[Se só pudesse escolher um fotógrafo, Paulo Nozolino seria de olhos fechados o meu único fotógrafo.]
A sua luta diária é com o entorpecimento da visão. "Eu não estou aqui para mudar o mundo, mas para ver como é que ele evolui." Há 40 anos que Paulo Nozolino se dedica à fotografia. Nasceu em Lisboa em 1955, mas ainda antes do 25 de Abril foi estudar para Londres, onde descobriu que afinal a grande escola são as viagens. Mais tarde partia para Paris, onde esteve durante quase toda a década de 1990 e início de 2000. Dali descobriu o mundo árabe, onde se descobriu como fotógrafo. Tem livros publicados na prestigiada editora Steidl; já expôs na Maison Européenne de la Photographie de Paris e em 2005 o Museu de Serralves, no Porto, dedicou-lhe uma extensa exposição antológica chamada Far Cry. Nunca quis ser artista, mas a fotografia foi o que lhe permitiu andar pelo mundo a experimentar a liberdade. O negro, as ruínas, a morte e a violência têm sido os lugares para onde mais tem olhado - só assim pode enfrentar o sofrimento que o mundo carrega - devolvendo-nos imagens sempre a preto e branco.
Até dia 20 de Junho apresenta na Galeria Quadrado Azul, em Lisboa, Gloom, uma exposição sobre a história, as ruínas, as ausências e o abandono. E sobre a persistência das imagens e da beleza.
Gostava de começar a conversa pela sua última exposição, Gloom.
Foi uma encomenda sobre Toulouse, em regime muito aberto e flexível, sem tempos e sem data fixa para mostrar o trabalho. A encomenda era sobre a religião na Bretanha.
Religião na Bretanha?
Sim, ou o que resta dela. Fiquei espantado com a falta de espiritualidade e com as igrejas totalmente vazias de figuras e pessoas. E o trabalho acabou por se dirigir para a questão do abandono e para o modo como Deus passou a estar ausente nas relações humanas e foi substituído pelo dinheiro ou pelo cartão de crédito. Naturalmente, comecei a vaguear por sítios abandonados e caídos em desuso.
Interessam-lhe o abandono e o desuso?
Sim, ver até que ponto pode ir a degradação. Eu não estou aqui para mudar o mundo, mas para ver como é que ele evolui. E desde sempre que o meu trabalho tem um eixo relacionado com a decadência e o esboroar do mundo.
O que é lhe interessa nessas questões?
Ver o que já foi e o que ainda não é: quando se consegue perceber que algo foi importante, mas que ainda não é pó. Interessa-me este estado intermédio. Interessam-me as cidades quando caem em desuso e ficam desabitadas. E os vestígios, aquilo que fica, as ruínas.
E sempre foi assim? Ou tem-se vindo a acentuar esse gosto?
Sempre foi assim, mas estes tempos de miséria intelectual e financeira acentuaram estes aspectos, que me fazem procurar imagens.
Ainda que fale da decadência, do desaparecimento e do abandono, o seu trabalho é composto de imagens muito belas e sedutoras. Isso não é um paradoxo?
Eu não sei como é que as pessoas chegam ao meu trabalho, mas sei que, de algum modo, ficam contagiadas por certo modo de ver. E isso resulta de eu conseguir descobrir beleza em algumas das coisas para que olho: é como se ao fim de algum tempo, e para sobreviver, a decadência se transformasse num resto de beleza. Porque, se eu não conseguir amar as coisas que fotografo, não consigo sobreviver.
E ama as ruínas, o vazio, a ausência?
Sim. Há aí um certo sublime de que gosto e que é comum às pirâmides do Egipto, aos buracos das balas nos prédios de Beirute, aos bairros de lata. Este caos e violência fazem-me encontrar algo que me deixa em paz. É difícil explicar isto, mas estou naquela situação do príncipe do Guerra e Paz: está a ver S. Petersburgo a arder e diz: "Isto é horrível, mas ao mesmo tempo magnífico." Talvez isto seja uma forma de ultrapassar os medos.
Esse fascínio pela violência e pela guerra é um fascínio pela situação ou pela oportunidade de fazer boas imagens?
Pela situação, pela adrenalina, pelo extremo. Mas agora encontro essa adrenalina na banalidade, no tédio do quotidiano das cidades.
