"Portugal é, neste momento, um país nu. Quer dizer, um país nem nenhum álibi histórico, entrincheirado na sua confinada faixa atlântica, sem possibilidades de sonhar outro sonho que não o seu próprio, caseiro. Nós passámos séculos a fugir de nós mesmos enquanto apenas portugueses. Fuga simultaneamente estelar e criadora que não nos permitiu nunca que nos encontrássemos connosco mesmos. Fomos sempre outros. Essa fuga é agora impossível. Chegou a hora desse encontro secularmente adiado para o qual ninguém sabe até que ponto estamos colectivamente preparados. Uma das tentações que nos espreita é de novo a invenção de mitos, de esquemas orientadores, destinados a superar imaginariamente os obstáculos inevitáveis de o nosso longo passado de irrealismo histórico e político acumulou. A nossa aventura histórica é a de um povo que viveu sempre em bicos de pés, , acima das suas possibilidades reais, esperando tudo de milagres que às vezes aconteciam, de dons sebastiões e de caldos de portaria, a ponto de converter esta existência pícara em segunda natureza. Quando os desastres aconteceram, descobriu-se-les logo o antídoto, criando a especialidade lusitana por excelência de transfigurar os alcáceres-quibires reais em aljubarrotas fictícias. O espaço para estes jogos e miragens históricas desapareceu, sumiu, como dizem os brasileiros, com a supressão dos horizontes quiméricos do nosso pseudo-imperialismo. Encurralados na nossa autêntica realidade, não podemos nem devemos procurar saídas que continuem a ser, como sempre foram as nossas, "portas pintadas na parede". Temos de ajustar-nos ao que realmente somos e podemos para a partir daí construirmos um Portugal possível e não uma quimera. O que somos é considerável e nada desprezível, como nos grandes momentos de realismo e unanimismo pátrio o provámos. E o que podemos, se soubermos adequar os meios de que dispomos à invenção do país possível, permite a esperança de dominar o desafio incomum que a situação actual e a nossa aposta histórica requerem. Mas é perfeitamente inócuo e nocivo recriar sob outra roupagem novos "orgulhosamente sós", ou exaltar-se com o pavor suposto ou efectivo que inspiramos neste momento a um "certo mundo" como demagogos em delírio apregoam."
(Expresso, 03-05-1975)
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