materna na decisão de continuar, ou não, com o processo de gestação.
    Quanto aos direitos sobre a barriga, esses são inalienáveis (embora algumas devessem receber mais conselhos sobre estética), mas quando se trata da geração de um novo ser, ainda e sempre reaparece o velho, mas sábio conceito, que sumariamente nos lembra que a liberdade individual termina onde começa a liberdade de terceiros.
    Decidam em consciência!

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