É uma questão de boas imagens?
Não sei, mas nunca fui à procura de imagens fáceis, nem nunca fiz fotojornalismo. As situações são diferentes: fotografar a violência é uma experiência muito reactiva, enquanto as imagens das ruínas são mais demoradas.
Fotografa pouco por reacção?
Não sou um fotógrafo de instantâneos.
Mas prepara e encena as suas fotografias?
Não, mas deixo que as imagens entrem. Quando vou fotografar, na minha cabeça a fotografia já está feita e, por isso, não tenho surpresas quando olho para os trabalhos. Orienta-me sempre o instinto e a disponibilidade para que as coisas me toquem.
Quando faz trabalhos de viagem, também não prepara nada?
Rigorosamente, nada. Leio alguma poesia sobre os sítios para onde vou, estudo um bocado da história local e deixo-me arrastar. O curioso é ver que, nas várias idas, acabo sempre por voltar aos mesmos lugares e a fotografar as mesmas coisas.
Nestes seus trabalhos, como nos que temos estado a falar, aparece só paisagem, arquitectura, mas nem sempre foi assim. Já fotografou pessoas, inclusive pessoas muito próximas, em situações muito violentas, como acontece na guerra e na morte. Nunca tem preocupações éticas? Mostra tudo, desde que seja uma boa fotografia?
Não. Claro que tenho preocupações éticas, senão não poderia ser a pessoa que sou. Nunca passei a linha da exploração e do roubar imagens a que não tinha direito. Sou um fotógrafo que se passeia pelo mundo e o meu trabalho é tirar fotografias. Se sinto que me estou a intrometer numa situação pessoal desisto. E há sempre pequenos sinais que as pessoas dão e que permitem perceber se as posso ou não fotografar. No caso destes últimos trabalhos sobre a Bretanha, são quase naturezas-mortas. Foram dias e dias a andar de carro sem se ver ninguém.
No caso da Bretanha é inexistente o tal conflito ético, mas já expôs muita nudez, a morte dos seus pais, entre outros exemplos que podíamos dar. O que lhe queria perguntar era se sentiu sempre que tinha direito a essas imagens?
Para mim, desde que haja o acordo das pessoas fotografadas, essas imagens são públicas. Mas essas imagens não surgem de forma gratuita e só as mostro se dentro de um determinado contexto [exposição ou livro] fizerem sentido.
Nunca mostra nada de forma gratuita?
Não mostro nus só pelo prazer do nu, mas se esse nu estiver relacionado com outra imagem são essas duas imagens que se devem ver. Tudo isto tem um contexto para o qual é preciso olhar.
Há quem diga que o seu trabalho tem uma enorme falta de pudor. E essa crítica acentuou-se quando fez a exposição onde mostrou a morte dos seus pais (Makulatur, 2011). Foi fácil fazer isso?
Foi horrível, mas foi a única maneira que encontrei de lhes fazer uma homenagem. E foi assim que exorcizei a morte deles, que foi uma coisa que deu cabo de mim. No espaço de um ano, perdi ambos os meus pais, que eu adorava. E conheci a terrível dor de ter ficado órfão. Foi muito, muito duro. Mas tive de fazer essa exposição, até porque esta é que é a verdadeira dimensão do trabalho, senão, são só jogos florais ou papel de parede.
E há aquela relação intensa, profunda e inultrapassável entre a fotografia e a morte. Consegue perceber essa permanência do tema da morte na fotografia?
Há algo terrivelmente mortífero na fotografia, porque as coisas nunca mais serão como na fotografia. E essa capacidade terrível que a fotografia tem de para sempre congelar o momento está ligada à morte. A fotografia é a morte.
Muitas das suas imagens reflectem não só a intimidade das coisas que fotografa, mas também a sua intimidade. Não se sente agredido?
Em 1997, entrei na morgue de Sarajevo e mostraram-me o corpo de uma criança em cima de uma mesa de morgue. O corpo estava ali há três dias sem ser reclamado e a criança tinha morrido de fome três anos depois do fim da guerra. O homem que me mostrou isto mostrou-o como um crime hediondo que tinha acabado de ser cometido. Para mim, a imagem daquela criança não vale só por si, mas por todas as crianças: aquela criança na fotografia são todas as vítimas inocentes das guerras. Nunca mais fiz imagens assim. Penso muito na família daquela criança. Depois, quando vejo o meu pai a morrer na cama do hospital, sinto que tenho a obrigação de o fotografar, porque se fotografei aquela criança eu tenho de fotografar o meu pai. E essa era uma imagem que tinha de ser feita.
