quinta-feira, novembro 29, 2012

Almeida Faria: Rumor Branco


Não foi há muito tempo. Anos noventa, o país a verter dinheiro por todos os lados e nós a entrarmos na universidade, dinheiro quase nenhum no bolso, na carteira um papel com a lista de livros que não tínhamos como comprar mas que queríamos muito ler. E na alma a esperança de que a biblioteca os tivesse, porque imaginávamos que as bibliotecas tinham tudo. Não tinha todos, mas tinha alguns. Foi assim que lemos muitos livros, fotocopiados com dinheiro que devia ser para investir em apontamentos. Foi assim que lemos pela primeira vez Rumor Branco, de Almeida Faria. Passaram mais de quinze anos. Na memória ficou-nos a ideia de um longo poema. Quando já havia dinheiro para comprar livros, não havia este livro no mercado. E sempre o quisemos recuperar. Não só porque tentámos substituir todas as fotocópias por livros verdadeiros, mas porque queríamos muito voltar a lê-lo. Foi agora, graças a uma edição da Assírio e Alvim para celebrar os 50 anos da obra. Que maravilha de texto! Que maravilha de texto escrito aos dezanove anos! E quanta ignorância quando julgamos que José Saramago foi o primeiro escritor em Portugal a escrever àquela velocidade "despontuada" ou valter hugo mãe o primeiro a iniciar frases com minúsculas. São ambos escritores maravilhosos, mas não foram os precursores deste tipo de literatura. Quanta injustiça quando um homem como Almeida Faria, ainda vivo, abençoadamente vivo, é tão esquecido. A nossa memória não nos traiu: Rumor Branco é um longo poema. Esta edição mantém o prefácio da primeira edição (1962), escrito por Vergílio Ferreira. Há privilégios indescritíveis na literatura.

"Na pejada noite de mistérios surdos ele avançava rápido sem pressa e aquelas azinheiras de silêncio, aqueles ecos de vozes, voos, saltos animais, aquele tremor leve de estrelas, tudo ali lhe infundia respeito em vez de medo, em lugar de ansiedade, espanto, enquanto a cada movimento decidido dos seus pés havia folhas esmagadas, imperceptíveis sobressaltos e, porque a noite a isso convidava, via com lúcida claridade o que haviam sido para ele os tempos últimos e o que poderia vir a ser o futuro e via sobretudo ter de ter com ela uma atitude (...), pois, tinha de ter com ela uma atitude, clara como atalho que trilhava na noite hermética, povoada de bichos que espiavam seus passos por entre rasteiras moitas de estevas e de carqueja e interrogava-se qual poderia ser o seu caminho e entre os múltiplos dispersos despistados destinos permanecia indeciso, sufocado pela grandeza da planície entre outeiros e oliveiras e sobreiros e trigo que dá o pão quando não vem o suão e traz a fome e a seca, pela terra de antigos conventos por onde correm os ventos..."

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