É como ler a história do naufrágio do Titanic, sabemos que chocou contra um iceberg, sabemos que teria sido possível evitá-lo se não se tivessem ignorado os avisos, sabemos que todos os responsáveis tentaram depois disfarçar. Sabemos que afundou no dia 6 de Abril de 2011. Aqui, mostra-se a cara dos músicos da orquestra, dos que saltaram do navio e dos que morreram no mar. Não consigo decidir se parece que isto foi na outra vida ou se parece que foi ontem. Mas sei que ler História de Portugal viva dói e mexe brutalmente com o sistema nervoso. É um livro impressionante.
Sócrates pode ser um escroque. Não sei se é ou não, não sei se é mais ou menos do que os outros. Este livro não o iliba do Freeport, nem das PPP, nem da TVI, nem do BPN, nem da licenciatura ao domingo (ainda que à beira de uma licenciatura no micro-ondas, a dele pareça um MBA), nem de substancial quota da dívida, nem da arrogância, nem da teimosia, nem das trapalhadas todas em que se enfiou e nos enfiou. Mas iliba-o do fracasso das tentativas para que Portugal não tivesse de pedir ajuda financeira externa. Há quem diga que este relato, de 2010 a 2011, iliba disso toda a gente, incluindo Passos Coelho. Mentira! Iliba Sócrates, que fez o possível e quase o impensável, engolindo sapos e elefantes, para que Portugal não fosse resgatado. Iliba Teixeira dos Santos, o único "traidor" que não traiu, o ministro das Finanças a quem algum dia alguém fará, espero, a devida justiça. Iliba - não tenho a certeza que precisasse de ser ilibado, mas enfim - Luís Amado. Não iliba, nem de longe, Passos Coelho. Nem Paulo Portas. Nem muito menos Cavaco Silva. E não só não iliba como demonstra que Durão Barroso é aquilo que penso dele desde a tanga de 2003: rato do porão, homem com duas caras, dois discursos, duas pistas de jogo, criatura que nunca esteve nem está à altura dos cargos que desempenha. Há quem diga que saem todos bem na fotografia, eu acho que saem todos mal. Sócrates, apesar de tudo, menos mal. Teixeira dos Santos, apesar de tudo, bem. A pandilha europeia, como passado, presente e futuro se encarregarão de demonstrar, pessimamente.
Passos Coelho e o seu séquito moveram-se sempre - sempre! - pela gula do poder. Foi isso que lhes condicionou as decisões, os momentos de espera, as alianças, os avanços e os recuos. Foi pela gula e não pela missão de salvar o país que passaram um ano a fazer contas. Não as contas que nos interessavam - Onde cortar? Como cortar? -, mas as contas que lhes interessavam - E se Portas votasse o OE? E se Portas aceitasse governar com Sócrates? -, "calculismo partidário", dizia Portas. Sórdida ironia. Se Passos fosse o aluno aplicado, a cumprida promessa do homem que estudou o país, relatórios e relatórios vertidos num livro vagamente ideológico, que pretendia ser uma espécie de "Yes, We Can" à escala do país, não estaríamos onde estamos hoje. Mesmo com toda a catástrofe que lhe precedeu. Mas aquele primeiro pedido de desculpas denunciava já muito do homem que em azar nos haveria de tocar.
Uma vez suspeito, toda a vida culpado. Sócrates não seria capaz de cumprir a palavra, dizia-se. Alguém foi? Pedro Passos Coelho mentiu. Pedro Passos Coelho continua a mentir. E está a provar o veneno que deixou no copo dos seus antecessores. Este livro é uma certidão de óbito de políticos no activo. E mostra também que a saúde da coligação PSD/CDS-PP era pouco mais do que nada mesmo antes de o ser. Política e lealdade parecem ser duas palavras impossíveis de conjugar na mesma frase.
Quando exerce o direito de voto, o país não escolhe políticos, rejeita políticos. Não escolheu Passos, rejeitou Sócrates. Como no passado, não escolheu Sócrates, rejeitou Santana. É compreensível se considerarmos que o leque de escolha é escasso e pobre. Mas é também, por ironia, um exercício de cidadania suicida. É este povo que por desconhecimento ou desistência cauciona estes políticos.
Sócrates era um guerreiro. Herói ou vilão? Sócrates foi traído por quase todos, menos por Teixeira dos Santos, por muito que o próprio tenha porventura dificuldade em reconhecê-lo e ainda hoje não lhe perdoe. Ou teremos sido nós os traídos por todos menos por Teixeira dos Santos? Há uma frase na página 145, uma frase dita por Catroga, esse mesmo Catroga que há dois anos parecia o D. Sebastião, que diz muito da escumalha a quem estamos entregues, uma frase dirigida a Passos: "Se eu fosse a si, ainda viabilizava mais este [PEC], porque isto vai rebentar mais à frente, antes do fim do ano. Aguente e o Sócrates cai para os 10% [juros da dívida], e então fica bem enterrado." Era esta gente que estava preocupada com o país?!
Este livro dava um filme. Mais do que um patchwork de notícias com algumas idas aos bastidores (que lidas assim, de uma vez só, provocam calafrios) é o guião de um filme de terror, passado num país cujo povo talvez não seja, de facto, "o melhor do mundo", mas os políticos são seguramente os piores do mundo. Ou tão maus como os piores, vai dar ao mesmo. Este livro serve ainda para outra coisa: para mostrar que por muito acintosa que seja alguma comunicação social, os políticos fazem o que querem, como querem, quando querem. E finalmente para mostrar a evidência maior: nesta altura, não faz sentido um governo que não meta toda a gente lá dentro. Se o Titanic afundar de vez, como tudo indica que irá acontecer, convém que desta gente nos vejamos livres para sempre. Quem sabe se poderemos salvar-nos na próxima reencarnação?
Não conheço o Hugo Filipe Coelho. Conheço o David Dinis, um dos melhores jornalistas com quem trabalhei na vida. Este livro não podia ser mais imparcial. É isso que assusta. Olhamos para trás e perguntamos: como deixámos que nos fizessem isto?
(Há uns dias, um amigo de longa data perguntou-me o que penso da anarquia. Não penso nada de favorável, gosto de regras, não concebo o mundo sem regras. Mas depois fiquei a pensar que talvez não tenha sido completamente honesta, talvez porque o conceito de anarquia esteja ainda em fase de incubação dentro de mim. E talvez tenha sido essa a grande mudança que o resgate operou em mim: não o facto de ter menos dinheiro ou menos futuro ou menos esperança, mas a violência. Se vir um político a atravessar a estrada, mesmo que seja na passadeira, sei que não irei travar, irei acelerar. No fim, responderei apenas: "foi em legítima defesa".)
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