Fotografar os seus pais a morrer é uma maneira de se redimir de todas as outras mortes que fotografou?
Não. É uma maneira de olhar a face da morte, de a enfrentar. E dói muito mais fotografar um pai que vai morrer que aquela criança de Sarajevo. E isto é uma forma de dizer que eu não estou nisto sem pagar o meu preço.
Há outro modo de fazer fotografia sem ser com essa violência?
Certamente que sim. A fotografia é o sujeito, é aquele que está a fotografar. Não há violência nenhuma em fotografar o mar ou uma árvore, mas pode-se fotografar violentamente esse mesmo mar e essa mesma árvore. Depende do que se quer dizer.
E sabe o que quer dizer?
Sei.
Pode dizer o que é?
Quem vê os meus livros e as minhas exposições tem noção daquilo que eu quero dizer e aquilo contra o qual me estou a insurgir.
E o que é isso?
Há um sentimento de injustiça enorme na vida e eu estou muito marcado por esse sentimento. Quando era criança não me prepararam, nem me explicaram que o mundo era um sítio tão violento e essa violência confronta-me diariamente. E para lhe sobreviver tenho de gerar mais violência: uma espécie de contraviolência. Não há bem palavras para explicar isto.
Podemos então dizer que a intensidade, o choque e o negro, que caracterizam tão intensamente o seu trabalho, não são uma retórica ou uma estética, mas uma necessidade?
É o que eu considero valer a pena ser mostrado. Trata-se da materialização daquilo que vejo, sinto e experimento todos os dias. As fotografias são o equivalente disto. Não vejo qualquer interesse numa fotografia de um casal aos beijos por baixo de uma palmeira numa praia tropical. Essa é uma falsa felicidade. As imagens sombrias são a realidade.
Mas só há morte e escuridão?
Sim, só há isso. Depois há uns intervalos em que pensamos que somos felizes e que a vida tem beleza. O mundo é um sítio onde há infinitamente mais gente infeliz que feliz.
Considera que só há morte, escuro e infelicidade no mundo?
Eu sou feliz. E é com o amor e a felicidade que eu sobrevivo. O amor, a amizade e a arte é o que ainda me faz estar vivo. Isso compensa tudo o que vejo e não posso ignorar. Mas um momento de felicidade não se fotografa.
Há aqui uma contradição. Não se pode fotografar um momento de felicidade, mas pode-se fotografar o momento da morte?
A gravidade do momento da morte obriga-me a fotografá-la e depois a morte é uma coisa que ninguém sabe o que é, enquanto a felicidade se sabe. Sabemos distinguir e identificar os sentimentos. Já a morte e a dor são os grandes mistérios. E o mundo é feito de contínuas mortes e da percepção de que está sempre alguém ou alguma coisa a morrer: uma planta, uma loja que fecha num centro comercial, os olhos de um amigo que começam a perder brilho e é aqui que está a gravidade do mundo. E é a estas coisas que devo prestar atenção.
O que lhe interessa com a morte e a perda é a maneira como isso nos coloca frente a um desconhecido de que quer fazer uma imagem?
Claro. Eu gostava de fazer a imagem desse desconhecido, do buraco negro, do que está para lá do espelho. Sim, no fundo, era isso. Se conseguisse fazer essa imagem, a imagem que tivesse tudo pararia.
E sempre foi assim?
Comecei a fotografar há exactamente 40 anos, em 1973.
E como é que começou "a coisa" da fotografia?
Uma namorada disse-me no Parque Eduardo VII que ia acabar comigo, eu fiquei em pânico e disse "mas eu nem sequer tenho uma fotografia tua". Fui a correr a casa dos meus pais buscar uma "instamatic" [modelo de câmara fotográfica da Kodak], que ainda tenho, e só depois de a fotografar é que nos despedimos. A fotografia para mim sempre esteve ligada ao sentimento de perda. Guardar qualquer coisa que foi extremamente importante e ficar com uma imagem. Só percebi isto muito tempo depois, mas é um facto que eu só fotografei coisas que sabia que ia perder depois.
