Será terrivelmente injusto, mas li a correspondência entre a Sophia e o Sena quase com uma única imagem na cabeça: a imagem da banda desenhada de David Lynch - the angriest dog in the world. É a imagem que me fica do homem que escreveu: "É nesta mesma rua que eu ouço todos os sonhos passar desfeitos". A imagem de um homem que morreu de amor. Não por amor a uma mulher, mas a uma nação. Que o não amava. Portugal. E que ele não suportava, porque não aguentava viver sem a sua admiração, sem a sua aceitação. E sobretudo sem a sua ambição. E que o transformou num cão zangado, amargurado, insolente, insuflado. E exilado. Um homem em permanente conflito interno, desprovido de apetite por um país que não conseguia odiar em paz. E tal como nas vinhetas de Lynch, ao longo dos anos muda tudo, os refúgios e as funções, menos a sua ira, que será no fundo apenas um profundo desgosto. O desgosto de ter nascido cedo num país que o percebeu (?) tarde demais. E que o acorrentou numa raiva desmedida. Na solidão. E o matou. Tinha 59 anos.
Depois, essa imagem, quase tóxica, esbate-se, dilui-se, esboroa-se na luz quase auto-alheada das cartas-poesia de Sophia. O país não lhe passava ao lado, a mediocridade, sobretudo inter-pares, a pequenez, os espartilhos, "o deserto intelectual", nada do que afectava Sena a deixava a ela indiferente. Mas o olhar dela centrava-se, como toda a sua poesia ilustra, no que estava muito para lá ou acima disso. Dona de uma excepcional competência para se deixar encantar. Pelas árvores, pelo mar, pelo sol, pelas "pedras, pinhas, resinas, água e luz". Ninguém como ela consegue daquela forma dar cor às cidades, como se fossem aguarelas de palavras. A Atenas azul: "Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido"; Berlim "de euforia luna-park"; Roma, "num misto de nostalgia e perfeição, numa beleza que tem dentro de si uma falha secreta"; Rio de Janeiro, "de madrugada roxa, o calor roxo, o perfume roxo da terra, fruta, flor", Nova Iorque, "irmã da imaginação".
A correspondência é um exercício sério de amizade. Eles lêem-se, criticam-se, discordam. E conspiram. E protegem-se. Sena não resiste ao permanente auto-elogio; ela entrega-se a uma discrição de uma elegância sem nome. E é também um íntimo exercício de saudade à prova de bolor. Sobre o retrato social, histórico e moral de um Portugal que percorre 19 anos, de 1959 a 1978, com uma revolução pelo meio, tenho algumas dúvidas. Com excepção das referências à PIDE, ou por isso mesmo, fica quase tudo por dizer.
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