As suas mulheres?
Pois. Para mim houve sempre uma ligação muito forte entre as minhas fotografias e as mulheres.
Mas não são só as mulheres, também as amantes, namoradas, companheiras.
Sim, as mulheres que fotografei foram as mulheres que amei e que mudaram a minha vida. Fizeram-me mudar de cidade, pensar de maneira diferente, assumir a paternidade, fazer loucuras. As mulheres sempre foram um grande motor.
Depois daquela primeira fotografia, foi estudar?
Sim. Estudei em Lisboa e era tudo muito mau e decidi ir para Londres em 1974.
Nessa altura já sabia que tipo de trabalho queria fazer ou andou a fazer experiências?
Eu demorei dez anos a perceber o que me interessava. Estas coisas da fotografia demoram muito tempo. Nessa altura, interessava-me a ideia romanesca de passear pelo mundo com uma máquina.
E por que é que a máquina de fotografar fazia parte dessa ideia de liberdade?
Nunca viajei senão para fotografar e nunca me considerei um turista, e a máquina era o objecto ideal para levar: cabia num bolso, permitia-me aceder a sítios e alimentava a minha curiosidade.
Esteve quantos anos em Londres?
Três. Tirei um diploma em Fotografia Criativa e viajei. E a minha grande escola foram as viagens.
E regressou a Lisboa?
Sim, porque tinha pendente o serviço militar, para o qual, felizmente, fui dado como inapto.
Em Londres não foi obrigado a fotografar coisas e a fazer experiências que não lhe interessavam?
Sim, eu sei fazer tudo. Estive numa escola técnica onde aprendi a fazer tudo: naturezas-mortas, arquitectura, retratos, etc. Tenho todo esse conhecimento técnico, mas depois esta minha vontade de viajar não era compatível com ter um estúdio, assistentes. E nunca quis ser funcionário da fotografia. Queria mesmo viajar e viver coisas e registar tudo. E os primeiros dez anos de fotografia são uma procura do modo de vida que queria para mim.
Então a fotografia serviu-lhe para concretizar o desejo do homem aventureiro perdido pelo mundo?
Tal qual.
Na verdade, serve-se da fotografia para estar livre?
Isso foi ao princípio e tinha que ver com a época que se vivia e com o desejo enorme que eu tinha de experiências do mundo. E a fotografia era a prova de que tinha estado naqueles sítios a viver aquelas coisas.
E quando é que mudou?Mudou quando percebi que não podia fazer outra coisa. E que era para aquilo que estava escolhido.
Foi escolhido para a fotografia?
Sim. Há um determinado momento em que o trabalho começa a ganhar peso na vida que temos e passa a ser uma obsessão e o motivo director. E a certa altura eu estava completamente preso pela fotografia.
Sabe identificar esse momento?
Pouco a pouco, percebia que via de uma maneira diferente das outras pessoas. Comparava as minhas fotografias com as dos outros e notava as diferenças de sensibilidade e visão. E houve alguns com quem senti grande afinidade.
Com quem?
O Robert Frank ou o Larry Clark, por exemplo. Fotógrafos que conheci através de exposições que vi em Inglaterra e nunca foram coisas que eu aprendi em livros, mas que vi e vivi. Acabei por conhecê-los, mas nunca quis ir trabalhar com eles, não queria gurus, porque já sabia que esta profissão é uma profissão de solidão.
Quando saiu de Londres, fixou-se em Lisboa?
Sim, e tive um filho. Durante um tempo tive um óptimo grupo de amigos e estávamos a tentar fazer coisas, e a certa altura isto não avançava. E em 1989 voltei a sair.
Foi para Paris?
Sim.
Com uma nova mulher?
Sim. Fomos viver para Paris, onde estive 12 anos.
Foi importante?
Extremamente, porque foi nesta altura que o meu olhar começou a ficar com uma grande maturidade. Já tinha exposto muitas vezes em França e os franceses abriram-me as portas para imensas coisas: deram-me bolsas, acarinharam o meu trabalho e motivaram-me muito. Foi uma altura em que me senti muito protegido e acarinhado. Tratou-se de conhecer um novo mundo. E em Paris o isolamento que sinto tão intensamente em Portugal era menor.
Que trabalhos fez nesses anos de Paris?
Comecei num projecto sobre o mundo árabe. Fiz uma viagem ao Cairo que mudou a minha vida. É desta altura o projecto Penumbra, que é o meu primeiro trabalho com cabeça tronco e membros.
Ou seja?
Eu gosto de juntar fotografias de circunstâncias diferentes, mas em Penumbra queria dizer alguma coisa sobre a paz e espiritualidade que encontrei no mundo árabe. Nos anos [19]90 era maravilhosa a paz daqueles sítios.
E como é que relaciona essa paz com a perda, o abandono e as ruínas com que começámos esta conversa?
Atenção que "penumbra" é um lugar escuro e significa viver uma existência sem glória. E o que me impressionou foi perceber que havia qualquer coisa recalcada que mais tarde ou mais cedo tinha de vir cá para fora. Era impossível ser de outra maneira. Tudo levava a um condicionamento que com a Internet e a rapidez da comunicação actual explodiu.
Como é que se orientava nesses países?
Com o meu instinto. Não levava muitas coisas, porque já nessa altura eu não fotografava muito e era muito económico. Numa viagem à Índia, roubaram-me tudo e aprendi que só se podia continuar com uma máquina, uma objectiva, um filme e um bom par de sapatos e ser o mais livre possível.
Como é que consegue essa economia fotográfica?
Com a presença no local há uma natural triagem naquilo que se escolhe ver, nas ruas que se escolhem ver e por aí fora. É muito difícil explicar, porque as coisas vão-se fazendo. O que eu sei é que não é necessário fazer milhares de fotografias, pelo contrário. No final de cada dia de trabalho, fazia o exercício de desenhar num caderno as fotografias que julgava ter feito durante o dia.
Qual foi o período mais longo que teve sem ver verdadeiramente as fotografias que estava a fazer?
Cheguei a estar dois anos sem revelar um único filme. Sempre a produzir, mas sem revelar.
Onde andam esses desenhos?
Deitei fora. Não gosto dos croquis, dos desenhos, nem das notas. Uma vez feita a fotografia, tudo o resto pode ir fora. Não penso nos historiadores do meu trabalho. O que penso ou escrevo não é importante, o que é relevante são os livros e as exposições que faço. Ainda que muitas vezes as pessoas não se apercebam da quantidade de trabalho exigido por uma exposição e entrem displicentemente numa exposição e estejam lá cinco minutos sem dar atenção a nada. Mas mesmo assim eu não sinto necessidade de mostrar o trabalho que está atrás de cada fotografia.
Depois do mundo árabe, voltou a Paris?
Paris era a base onde sempre voltava. Depois comecei a fotografar a Europa. E isto aconteceu com uma visita a Auschwitz. Fui lá parar por causa de uma encomenda do Pompidou e esta viagem mudou-me profundamente. Nunca mais fui a mesma pessoa.
O que é que lá encontrou?
O horror.
E o turismo da catástrofe não o incomodou?
Não. São muito corajosas as pessoas que visitam um campo de concentração. Trata-se de enfrentar o horror absoluto que um dia foi vivido. E este é o nosso passado. E toda a construção da Europa está baseada neste genocídio. Por isso, temos de lá ir. Como costumo dizer: há pessoas que foram a Auschwitz e há as que não lá foram.
Pode-se nunca lá ter ido fisicamente, mas pode-se já lá ter estado através dos filmes, livros, fotografias.
Tudo o que eu vi ou li é incomparável com aquilo que se sente quando se põe o pé no sítio e se toca na parede. Quando se toca nas pedras das paredes das câmaras de gás de Birkenau marcadas pelas unhas de quem lá foi assassinado, é tudo diferente. Pode-se ter lido o Primo Levi, ter visto o Claude Lanzemann, mas ali está-se a sentir. Ter conhecimento não é ter experiência.
Então as suas fotografias, os livros e as exposições servem para quê?
Para os outros, não sei para que é que servem. Eu trabalho para mim e depois quando está feito tenho o maior prazer em partilhar. É uma actividade pessoal e egoísta.
Não ambiciona partilhar essas suas experiências?
Sim, mas não com o público em geral, só com dois ou três amigos. Eu sei que há livros, filmes e fotografias que podem mudar a vida, mas como é que isso acontece eu não sei. O que me interessa é poder exprimir livremente o mundo em que vivo.
As obras de arte não são experiências?
Sim, mas são cerebrais. Uma fotografia das pirâmides pode ser linda, mas não tem nada que ver com tocar naquelas pedras e ter percepção da sua escala e da relação do nosso corpo com aquelas construções arquitectónicas. É mesmo preciso caminhar dez horas no deserto para saber o que é o deserto.
A arte não dá uma espécie de acesso a essas experiências?
Dá-nos uma espécie de apetência para descobrir em nós próprios o que nos interessa no mundo, mas depois é preciso ir e experimentar por nós mesmos. E isto é insubstituível.
Foi para Auschwitz em 1994 e que trabalho é que resultou dessas viagens?
Esse é um trabalho que ainda ando a fazer sobre a Europa, a que ainda não dei forma final.
Consegue perceber que Europa é essa que anda a tentar fotografar?
Ando à procura do espírito, do intocável e daquilo que nos une a todos. Ou seja, o que é que Pessoa tem que ver com Rimbaud, Rimbaud com Goethe, Goethe com Rilke. Falo de poesia, porque são os poetas que acabam por exprimir melhor uma espécie de indizível e de identidade universal que interessa. E pode-se dizer que eu procuro esse tal denominador comum da Europa, porque me sinto profundamente europeu. E essa Europa é a verdadeira Europa, o resto são arranjos económico-financeiros. O meu trabalho é encontrar pontos de contacto entre tudo isto.
Fala muito de poesia. É um grande leitor de poesia?
Sempre fui. Comecei muito novo e estragou-me a vida. Os livros fazem-nos bem, mas também nos fazem muito mal e eu parece que escolhi os que faziam pior.
E como é que a poesia o ajuda a organizar visualmente o mundo? Porque há sempre uma relação forte entre a poesia e a sua obra.
Sei que alguns poetas conseguem captar coisas que andam no ar e são estas coisas que me interessam. E, quando sinto que algum poeta está a tocar a mesma coisa que eu, vou atrás dele.
Por isso é que leva poemas e poetas para as suas exposições? Nesta exposição, à entrada, está o poema do Brecht chamado Aos que virão a nascer; na exposição Usura, do ano passado, era um dos Cantos de Ezra Pound.
Levo esses poemas porque é um complexo que eu tenho de o público não saber bem ler imagens e precisar de uma pequena ajuda.
Pode explicar como é que um poema ajuda a ler fotografias?
Ele não ajuda a ler as imagens, mas sim mostra um estado de espírito ou uma ideia. [Os poemas] são uma espécie de diapasão.
Estas foram as únicas exposições em que convocou poetas?
Não, numa exposição antológica de 2002 que fiz em Paris e que se chamava Nada, mandei traduzir e fixar na parede o poema do António Osório chamado Ofício. E que diz assim: "Armazenar sofrimento, distribuí-lo depois límpido." E isto é um grande poema que descreve o meu ofício, o dele e o de algumas pessoas.
E na sua exposição em Serralves?
Nessa, foi o Rui Nunes que pegou nas minhas fotografias e fez um magnífico texto com elas. E depois trabalhei com o Rui Baião para o livro Bone Lonely. Durante seis meses, fomos trocando fotografias e poemas e dessa troca nasceu o livro. Aqui era mais uma interrogação sobre o que se sente quando se tem cinquenta e tal anos e sente a solidão e a crise do meio da vida.
Já se percebeu que os poemas ajudam quem vê as suas fotografias a ficar na temperatura e atmosfera correctas, mas a si como é que a poesia o ajuda? Molda-lhe o olhar?
Não, não é bem isso. Até porque agora os poetas escrevem acerca de imagens e não acerca de sensações. Herdei do Rui Nunes a desconfiança acerca das palavras e que é preciso escolhê-las muito bem, porque elas já foram traídas, trituradas e são usadas ligeiramente. E ele gosta da fotografia porque diz sentir na fotografia uma verdade que a palavra já não tem. Mas hoje em dia, fruto da banalização, a poesia já não me alimenta tanto. O importante é ver como os poetas quebram a sintaxe e hoje quem escreve está demasiado preocupado em escrever bem. E o que me interessa não são os textos bem escritos. Tal como não me interessa fotografar ou pintar bem. Interessam-me os momentos de clivagem e destruição e as tentativas de reestruturação das coisas.
Mas no seu trabalho nota-se um esforço em fotografar bem. O seu trabalho é exemplar no enquadramento, na escala, na revelação.
Isso é o pior que eu consigo fazer. Mas gostava muito de fazer pior. Gostava que as minhas imagens fossem mais cruas, porque ainda há um sentimento estético que me liga a cada uma das imagens e do qual gostava de me libertar. E é sobre isto que estou a trabalhar.
Na sua grande exposição antológica de Serralves, havia no chão a indicação da data e do local em que cada uma das fotografias tinha sido feita. E desse percurso cronológico Lisboa estava quase ausente. Por que é que precisa de ir tão longe para fotografar?
Porque o olhar banaliza-se. E depois é preciso estar num certo espírito para ver as coisas, senão passamos por elas sem as ver. Na cidade em que se vive, os percursos são quase sempre os mesmos e às vezes vêem-se umas coisas, mas quase nunca se consegue ver nada. É mais fácil apanhar um avião e ir para longe, porque aí fica-se mais propenso a ver. Eu preciso muito dessa distância. Para fotografar, preciso de cheiros, luzes, ambientes e cansaços diferentes. Ainda que no fundo ande sempre à procura da mesma coisa e a verdade seja que se olharmos bem encontramos a mesma coisa tanto em Lisboa como em Kiev.
Tendo uma tão forte consciência dos processos fotográficos, nunca teve vontade de ensinar?
Eu ensinei, mas depois tive de ser honesto comigo próprio e percebi que não podia estar a ensinar pessoas se não era suficientemente bom fotógrafo. Eu próprio não sabia como fazer correctamente e, por isso, não podia estar ali a ensinar. E depois o importante na fotografia é que as pessoas aprendam a saber quem são e é por isso que em fotografia o reconhecimento só pode ser tardio. É preciso passar por muita coisa e envelhecer. Sem isto, aquilo que fazemos é muito superficial.
Não pode haver lugar para um olhar novo, bruto e quase primitivo?
Sim, mas só há um por século. O Rimbaud é um bom exemplo. Se se vir bem, os jovens fotógrafos não estão a aprender técnica fotográfica, mas a sair da escola para a galeria de arte. E isto é o oposto do olhar bruto e da expressão animal dos sentimentos. Esses jovens fotógrafos estão na escola a ler os teóricos da fotografia e a fotografia não é isso.
Mas não há óptimos fotógrafos que leram essas coisas?
Sim, há, mas isso não me interessa nada.
Nem o Jeff Wall, que é um fotógrafo reconhecido mundialmente, doutorado em História da Arte e com um muito sólido corpo de textos teóricos?
Não, não me interessa rigorosamente nada. A primeira vez que vi um trabalho dele ao vivo fiquei muito admirado. Aquela luz e aquela crueza são impressionantes, mas depois toda aquela dimensão intelectual não me interessa para rigorosamente nada.
Diz sentir-se muito isolado, mas é um fotógrafo muito bem sucedido nacional e internacionalmente.
O isolamento de que falo é das pessoas com quem verdadeiramente posso falar, porque depois só tenho monólogos. Tenho pouco amigos com quem posso estar a falar no silêncio. É preciso entender-se que a fotografia não é para mim uma carreira, mas uma obsessão vital, porque quero chegar a algum lado não como fotógrafo, mas como pessoa. A fotografia para mim é a vida.
Quis ser fotógrafo?
Sei lá, eu não queria era picar o ponto.
E sempre foi assim tão crítico?
Sempre. E sou muito severo e implacável comigo próprio. Deito muitas coisas fora. E tem de ser assim.
Agora vai ficar por Lisboa?
Sim.
E como articula a estabilidade que agora tem com a sua necessidade vital das viagens?
Isso depende de tantas coisas. Do dinheiro, das pessoas que amo e com quem escolhi partilhar a minha vida.
[Hoje, no Público, entrevista de Nuno Crespo]
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